Dos batalhões para a prisão

Capão Redondo lidera nº de PMs presos em SP; homicídio é o principal crime cometido por policiais

Luís Adorno Do UOL, em São Paulo
Zanone Fraissat/Folhapress
Divulgação/Tribunal de Justiça Militar de SP Divulgação/Tribunal de Justiça Militar de SP

Entre janeiro de 2007 e dezembro de 2017, 3.093 policiais militares do Estado de São Paulo foram presos sob a suspeita de terem participado de algum crime. O número corresponde a 3,5% do total de 87.300 homens em ação hoje no Estado.

Homicídio é o crime mais praticado pelos PMs paulistas, seguido do descumprimento ao estatuto do desarmamento e a concussão (ato de receber vantagem indevida). Mas corrupção, roubo, tráfico de drogas e até estupro estão na lista de 53 tipos de crime cometidos por policiais no período.

O presídio militar Romão Gomes, na Vila Albertina, zona norte da capital, é responsável por abrigar os PMs que tiveram expedidas prisões temporárias ou preventivas, além dos que foram condenados pela Justiça, mas não expulsos ou demitidos da corporação --esses vão para presídios comuns. Hoje, 227 PMs vivem no local.

Levantamento feito pelo UOL com dados dos últimos 11 anos aponta que o batalhão que mais teve PMs presos no Estado foi o do Capão Redondo, zona sul da capital, com 75 homens. Em seguida, estão empatados o batalhão da Rota, a tropa de elite da corporação, e o batalhão da Vila Guarani, na zona sul, ambos com 51 presos desde 2007. Os batalhões de Tucuruvi (49 homens) e Freguesia do Ó (47), ambos na zona norte, estão em quarto e quinto lugares.

Dos 30 batalhões com mais PMs presos no período, apenas quatro estão fora da periferia ou da região metropolitana. Depois da Rota, o de Higienópolis é o segundo não periférico no ranking de policiais detidos, em 13º –de lá, foram presos 36 em 11 anos. Os dados são da própria Polícia Militar e foram obtidos pelo UOL através da LAI (Lei de Acesso à Informação). Como o número de policiais alocados em cada batalhão é sigiloso, só é possível comparar as unidades pelo número total de presos.

De acordo com os dados da PM, é possível saber qual é o batalhão com mais PMs levados ao presídio por homicídio, por exemplo: no topo, está a Rota, com 41 homens presos por suspeita do crime. Na sequência, vêm os batalhões do Capão Redondo (40), Freguesia do Ó (30), Tucuruvi (29) e Carapicuíba (20).

Os dados não incluem supostas trocas de tiros em serviço –neste caso, os dados são nomeados pela SSP (Secretaria da Segurança Pública) como “mortes em decorrência de intervenção policial”, não homicídio. Esse tipo de ação, incluindo mortes praticadas por policiais civis, dobrou no último governo Geraldo Alckmin (PSDB).

Quando os crimes são corrupção e concussão (vantagem indevida recebida por funcionário público por causa de sua função), a maioria dos presos pertence a batalhões rodoviários: ao menos 113 PMs foram pegos em 11 anos, a maioria em flagrante. 

Por roubo e furto, puxam a lista os PMs lotados na Vila Esperança, na zona leste (12 presos), Santo Amaro, na zona sul (8), e Tucuruvi, na zona norte (8). Já o crime de estupro levou PMs de 31 batalhões para a cadeia nos últimos 11 anos –ao todo, foram registrados 95 crimes do tipo. Há, ainda, PMs fora de batalhões na lista, como aposentados ou expulsos da corporação, por exemplo.

A SSP (Secretaria da Segurança Pública) afirmou que não compactua com desvios de conduta e disse que todas as denúncias contra policiais militares e civis são rigorosamente investigadas. O órgão destaca ainda que o número de PMs presos por crimes diversos vem caindo desde 2010.

Matadores x ladrões

As gangues do presídio militar Romão Gomes

Assim como criminosos comuns se dividem por facções dentro das penitenciárias do Brasil, o mesmo ocorre no presídio militar Romão Gomes, segundo informação de promotores do MP (Ministério Público) e de juízes do TJM (Tribunal de Justiça Militar). As gangues dos PMs são os “matadores” e os “ladrões”, de acordo com o MP, que aponta que os matadores são mais respeitados dentro da prisão por matar "bandidos" ou "amigos de bandidos".

A diferença das gangues do presídio militar para as demais do Estado é que não há alas específicas para cada uma delas. Os presos estão todos juntos, mas, durante atividades, como partidas de futebol, os ânimos costumam se acirrar, apontam investigadores. À reportagem, um promotor revelou que "já ocorreu oportunidade em que um preso por homicídio, por exemplo, ajudou os PMs que exercem as funções no Romão Gomes a conter presos por outros crimes".

Um dos presos mais respeitados, segundo a Promotoria, é o soldado da Rota Fabrício Emmanuel Eleutério, condenado a 255 anos, 7 meses e 10 dias de prisão por participação em 17 das 23 mortes da maior chacina de São Paulo, ocorrida em agosto de 2015. Ele foi reconhecido por uma testemunha como um dos atiradores. Entre 2012 e 2015, ele havia sido investigado por 34 mortes na mesma região. Por ser lotado na tropa de elite da corporação e pelas acusações de homicídio, tornou-se um homem respeitado no Romão Gomes.

Segundo um promotor que investigou Eleutério, o soldado quase foi exonerado da PM –o que lhe causaria uma transferência para um presídio comum— depois de se envolver em uma briga no presídio com um PM preso por roubo. “Eu sou da Rota. Você saber o que a Rota faz com ladrão. A Rota não gosta de ladrão”, disse Eleutério durante a briga, segundo o MP. 

Durante seu julgamento, em setembro de 2017, o soldado se defendeu. "Ele chegou mais forte em mim [durante um jogo de futebol], me deu uma cotovelada, houve um empurra-empurra, me mandou para aquele lugar, eu mandei de volta. Depois soube que ele tinha me denunciado."

O outro PM envolvido na briga seria da gangue dos ladrões e tinha uma única testemunha a seu favor, contra várias outras do “bonde” dos matadores. Eleutério foi inocentado da briga por falta de provas. No entanto, para o MP, isso reforça a divisão existente dentro do presídio. Apesar de ter sido condenado pela chacina de Osasco, Eleutério permanece membro da PM paulista.

Outro PM que goza de prestígio entre os presos é o cabo Victor Cristilder Silva dos Santos, condenado a 119 anos, 4 meses e 4 dias de prisão, por participação em 12 homicídios consumados na mesma chacina. Por ser da Força Tática, não da tropa de elite, é menos admirado que Eleutério, segundo o MP.

“O policial militar que mata, que se vinga, não é ladrão. Para ele [policial], ele está sendo um herói, matando ladrões ou quem tenha algum tipo de ligação [com bandidos], nem que seja apenas o bairro. Ele [acha que] é o homem de bem, que está limpando as ruas, ajudando a sociedade”, afirmou em plenário que condenou Cristilder o promotor de Justiça Marcelo Alexandre de Oliveira.

Para o juiz Luiz Alberto Moro Cavalcante, do TJM (Tribunal de Justiça Militar), “a questão do respeito, consideração e prevalência entre eles pode até haver, mas não é permitida e nem tolerada pela administração" do Romão Gomes. "É entre eles.”

Em sua tese de doutorado, o pesquisador Bruno Paes Manso, do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo), já havia detectado, em 2012, a diferença entre esse tipo de preso. “Isso faz parte da história do presídio militar. Os policiais que ficam no chamado ‘seguro’, ou seja, que precisam de maior proteção, são os ladrões, porque o matador é valorizado. Isso faz parte da cultura daquele local”, disse.

A advogada de Fabrício Eleutério, Flávia Artilheiro, afirma que isso “não expressa a realidade do ambiente em que Fabrício está inserido”. Segundo a advogada, “dividir os internos em duas categorias de supostos infratores demonstra claro desconhecimento da realidade”. Ainda segundo a defensora, “a unidade militar é referência entre os estabelecimentos prisionais do Estado, especialmente no que tange à disciplina, e jamais admitiria a formação de grupos ou facções, formal ou informalmente”.

Para o advogado de Victor Cristilder, João Carlos Campanini, ficou provado, em júri, que seu cliente “não é chefe de gangue alguma. Inclusive o júri absolveu ele disso”. “Ele [promotor] tem essa mania feia de não combater o bom combate. Ele não tem coragem de fazer suas alegações na ‘cara’ da pessoa. Depois, vai choramingar por outros meios. Para mim é um promotor medroso e covarde”, disse o advogado, que presta serviços a PMs há mais de 10 anos.

Após petição enviada ao MPM (Ministério Público Militar) sobre a suposta divisão no presídio militar, a Promotoria informou que não há investigações em curso sobre o assunto. O Romão Gomes também informou que não houve investigações sobre o assunto no local.

Divulgação/Ouvidoria da Polícia de SP Divulgação/Ouvidoria da Polícia de SP

O 37º batalhão, líder em nº de presos

Com "serial killer" e grupo de extermínio, Capão Redondo lidera ranking

O batalhão de onde mais PMs foram para a prisão nos últimos 11 anos é o 37º, localizado no bairro Capão Redondo, no extremo sul da capital. São de lá duas manchas históricas da corporação paulista: um soldado chamado de “serial killer”, por matar conhecidos de criminosos na região, e um grupo de extermínio, que assassinava e decapitava as vítimas.

Outro caso, que ganhou repercussão em 2016, é do 37º batalhão: um PM foi afastado depois que suas fotos --vestindo uma máscara do Coringa e empunhando machado e arma contra o rosto de um suspeito negro, durante uma abordagem na região-- foram reproduzidas nas redes sociais e veículos de comunicação.

Apontado como "serial killer" e "justiceiro" pelo MP por matar amigos de criminosos da região, o soldado Eduardo Miquelino, do batalhão do Capão, é acusado de ter participação em ao menos nove assassinatos ocorridos no bairro entre 2014 e 2015: uma vítima em dezembro de 2014, duas vítimas em abril de 2015, uma em maio, três em julho e duas em setembro daquele ano. Ele já foi julgado e condenado por dois dos crimes, somando ao todo 14 anos de prisão.

Procurada, a defesa de Miquelino não quis se manifestar. 

Sete anos antes, em 2008, a Força Tática do 37º Batalhão ficou marcada pelo grupo de extermínio chamado de “Highlanders”, em alusão ao filme em que guerreiros cortavam a cabeça de oponentes. A referência ao grupo militar ocorreu porque cinco das 12 pessoas supostamente assassinadas pelos PMs foram encontradas com a cabeça cortada. Ao todo, segundo o MP, nove PMs foram denunciados, três foram condenados.

"Justiça com as próprias mãos" motiva policiais a matar?

Corporativismo e risco de impunidade do criminoso influenciam ação de PMs, dizem especialistas

O professor de Gestão Pública da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e pesquisador das ações das polícias paulistas, Rafael Alcadipani, analisa como positiva a apuração e prisão de policiais que cometem crimes, porque, para ele, mostra que não há indício de impunidade. “Eu relaciono a letalidade com a existência de subculturas na polícia que incentiva a caça ao criminoso. Também relaciono a letalidade com o fato de o PM perceber que prendeu o suspeito e que ele não vai sofrer algum tipo de punição: vai sair pela porta da frente. Os casos de corrupção eu relaciono com remuneração e condição de trabalho”, diz.

O pesquisador Bruno Paes Manso afirma que, durante seus estudos, entrevistou alguns PMs condenados por homicídios. “Eles justificam [os crimes] pela frustração do trabalho policial. Eles prendiam um criminoso e, depois, eles viam esse criminoso solto, rapidamente. Isso gerava uma revolta, porque eles se expunham, arriscavam suas vidas e se sentiam muitos frustrados”, contou.

Para Paes Manso, outro fator deve ser levado em conta para tentar explicar por que PMs cometem crimes. “Depois da organização do crime, com o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o ataque a policiais, houve um corporativismo para defender os policiais contra o crime. Em 2006, houve as mortes [nos chamados “crimes de maio”]. Os PMs ficaram revoltados porque não foram avisados a tempo. Em 2012, voltou a acontecer, e os PMs se sentiram desprotegidos e sem respaldo do comando. Se sentiram muito vulneráveis”, disse.

“Isso mudou entre 2013 e 2014 com o WhatsApp, porque os PMs começaram a se articular e receber informações”, complementou o pesquisador. Com o repasse de informações, os policiais, segundo o especialista, agora também se organizam contra inimigos. “Esse espírito de guerra me parece que é o que fomenta essa violência que continua muito alta. Em São Paulo, você vê o homicídio cair a cada ano e as mortes provocadas por policiais subir a cada ano. É um fenômeno que merece ser estudado”, analisou.

Segundo a diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, não se pode dizer que a corporação em si faz justiça com as próprias mãos. “Existe um grupo dentro da PM que, sim, acredita na ideia de justiça com as próprias mãos e os dados de letalidade policial [em serviço] mostram isso. O problema é que, embora seja um grupo relativamente pequeno dentro da organização, essa ideia também encontra sustentação entre segmentos expressivos da sociedade, ainda que pregue ações absolutamente ilegais e em descompasso com os pressupostos democráticos”, analisa.

“Não podemos romantizar os homicídios praticados por policiais como atos de justiça. Policiais que se envolvem em chacinas, por exemplo, não querem fazer justiça, estão promovendo vingança”, afirma a pesquisadora em segurança pública.

De acordo com a professora da Universidade de Chicago (EUA) Yanilda María Gonzáles, doutora em ciência política pela Universidade Princeton e especialista em violência policial, "o uso da força letal pela PM não só se diferencia das recomendações da ONU sobre respeito à utilização da força, como indica que, de fato, para muitos policiais militares a força letal é usada para substituir mecanismos legais e do Poder Judiciário."

Gonzáles viveu em São Paulo por nove meses, em 2017, para pesquisar as ações das polícias da América do Sul. Para ela, a grande quantidade de homicídios praticados por policiais paulistas, em função do trabalho ou fora dele, "confirma a percepção de muitos defensores de direitos humanos de que há uma 'pena de morte informal decretada' no país". 

Claudinei Ligieri/Futura Press/Folhapress Claudinei Ligieri/Futura Press/Folhapress

O que diz o governo?

Policiais suspeitos são rigorosamente investigados, afirma SSP

O UOL solicitou em 12 de março entrevistas para discutir o tema com o secretário da Segurança Pública do Estado, Mágino Alves Barbosa Filho, o comandante geral da PM, o coronel Nivaldo Cesar Restivo, e o corregedor da PM, o coronel Marcelino Fernandes da Silva. Os pedidos de entrevistas não foram atendidos. A secretaria da Segurança enviou em 14 de março a seguinte nota:

A SSP esclarece que não compactua com qualquer desvio de conduta e ressalta que todas as denúncias contra policiais, civis ou militares, assim como ocorrências as quais os agentes estejam envolvidos, são rigorosamente investigadas pelas respectivas Corregedorias. Após minuciosa apuração, se comprovadas as irregularidades apontadas, os responsáveis podem ser penalizados na esfera civil e criminal.

O número de policiais militares presos vem apresentando queda, ano após ano e, em 2017, atingiu menor número, resultando em queda de 30%, desde 2010, ano em que mais foram realizadas prisões. Além disso, o número de policiais com desvio de conduta representa apenas 3,51% do efetivo e são a exceção do trabalho realizado pela instituição.

No âmbito preventivo há uma seleção dos candidatos na fase de concursos públicos para o ingresso na PM. Aos que já atuam na carreira, é feito um acompanhamento de desempenho destes agentes.

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