Mentira que mata

O passo a passo do 1º caso de repercussão no Brasil em que notícias fraudulentas levaram a uma tragédia

Juliana Carpanez Do UOL, em São Paulo
Keiny Andrade/UOL

Naquele sábado, 3 de maio, nenhum dos cinco homens depois acusados de homicídio saiu de casa para matar. Moradores de Morrinhos, em Guarujá (SP), eles estavam nesse bairro de periferia quando se depararam com uma confusão e se juntaram a --ao menos-- dezenas de pessoas que gritavam por justiça. A multidão, revoltada, acompanhava Fabiane Maria de Jesus, 33, arrastada e violentamente agredida numa via-crúcis que durou cerca de duas horas. Ela acabou sendo resgatada, mas morreu dois dias depois.

Por trás do encontro improvável e não planejado entre todas essas pessoas estavam as fake news. O ano era 2014, ainda antes de o mundo tomar conhecimento do poder nocivo das notícias fraudulentas, que podem manipular eleições, acabar com reputações e destruir vidas. No caso de Fabiane, literalmente. 

'Nunca achei que fosse possível uma mentira matar uma pessoa'

Trata-se do primeiro caso de grande repercussão no Brasil em que boatos pela internet serviram como fio condutor para uma história de final trágico. O primeiro grande alerta de que um post enganoso pode matar. 

Um resumo de como chegamos até aqui. Dias antes do linchamento, uma página no Facebook chamada “Guarujá Alerta”, com 56 mil curtidas, publicou informações sobre “uma mulher que está raptando crianças para realizar magia negra”, supostamente na região. Além da frase “se é boato ou não devemos ficar alerta”, o administrador postou imagens: um retrato falado (associado a um crime cometido no Rio, em 2012) e a foto de uma mulher loira, que tampouco tinha a ver com o caso.

As duas eram bem diferentes entre si. E nenhuma delas parecia Fabiane, que morreu ao ser confundida com a tal sequestradora. A história fica ainda pior, se for possível, pelo fato de a criminosa em questão nem sequer existir: naquela época, depois a polícia elucidou, não havia nenhuma denúncia de sequestro de crianças em Guarujá. 

Nunca achei que fosse possível uma mentira matar uma pessoa, da forma como aconteceu. O primeiro estopim foi a notícia. O segundo, a foto, que deixou aquela informação mais concreta. Se não tivesse a foto, ela ainda estaria viva
Jaílson Alves das Neves, viúvo de Fabiane

Desde então, histórias bárbaras como esta se repetem. Recentemente, na Índia, um homem de 26 anos foi confundido com um sequestrador de crianças exibido em um vídeo. Apanhou até a morte. Novamente uma invenção: tratava-se de uma campanha veiculada no Paquistão, alertando para a segurança dos menores nas ruas. O material foi editado e compartilhado via redes sociais, levando a população em pânico a matar outro inocente --nos últimos meses, o país registrou dezenas de casos parecidos.

Grandes empresas de tecnologia e de comunicação vêm criando mecanismos para reduzir o alcance e também desmentir as notícias falsas --é o caso do Comprova, projeto que reúne 24 organizações brasileiras de mídia, do qual o UOL faz parte. Para o viúvo Jaílson Alves das Neves (foto), 44, no entanto, o estrago das fake news é irreversível: “O que fizerem daqui para frente não vai mudar minha vida, não vai trazer a Fabiane de volta. Pode mudar a de outras pessoas, evitar que aconteça novamente, mas o que aconteceu em minha vida não vai mudar”.

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

Ausência de Fabiane

Jaílson, nascido na Bahia, e Fabiane, no Rio, eram primos. Eles se conheceram na infância e se reencontraram em Guarujá, onde então moravam, no aniversário de 16 anos dela. Três meses depois, começaram a namorar. Tiveram duas filhas, hoje com 17 e cinco anos. A mais velha é calada, parecida com o pai. A mais nova, falante, puxou a mãe. “Tive de colocar sozinho o barco para andar”, diz o viúvo, para quem a maior falta está no convívio entre mãe e filhas. 

Ele lembra da mulher como uma pessoa “boa, extrovertida, alegre, que conversava muito e pegava amizade fácil”. Fabiane também gostava de fazer cursos: “hotelaria, tricô, informática, um monte deles. Ela não gostava de ficar parada”, continua. Ela era dona de casa. Ele, porteiro, trabalhava à noite. Há três meses, Jaílson está desempregado e não sabe o que vai fazer: “O que pintar está bom”. 

Na casa da família, em Morrinhos, Fabiane já não se faz mais presente. Não há fotos dela expostas, apenas em álbuns guardados no quarto. Suas roupas e objetos pessoais foram doados. O viúvo tem uma namorada, que estava no local no dia da entrevista. A filha mais velha, que chegou a ver na internet fotos da mãe espancada, não fala sobre o assunto. A mais nova, com apenas um ano na ocasião, sabe apenas que sua mãe está no céu --onde já pediu para a avó paterna levá-la.

A lembrança mais à mão é uma bíblia da antiga dona da casa, com seu nome e telefone na contracapa. Naquele sábado, 3 de maio, Fabiane saiu para buscar essa mesma bíblia, deixada em uma igreja que ela frequentava em Morrinhos. Durante a agressão, chegaram a dizer que o livro --com os dizeres Bíblia Sagrada na capa-- era uma publicação de magia negra. E os santinhos guardados entre as páginas, fotos das crianças que ela havia sequestrado.

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Coincidências trágicas

Na noite anterior ao linchamento, Jaílson voltou a trabalhar às 23h, depois de um período de férias. Antes de sair, deu os remédios para Fabiane, que sofria de transtorno bipolar e estava em crise. As filhas foram dormir com a avó paterna, Maria de Jesus, na casa de cima. Fabiane ficou sozinha e, entre a noite de sexta e a manhã de sábado, descoloriu os cabelos.

Uma semana antes, enquanto o boato sobre a sequestradora ganhava força, Fabiane havia cortado os longos fios na altura do ombro e os tingido de ruivo. Não gostou: segundo o marido, a intenção era descolorir para depois voltar à cor preta. Ao concluir apenas a primeira etapa desse plano, seus cabelos ficaram curtos e relativamente loiros --como os da mulher no Facebook, divulgada na página “Guarujá Alerta”. Foi assim que ela saiu de casa no sábado.

Pela janela, a sogra a viu de bicicleta, mas não reparou na mudança do visual. Fabiane buscou sua bíblia e foi até o trabalho do marido, que já havia saído: os dois se desencontraram. Passou no mercado onde a irmã trabalhava e comprou bananas. Seguiu para a casa das primas, também em Morrinhos, quando “teve o acontecido”, como descreve Jaílson.

Não há testemunhas que relatam o início das agressões --ou como um fósforo foi riscado onde as fake news já haviam espalhado gasolina. Na versão que se tornou oficial, sem origem certa, a mulher ofereceu banana para uma criança. Os pais viram a cena e a acharam parecida com a tal “bruxa do Guarujá”. Correram para avisar um rapaz de prontidão na biqueira, que já chegou batendo em Fabiane. Todos os depoimentos começam a partir daí, quando testemunhas e acusados se depararam com o linchamento já em curso.

Foi uma sequência de coincidências trágicas, fazendo as peças se encaixarem para formar esse evento. E mesmo quem conhecia a Fabiane não a reconheceu por causa do cabelo
Airton Sinto, advogado da família

FolhaPress FolhaPress

'A moça da internet'

Cinco homens que participaram do linchamento foram condenados, entre outubro de 2016 e janeiro de 2017, à pena máxima de 30 anos de reclusão cada. Foi também determinada uma indenização à família, de R$ 550 mil, que dificilmente será paga: pela condição financeira dos condenados, a multa foi classificada como “simbólica”. 

Nos depoimentos à Justiça, dois deles, Carlos e Abel, disseram não ter ouvido nada que associasse a mulher linchada aos boatos virtuais. Foi diferente com Lucas: “O povo comentou que era a mulher da internet, que era da página Guarujá Alerta”. Com Jair: “Disseram que a mulher era a que tinha saído no Facebook, relacionada com magia negra”. E com Valmir: “O povo dizia que a história da moça ser sequestradora estava na internet”.

Cada um à sua maneira, eles se juntaram à horda --de homens, mulheres (grávidas) e até crianças-- que atacava Fabiane (foto), incapaz de se defender. O número de participantes certamente soma dezenas: porém se fala em centenas e até milhares, dependendo de quem conta a história. Em depoimento à polícia, uma testemunha calculou "mais de 3.000". 

Valmir, hoje com 52 anos, deu uma paulada com uma viga na cabeça de Fabiane. Disse que não tinha a intenção de matar e que foi movido pela revolta. “Se eu soubesse que não era a sequestradora, jamais teria agredido”, afirmou em depoimento. 

Lucas, 23, aproximou-se da confusão com sua bicicleta. Quando viu a mulher deitada no chão, ergueu a roda da frente e bateu com o pneu em sua cabeça. Explicou que foi “um ato de emoção” e “não teve a intenção de matar”. Com um fio de eletricidade encontrado na rua, amarrou os punhos da vítima para arrastá-la. Para isso, contou com a ajuda de Abel. 

Carlos, 28, chegou ao local quando as pessoas gritavam “mata, mata”. Aproximou-se de Fabiane quando ela estava machucada e deitada com a cara no chão. Puxou os cabelos para ver seu rosto, que estava sangrando. Depois, bateu com a cabeça dela no chão.

Abel, 22, disse estar passando quando viu o tumulto e a mulher com os punhos já amarrados. Segurou o fio, segundo ele, esperando a polícia chegar. Negou a participação no crime e também negou ser a pessoa que aparecia em um vídeo, amarrando os braços da vítima. Sua mãe, no entanto, o reconheceu nas imagens.

Jair, 39, contou que ergueu a mulher para tirá-la dali, quando a ponte onde estavam cedeu e Fabiane caiu. Foi uma queda de meio metro, em um mangue. Naquele momento, afirmou, queriam colocar fogo na mulher, já muito machucada. Disse ainda que perguntou o nome de Fabiane e, quando ela respondeu, ele tentou alertar as pessoas sobre a confusão. Por isso, disse, ele tomou um chute.

Moradores do bairro Morrinhos IV passaram a apontar a vítima Fabiane como a responsável pelo sequestro de crianças e pela prática de tais rituais, de sorte que diversas pessoas, dentre elas os acusados, decidiram matá-la, agredindo-a violentamente com socos, chutes, pauladas e outros golpes
Trecho da condenação dos acusados

Psicólogos citam efeito de manada

Como as agressões físicas foram motivadas por alertas via internet, elas já começaram com uma carga excessiva típica do ambiente virtual, diz Cristiano Nabuco, psicólogo do Grupo de Dependências Tecnológicas do PRO-Amit (Programa Integrado dos Transtornos do Impulso), do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo.

“Quando as pessoas se comunicam online, o cérebro não tem um retorno imediato que indica se estão sendo bem compreendidas, como acontece presencialmente. Por isso, a personalidade eletrônica ‘exagera’ em suas características, apresentando-se de forma mais agressiva ou erotizada, por exemplo, do que realmente é. Os ataques, portanto, iniciaram com alguns graus de emoção acima do que teria acontecido se a história estivesse toda no ambiente offline”, compara o especialista.

Somado a esse primeiro momento de fúria, houve o chamado comportamento de manada, quando os indivíduos agem de acordo com o grupo. “Encontraram alguém que julgaram ter infringido um valor muito importante e criou-se um vale tudo, pois consideraram que aquela pessoa merecia ser sacrificada. Assumiram que aquele alguém não era como eles e lidaram com suas inquietudes agredindo o diferente. Eles estavam no calor do momento e na mesma sintonia, sendo que a massa humana é burra, não pensa.” Segundo Nabuco, esse tipo de situação está ligado ao funcionamento das áreas mais primitivas do cérebro.

Andréa Jotta, psicóloga e pesquisadora do LEPTIC (Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação) da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), compara a situação a uma forma extremada e violenta de extravasar o ódio, como acontecia no Coliseu de Roma.

“O virtual possibilita o encontro de pessoas com os mesmos interesses, as mesmas visões. Isso acaba se transferindo para o offline também. Nesse caso, havia um ambiente já violento, onde as pessoas se juntaram por causa de uma notícia falsa. E as fake news têm a característica de corroborar pensamentos e ideias, fazendo com que sejam passadas adiante. Mesmo sem a certeza de serem reais ou falsas”, explicou.

A multidão em busca de justiça, portanto, deu e recebeu apoio de uma forma extremada quando encontrou aquela que todos julgaram ser a causa de seu problema. Problema esse que não existia, é importante reforçar.

Sem fronteiras entre online e offline

Uma viatura tentou chegar ao local do linchamento, mas foi impedida pela população. Voltou com reforço policial e também com uma equipe de resgate, que só puderam entrar na presença da imprensa, pois os moradores queriam registrar a captura da criminosa --um comentarista de segurança da TV Record foi até o local, onde fez uma gravação.

Em entrevista à TV, ainda no calor dos acontecimentos, uma mulher afirmou: “Muito me admira esse relato [da sequestradora] não ter chegado a nenhum jornal ainda. Porque isso tá [sic] acontecendo não é de agora, então a gente tem que tomar uma atitude.” Dias depois, seu depoimento à polícia teve um tom bem diferente. Ela disse ter chegado perto de Fabiane e perguntado o que estava acontecendo, quando a vítima disse: “Não foi eu [sic]”. A depoente afirmou então ter ficado sensibilizada com a situação, pois viu que “a moça não tinha nada a ver”.

Ainda segundo essa mesma moradora de Morrinhos, o medo da população era de que “a polícia não responsabilizasse a moça, pois todos estavam crentes que ela era a sequestradora de crianças”. Ela contou também que muitas pessoas chegaram de fora da comunidade, em motos e carros, para ver o ataque à suposta criminosa.

As câmeras dos celulares daquela multidão funcionaram durante toda a confusão no Morrinhos, permitindo posteriormente a identificação dos envolvidos. Fecha-se assim o círculo dessa história sem fronteiras entre online e offline. Os boatos que se espalharam com ajuda da internet levaram ao espancamento e à morte (reais) de uma mulher. E essas agressões físicas, nas ruas de Guarujá, foram depositadas também na internet, levando depois à prisão dos protagonistas.

Um agravante é que as imagens chegaram inclusive à família. Na volta do trabalho naquele sábado, quando se preparava para dormir, Jaílson recebeu um telefonema da prima, pedindo que fosse até sua casa. Foi lá, no computador dela, que o marido viu as fotos de sua mulher espancada --ele não sabe especificar em qual página. “Estava todo mundo em choque, sem querer acreditar no que via. Na hora eu reconheci”, diz o viúvo.

De maneira parecida, a sogra e a filha mais velha da vítima ficaram sabendo da tragédia. Uma vizinha bateu à porta, com celular em punho, perguntando se aquela mulher linchada das imagens era Fabiane. Maria de Jesus achou que não: a cor do cabelo da nora era outra. A garota então informou para a avó que havia produtos químicos na pia do banheiro de sua casa, indicando que sua mãe havia descolorido os fios. 

Fabiane foi levada para o Hospital Santo Amaro, onde ficou internada na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) durante duas noites. Ela morreu na manhã de segunda-feira sem nunca ter dado sua versão sobre aquilo que aconteceu. 

Keiny Andrade/UOL Keiny Andrade/UOL

Incitação via internet

“Foi possível reconhecer cinco agressores e todos receberam a pena máxima. Então 100% do que poderia ter sido feito, nesse sentido, foi feito. Mas quantos agrediram? Muitos outros, que não foram identificados. Muita gente tirou uma casquinha, praticando a selvageria: vibraram, chutaram, cuspiram, xingaram. Em pouquíssimas ocasiões, nos áudios dessas gravações, é possível ouvir uma voz coerente pedindo calma”, afirma o advogado Airton Sinto (foto), que já conhecia a família e passou a representá-la no caso.  

Além daqueles que participaram do linchamento, ele quis incriminar o responsável pela página “Guarujá Alerta”, tirada do ar logo em seguida. Não conseguiu, segundo explica, pois a lei não previa a incitação via internet de um crime. A reportagem tentou contato diversas vezes com o advogado que representou o administrador da “Guarujá Alerta”, mas ele não atendeu o celular nem o telefone fixo. Em entrevista à Folha, o homem disse não se sentir responsável pelos acontecimentos.

Dez dias após as agressões, o deputado Ricardo Izar (PP-SP) apresentou um projeto de lei elaborado com Airton Sinto que prevê a instituição, no Código Penal, da incitação virtual ao crime. A proposta passou por modificações e, na versão aprovada pela Câmara em março de 2017, a pena do artigo 286 (incitar, publicamente, a prática de crime) subiu de três a seis meses para um a três anos –nos dois casos, com multa. O texto também prevê aumento da punição em um terço, caso seja via internet ou meios de comunicação em massa. O projeto ainda aguarda aprovação no Senado.

Enquanto isso Jaílson vai tocando seu barco, como ele mesmo diz. “Até hoje eu não entendi direito o que aconteceu. É uma história com muitas coincidências, difícil de entender.”

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