Governo deve R$ 21 bi ao SUS

Dívida da União com o sistema de saúde dispara; Ministério da Saúde diz que prática não é problema

Wanderley Preite Sobrinho Do UOL, em São Paulo
Arte/UOL
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O dinheiro reservado pelo governo federal para bancar a saúde pública em 2018 parece vultoso. O orçamento de R$ 130 bilhões, no entanto, é o segundo de 20 anos em que o Brasil viverá sem aumento real para reformar hospitais públicos, comprar novas ambulâncias ou cuidar da saúde preventiva da população. O que pouca gente sabe é que nem o valor que o Ministério da Saúde reserva para o SUS (Sistema Único de Saúde) vem sendo totalmente executado. Uma dívida que disparou nos últimos anos e que já bate em R$ 20,9 bilhões até o fim de 2017.

O nome oficial desse débito é mais pomposo: chama-se “restos a pagar”, despesas prometidas pelo governo, mas que não são honradas ao final de cada ano. Assim que a União firma um contrato com algum cliente, ela já reserva o valor de pagamento. São os restos a pagar “não processados”. “Quando o trabalho é executado e reconhecido pelo governo, chamamos de restos a pagar processados: só falta desembolsar”, explicou ao UOL a especialista em orçamento público do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) Grazielle David.

A existência desses restos não é necessariamente um problema. Uma situação comum é que a data de vencimento de uma despesa esteja marcada para o ano seguinte da contratação. O que preocupa, diz Wanderley Gomes da Silva, conselheiro do CNS (Conselheiro Nacional de Saúde) --responsável pelo estudo--, é que "a maior parte desses restos a pagar são de despesas contratadas que ainda não se transformaram em serviços de saúde.

O ministério pode ter contratado o fornecedor de medicamentos para distribuir a Estados e municípios [e separado o valor a gastar], mas atrasou o pedido de compra e, portanto, não forneceu os remédios."

Wanderley Gomes da Silva, do CNS

Práticas como essa têm feito o bolo crescer. Em 2003, o valor inscrito e reinscrito como restos a pagar não passava de R$ 14,4 milhões. Em 2017, chegou a R$ 14,3 bilhões.

Adriano Vizoni/NOPP Adriano Vizoni/NOPP

Embora parte da dívida tenha sido amortizada ao longo do tempo, ainda existe um valor acumulado a pagar. A cifra que não foi paga entre 2003 e 2011 soma hoje R$ 1 bilhão. Entre 2012 e 2016, acumulou-se mais R$ 5,5 bilhões. Valor que disparou no ano passado: R$ 14,3 bilhões. Assim, a dívida atual do Ministério da Saúde com o SUS soma R$ 20,9 bilhões.

Esse montante equivale à soma dos orçamentos de nove ministérios: Planejamento (R$ 6,9 bi), Meio Ambiente (R$ 3,2 bi), Indústria e Comércio Exterior (R$ 2,8 bi), Cidades (R$ 2,3 bi), Cultura (R$ 2,1 bi), Integração Nacional (R$ 2,1), Esporte (R$ 490 mi), Direitos Humanos (R$ 271 mi) e Turismo (R$ 261 mi).

Os R$ 9,9 bilhões gastos na reforma e construção dos 12 estádios da Copa do Mundo no Brasil pagariam metade desta dívida. Já o custo dos Jogos Olímpicos de 2016, de R$ 42,5 bilhões, quitariam duas vezes o valor acumulado em restos a pagar.

Ao UOL, o Ministério da Saúde não vê a prática como problema e explicou que os pagamentos dos restos a pagar ocorrem quando são satisfeitas as condições para tanto, como a entrega de medicamentos. "Muitas vezes, recursos empenhados ao final do exercício não são pagos no mesmo ano apenas por conta da impossibilidade de efetivação de todos os trâmites administrativos."

Jurandir Badaró/Futura Press/Estadão Conteúdo Jurandir Badaró/Futura Press/Estadão Conteúdo

Onde faltou dinheiro

Entre janeiro e dezembro de 2017, o Samu (Serviço de Atendimento Médico de Urgência) ficou sem R$ 96 milhões, enquanto o Programa Saúde da Família, criado para prevenir e tratar doenças em estágios iniciais, deixou de receber R$ 895,9 milhões.

Hospitais deixaram de se reequipar, já que R$ 1,3 bilhão --de R$ 1,5 bilhão empenhado-- não chegou para o reaparelhamento do SUS. O ministério deixou de repassar R$ 3 bilhões dos R$ 9 bilhões reservados para comprar vacinas e realizar a campanha de vacinação. Até a aquisição de medicamentos para DST e Aids minguou: R$ 346 milhões se transformaram em restos a pagar.

Para Grazielle, “o aumento desse volume de restos no Ministério da Saúde preocupa”. 

Com o tempo, pode ficar muito difícil conseguir pessoas interessadas em executar obras para o governo. Pode haver descredenciamento de fornecedores privados de exames e dificuldade em conseguir insumos"

Grazielle David, especialista em orçamento público do Instituto de Estudos Socioeconômicos

Pedalada fiscal?

O conselheiro do CNS, que também coordena a Comissão de Orçamento e Financiamento da instituição, lembra que 2/3 das despesas do Ministério da Saúde são transferências para Estados e municípios, que utilizam esses recursos para o financiamento de suas despesas com pessoal, fornecedores e prestadores de serviços e obras. “Esses atrasos nos repasses prejudicam o pagamento no prazo.”

A principal preocupação do coordenador, no entanto, é com a “irresponsabilidade fiscal” estabelecida pelo congelamento dos gastos públicos até 2036, resultado da Emenda Constitucional 95 (EC-95), aprovada em 2016. “De nada adiantará a economia voltar a crescer nos próximos 20 anos se os recursos do Ministério da Saúde para pagar suas despesas ficarem limitados aos mesmos níveis de 2016.”

Grazielle explica que a EC-95 obriga os ministérios a utilizarem apenas o orçamento executado, mas o Ministério da Saúde inclui no orçamento anual os restos a pagar empenhados. “A diferença entre o que é prometido e pago vai se acumulando ano a ano, mas o teto de gasto não está subindo.” A dívida, então, cresce. 

A especialista compara a situação ao pagamento de uma conta com “um cheque sem fundo”. “Prometer no orçamento anual um mínimo em saúde, mas rolar parte dele sem previsão de pagamento é como uma propaganda enganosa. Uma manobra e talvez até uma pedalada fiscal.”

Ao UOL, o Ministério da Saúde afirmou em nota que "a Lei Complementar nº 141/2012 [LC-141], que dispõe sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União em ações e serviços públicos de saúde, determina que para efeito do cálculo do mínimo constitucional serão consideradas as despesas pagas bem como as inscritas em restos a pagar." De acordo com a lei, a União precisa gastar a cada ano o mesmo valor do ano anterior mais a variação nominal do PIB (Produto Interno Bruto), que no ano passado foi de 1%. 

Graziele defende, no entanto, que a EC-95 sobrepõe a LC-141. "Hierarquia das leis. Emenda Constitucional é superior à Lei Complementar." Francisco Funcia, consultor técnico do CNS, diz ainda que a própria LC-141 obriga o Ministério da Saúde a comprovar a existência de recursos em caixa ao final de cada ano, "o que a pasta não tem cumprido".

Para o conselheiro do CNS, “o pior de tudo” é que o Ministério da Saúde não submete à análise do Conselho Nacional de Saúde as escolhas sobre o que deixar de pagar. “Mais grave do que a propaganda enganosa é o governo deixar de suprir as necessidades de saúde da população como planejado no orçamento.”

Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde não respondeu às acusações de "pedalada fiscal" e "propaganda enganosa", e não justificou porque não consulta o CNS sobre as escolhas do que deixar de pagar. 

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