Crianças "malditas"

Acusadas de bruxaria, elas são torturadas e abandonadas pelas próprias famílias

JULIANA CARPANEZ DO UOL, EM SÃO PAULO
Arquivo pessoal/Gary Foxtrot

Aos 15 anos, Josiane* foi declarada bruxa. Uma parente chegou a esta conclusão depois de alguns infortúnios, considerados evidências de feitiçaria. Vamos então às “provas”. Primeiro, a morte natural de seu pai. Depois, o ataque epilético de um primo, para o qual o médico não encontrou explicações. “A mulher de meu tio disse que eu era responsável pela doença do garoto, pois ela nunca tinha visto algo parecido”, lembra. Bastou esta declaração para a jovem ganhar o título maldito e sua vida mudar. Para pior, é claro. 

Os tios --com quem foi morar depois de órfã-- deixaram de pagar uma taxa escolar, impossibilitando que Josiane continuasse os estudos. As agressões continuaram até ela ser expulsa de casa, indo viver sozinha nas ruas de Goma, República Democrática do Congo. “Eu dizia a mim mesma que deveria evitar contato com outras crianças, para não dizerem que eu lhes fazia mal. Quando falavam que eu era bruxa, doía”, relatou a garota. Foi isso que ela enfrentou por um ano, até ser resgatada em 2013, aos 16, por uma organização associada ao Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância, na sigla em inglês).

Reprodução/Facebook/anja.loven Reprodução/Facebook/anja.loven

Um problema de muitas Áfricas

O cenário deste drama é a República Democrática do Congo, mas a história poderia se passar em muitos outros países, principalmente da África. Angola, Nigéria, Camarões, República Centro-Africana, Libéria, Serra Leoa, Tanzânia, Burundi e Gabão aparecem no estudo mais completo sobre crianças acusadas de bruxaria, divulgado pelo Unicef em 2010.

Segundo o relatório, não é possível generalizar as práticas simplesmente como “tradições africanas”: “A África contemporânea é uma mistura de representações antigas que se recusam a desaparecer com uma ânsia por modernidade que fascina e assusta em proporções iguais”.

Existe, no entanto, uma característica comum para todas essas “Áfricas”. Seus problemas tendem a ser ignorados, mesmo no caso de crianças sendo agredidas, queimadas, torturadas e até mortas quando acusadas de bruxaria --aqui, sempre com conotação negativa.

Uma pesquisa do Parlamento Europeu menciona casos registrados no Reino Unido e na França, principalmente devido à migração para estes países. Há também registros em Bolívia, Guatemala, Haiti, Índia, Indonésia, Irã, México, Nepal, Paquistão, Tailândia, Arábia Saudita e Síria. 

O nível de atenção para o problema aumenta ocasionalmente, como aconteceu no início de 2016, com uma foto viral no Facebook. Na imagem, uma voluntária aparece dando água para um garoto subnutrido então com cerca de dois anos, abandonado pela família.

O menino recebeu o nome de Hope (esperança, em inglês), a mulher é Anja Lovén e a foto causou comoção, ganhando destaque no noticiário internacional. Por isso, a fundação criada por essa dinamarquesa para resgatar crianças acusadas de bruxaria na Nigéria recebeu milhares de dólares e o mundo compartilhou --mesmo que só por um clique-- a dor de um problema geralmente invisível.

O relacionamento de Anja e Hope vai muito além desta foto e, como seus nomes sugerem, traz uma mensagem de otimismo. Mas o final feliz --ou pelo menos seu equivalente diante de um contexto tão cruel-- fica para daqui a pouco.

Reprodução/Instagram/dinnoedhjaelp Reprodução/Instagram/dinnoedhjaelp

A garota que acreditou virar barata

As crianças suspeitas de feitiçaria geralmente sofrem tortura para confessarem seus poderes sobrenaturais. E, com esses atos de violência física e psicológica, acabam “admitindo” sua condição anormal. É o caso de Stéphane, 12, que contou a uma antropóloga do Unicef como se transformava em uma barata durante a noite.

Há muita discriminação e também abandono: a ONG (organização não governamental) britânica Safe Child Africa estima que 80% dos menores acusados de bruxaria fogem ou são expulsos de casa. 

Com idades de três a 18 anos e geralmente do sexo masculino, os jovens podem ser acusados de feitiçaria por uma série de motivos --não há consenso sobre a quantidade de vítimas, mas se fala em milhares. Na mira estão portadores de problemas como epilepsia, tuberculose, autismo, síndrome de down e gagueira. Alguns comportamentos aumentam os riscos: crianças teimosas, agressivas, contemplativas ou preguiçosas. O parto também pode ser um determinante, caso o bebê tenha nascido prematuro ou vindo ao mundo em uma posição incomum.

“Muitas crianças sabem da crença em bruxaria e têm esse medo [da acusação], que é passado a elas por seus pais e pelas igrejas. O medo é onipresente. E muitas crianças realmente acreditam ser bruxas, pois sofrem uma lavagem cerebral. O tempo, o amor e a afeição podem convencê-las do contrário, mas as cicatrizes psicológicas são difíceis de serem tratadas”, analisa Gary Foxcroft, criador e diretor-executivo da Whrin, uma rede que promove a informação e os direitos humanos para combater acusações de bruxaria.

Reprodução/Instagram/dinnoedhjaelp Reprodução/Instagram/dinnoedhjaelp

Na lista de alvos destacam-se principalmente os órfãos, como Josiane, do começo desta reportagem. “Se só perdeu o pai ou a mãe, o adulto que continua vivo pode começar uma nova família e ter mais filhos. Ao contrário dos meio-irmãos, os órfãos geralmente não vão à escola e sofrem maus-tratos. Se algum infortúnio acometer a família, o órfão é o principal suspeito e pode ser acusado de ter matado os pais”, explica o relatório do Unicef.

São grandes, portanto, as chances de a culpa recair sobre estas crianças. Basta considerar a frequência de adversidades em países repletos de pobreza, fome, corrupção, falta de educação, violência, guerras civis e presença de organizações terroristas.

Carlo Allegri/Reuters Carlo Allegri/Reuters

Uma vítima para cada crença

A maldição das crianças também tem variações associadas a crenças regionais. Dependendo da nação, por exemplo, gêmeos podem ser idolatrados, separados ou mortos. Como seu nascimento é considerado anormal, acompanha crenças e rituais. Em Gana, representam um mundo místico associado aos espíritos. Em Camarões e Serra Leoa, são reverenciados por sua benevolência. Algumas etnias acreditam que eles são animais, com capacidade de se transformar e fazer uma mediação entre o mundo animal e o divino.

Na Tanzânia, as principais vítimas são os albinos: considerados criaturas mágicas (aqui algo positivo), eles têm partes do corpo amputadas e podem ser mortos. Sua pele, mãos, orelhas, crânio, coração, língua e órgãos genitais são então vendidos como amuletos para trazer prosperidade ou misturados em poções e pós que teriam propriedades mágicas. Alguns foram levados em 2017 a um hospital da Filadélfia (EUA), onde receberam próteses --o mais velho, com 15 anos, teve um braço e os dedos da outra mão arrancados. Ele tinha dificuldade de falar, pois tentaram arrancar sua língua.

Independentemente das diferentes crenças, geralmente são os infortúnios que dão origem às acusações [de feitiçaria]. E elas levam à violência contra membros mais vulneráveis da sociedade
Gary Foxtrot, da rede para combate às acusações de bruxaria

Arquivo pessoal/Gary Foxcroft

Crise, ignorância e exorcismo

Assim como as consequências, as causas do problema são impactantes. Antropólogos falam de uma “multicrise”, marcada por sérias dificuldades econômicas, políticas e sociais. No caso de famílias desestruturadas, a acusação de feitiçaria pode ser conveniente: alguém a usa para se livrar de uma criança malquista. Outro agravante está na proliferação de igrejas que disseminam a crença das crianças bruxas: muitas fazem isso para ganhar dinheiro com sessões de exorcismo.

Para Anja Lovén, a origem do problema está na ignorância. A dinamarquesa fala sobre a caça às bruxas em séculos anteriores, que queimou milhares de mulheres em fogueiras. “Se isso acabou na Europa, por que continua acontecendo na Nigéria? A resposta é fácil: porque naqueles países as pessoas tiveram a chance de ir para a escola, fazendo com que a sociedade se desenvolvesse. Crenças sobre espíritos maus e demônios só se propagam em comunidades de pobreza e ignorância extremas. A educação é a chave para combater essas superstições”, afirma. 

A crença em bruxaria é resultado da falta de educação, que leva à ignorância. As escolas têm um papel importante em moldar o futuro de uma nação
Anja Lovén, que resgata na Nigéria crianças acusadas de bruxaria

A ignorância dificulta a ação da Justiça. Na República Democrática do Congo, por exemplo, acusar uma criança de bruxaria pode render pena de um a três anos de prisão. Mas boa parte da população desconhece a lei, que acaba não surtindo efeito. Já na República Centro-Africana, condena-se a prática de bruxaria --e a principal prova é a confissão, aquela em que se chega pelo caminho da tortura. Uma órfã chamada Sophie foi detida aos 13 anos, pois sua família paterna desconfiou de bruxaria. Agredida, acabou admitindo que herdou os poderes da mãe. Nem a ressalva de “não saber como usá-los” a livrou da condenação. Aos 13 anos.

Em uma lista de recomendações, o Unicef propõe medidas ligadas a esses problemas mencionados. Entre elas, reforçar a proteção de crianças, estreitar o diálogo com líderes religiosos, aprofundar o conhecimento sobre acusações de bruxaria, educar e mobilizar as comunidades, proteger famílias vulneráveis, criar lugares seguros para reintegração das vítimas e controlar registros de nascimento, além de regular as atividades de curandeiros e de algumas correntes de igrejas (“que pregam sua fé como um escudo divino contra a bruxaria”).

Reprodução/Instagram/dinnoedhjaelp

A arriscada missão do resgate

Se os próprios países não conseguem lidar com este desafio, a missão é reforçada por instituições independentes e muitas vezes estrangeiras. O britânico Gary Foxcroft, por exemplo, já teve uma ONG para empoderar crianças estigmatizadas como bruxas, organizou conferências internacionais sobre o tema, protagonizou o documentário “Saving Africa’s Witch Children” e hoje promove globalmente a conscientização e o entendimento sobre violações de direitos humanos motivadas por acusações de bruxaria.

Questionar crenças tão enraizadas não é tarefa simples, como você pode imaginar. Foxcroft revela ter recebido diversas ameaças, sido difamado na internet e recebido processos de uma pastora nigeriana que se intitula caçadora de bruxas (um de seus livros diz: “Se uma criança com menos de dois anos gritar à noite, chorar e tiver problemas de saúde, ele ou ela é um servo do Satã”). Foxcroft ganhou as batalhas judiciais, mas diz que perdeu tempo, dinheiro e energia para se defender. Anja afirma sofrer ameaças de aldeões sempre que sai em missões de resgate na Nigéria, onde fica o tempo todo sob proteção de guardas armados.

A terra da esperança

Se você chegou até aqui, conhecerá agora a terra da esperança, aquela que foi prometida lá no início deste texto.

“Land of Hope” é o nome de uma vila em Akwa Ibom (Nigéria) construída em 2016 para abrigar a instituição DINNødhjælp. Criada por Anja em 2012, depois que vendeu todos os seus bens e abandonou o emprego em uma loja na Dinamarca, essa organização cuida atualmente de 46 crianças. Elas foram resgatadas nas ruas, não podem ser adotadas e não têm idade limite para deixar o local (podem ficar até quando precisarem). A instituição vive de doações e, futuramente, terá outra fonte de lucro com a venda de caramujos criados na própria vila --nutritivos, eles fazem parte do cardápio dos africanos. 

Reprodução/Instagram/dinnoedhjaelp

A primeira criança resgatada por Anja foi Victor, 15, há cinco anos. Abandonado pela família após o padrasto acusá-lo de bruxaria, o jovem vivia sozinho nas ruas, doente e com medo. A princípio, não falava muito nem era um bom aluno: preferia jogar futebol. Os funcionários da ONG perceberam então seu interesse em tecnologia, o garoto fez um curso e mostrou-se brilhante em ciência da computação.

Shedrach, 17, outro jovem resgatado, é o primeiro da ONG a frequentar uma faculdade --a instituição fica em outra cidade, mas ele volta aos finais de semana para esse lugar que chama de casa.

“Os melhores momentos são quando percebo a transformação. De abandonados, excluídos e medrosos, eles se tornam bons alunos, cheios de autoestima e com propósito de vida. Testemunhar isso é um milagre. Milagre que só acontece quando você dá tanta energia a seus sonhos quanto aos seus medos”, afirma Anja.

Transformação gritante é a do pequeno Hope, com idade entre três e quatro anos. Depois daquela foto, que Anja considera um “marco” por ter chamado a atenção do mundo, o garoto recebeu transfusão de sangue e ficou internado entre a vida e a morte. Hoje aparece nas fotos saudável, sorridente e frequenta a pré-escola.

Sobre este e todos os outros resgates, Anja conta qual a lição mais valiosa que aprendeu: “Você nunca viveu de verdade até fazer algo por alguém que nunca poderá recompensá-lo”.

Reprodução/Instagram/dinnoedhjaelp Reprodução/Instagram/dinnoedhjaelp

''Crianças africanas são muito fortes''

UOL – Depois de resgatá-las, como convence as crianças de que elas não são amaldiçoadas? Como lidam com o trauma psicológico?

Anja Lovén – Assim que a criança é resgatada, fazemos seu perfil psicológico e o processo de reabilitação começa. A princípio, ela geralmente está confusa e com medo. Mas, quando começa a ver outras crianças, sentir a segurança e o amor que passamos, elas rapidamente relaxam e se adaptam.

As crianças africanas são muito fortes. Mais fortes que as crianças do mundo ocidental. O ambiente onde elas crescem geralmente é muito pobre, duro, áspero. Muito jovens, eles já se tornam independentes e aprendem habilidades para sobreviver.

Como é este processo de reabilitação?
O mais importante é garantir que essas crianças tenham a chance de ir para a escola. A educação oferece às crianças conhecimento sobre o mundo. Pavimenta o caminho e ajuda a construir uma carreira. Ao ir para a escola, elas aprendem a pensar por elas mesmas, tornam-se sociais e ganham confiança. Todas as nossas crianças vão para a escola e o processo de reabilitação acontece muito rápido quando existe essa chance.

Eles também se curam por meio de brincadeiras. Baseadas em práticas de terapia, as brincadeiras promovem um processo de comunicação e conhecimento entre as crianças, ajudando-as a se expressar e a aprender. Ganham assim ferramentas para ter mais autocontrole, equilíbrio e autoestima. Nossas crianças realmente precisam reconstruir sua autoestima depois de terem sido rejeitadas pela família e por toda a comunidade.

Como é possível erradicar um problema baseado em crenças tão fortes?
É possível mudar a cabeça dos aldeões com programas de apoio e de visitas. Chamamos isso de reunificação e frequentemente levamos nossas crianças de volta para visitar suas famílias. Muitas fazem isso todos os meses, criando novamente um elo forte com seus familiares. Alguns parentes também os visitam em nosso centro para crianças.

Quando as crianças vão até suas antigas casas, estão fortes, cheias de saúde, de confiança e de autoestima. Isso leva aquelas pessoas a refletirem. Os aldeões aos poucos se dão conta de sua própria ignorância e percebem que as crianças não são bruxas.

* O nome foi trocado para preservar a identidade

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