A reportagem reconstruiu a jornada malfadada de Bastardo em entrevistas com seus familiares, amigos e parentes de outras pessoas desaparecidas do barco Ana Maria, junto com autoridades e pessoas envolvidas no contrabando humano.
Bastardo cresceu em El Tigre, cidade pujante no interior da Venezuela, no famoso Cinturão do Petróleo do Orinoco, fonte de grande parte da riqueza em petróleo do país.
Carolina, mãe de Bastardo, trabalhava na cozinha de um hotel elegante que atendia a executivos do petróleo. Bastardo frequentou a escola particular e falava em ser médica. Ela e sua irmã menor, Aranza, cantavam no quarto que dividiam.
Os bons tempos se desvaneceram com a má administração da estatal petrolífera PDVSA pelo falecido presidente Hugo Chávez e seu sucessor, Nicolás Maduro. Com os seguidores do governo no comando da empresa, a receita do petróleo financiou programas sociais enquanto a manutenção básica e o investimento caíram.
Profissionais especializados em petróleo fugiram em busca de oportunidades no exterior. Apesar de possuir algumas das maiores reservas de petróleo do mundo, a Venezuela registrou uma queda na produção de cerca de 75% desde o início do século, quando produzia 3 milhões de barris por dia.
A precipitação atingiu El Tigre com força. O luxuoso hotel fechou as portas e Carolina perdeu o emprego. Bastardo deixou a escola aos 16 anos para ganhar alguns dólares por semana cortando cabelos. Ela e Berra, um trabalhador da construção civil, tiveram dois filhos, Dylan e Victoria.
Com outro bebê a caminho --um menino que eles pretendiam chamar de Isaac Jesus--, Berra partiu em fevereiro para Trinidad. Encontrou um emprego de fritar frango e fez planos para sua família o seguisse. Bastardo precisaria de uma cesariana, a terceira. A perspectiva de dar à luz no hospital local a aterrorizava, segundo sua mãe.
O sistema nacional de saúde da Venezuela, que já foi considerado um modelo na América Latina, agora sofre com a escassez de medicamentos, equipamentos e até mesmo produtos básicos, como luvas de borracha. Milhares de médicos e enfermeiros, com os salários devastados pela inflação, não aparecem mais para trabalhar.
No Hospital Luis Felipe Guevara Rojas, em El Tigre, cartazes na maternidade informam as mulheres que precisam de cesarianas para trazerem seus próprios antibióticos, agulhas, suturas cirúrgicas e soro intravenoso. Nem mesmo a eletricidade é garantida. Os médicos disseram que a energia falha quase diariamente, forçando-os a confiar em geradores de emergência.
A mortalidade infantil aumentou acentuadamente, de 15 mortes por 1.000 nascidos vivos em 2008 para 21,1 mortes por 1.000 nascidos vivos em 2016, revertendo quase duas décadas de progresso, de acordo com um estudo publicado em janeiro na revista médica "The Lancet". As mães também estão morrendo em taxas mais altas durante o parto, segundo o estudo. Cerca de 11.466 bebês morreram antes de completar um ano em 2016, um aumento de 30% em relação ao ano anterior, de acordo com os números mais recentes do Ministério da Saúde da Venezuela.
"Qualquer mulher que dê à luz em um hospital venezuelano corre um risco", disse Yindri Marcano, diretor do hospital de El Tigre.
Trinidad quase certamente teria melhores cuidados médicos, consideraram Bastardo e Berra. Um incentivo extra: uma criança nascida lá seria uma cidadã e poderia facilitar para eles obterem a residência legal um dia. Membros da família acompanhariam Bastardo para cuidar dela e dos pequenos, Dylan, 3, e Victoria, 2.
Em 2 de abril, Bastardo, as crianças e sua cunhada Katerin viajaram 500 quilômetros de táxi até o porto de Guiria. Localizado na remota e sem lei Península de Paria, na Venezuela, a cidade é conhecida como um centro de fuga de migrantes e tráfico de drogas.
Lá eles se juntaram ao pai de Berra, Luis, e seu tio Antonio, que também fariam a viagem. Os seis se instalaram em um hotel decadente acima de um restaurante chinês para fazer os preparativos finais. Eles saíram com um amigo de Luis, Raymond Acosta, um mecânico local de 37 anos.
Luis se encarregou de conseguir seus lugares no barco de um contrabandista. Um trabalhador da construção civil, ele e sua esposa já tinham emigrado para Trinidad e ajudado outros parentes a fazer a viagem nos últimos anos.
Acosta disse que Luis havia negociado um preço de US$ 1.000 (cerca de R$ 4.000) para os seis membros do grupo: US$ 400 adiantados, com o saldo a pagar em Trinidad, apenas em dólares dos Estados Unidos.
Mas, quando a partida se aproximou, o contrabandista aumentou o preço. Eles precisariam dar mais US$ 500 em dinheiro adiantados. Em vez de recuar, Luis mandou sua mulher em Trinidad sacar suas economias e providenciou um contato para transportar o dinheiro até Guiria.
Outro revés ocorreu em 23 de abril: um barco migrante que ia para Trinidad com 37 passageiros virou nas Bocas do Dragão. Equipes de resgate encontraram nove sobreviventes e um cadáver; os demais continuam desaparecidos, de acordo com a Autoridade de Proteção Civil e Gestão de Desastres da Venezuela.
Os contrabandistas se esconderam durante algumas semanas, segundo pessoas envolvidas no negócio de barcos em Guiria. A travessia da família foi adiada.