Tá online, Kim?

Como o regime de Kim Jong-un está criando uma internet com a cara da Coreia do Norte

Eric Talmadge* Da Associated Press, em Pyongyang (Coreia do Norte)
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De modo altamente cauteloso, a Coreia do Norte está ingressando online.

Médicos podem realizar consultas por vídeo conferência ao vivo online, e palestras na prestigiosa Universidade Kim Il Sung podem ser transmitidas por streaming para fábricas distantes e comunas agrícolas. As pessoas usam dicionários online e enviam mensagens de texto umas às outras por seus smartphones. Nas carteiras dos privilegiados há cartões "Jonsong" ou "Narae" para comércio eletrônico ou serviços bancários online. As caixas registradoras na maioria das lojas de departamento estão conectadas online.

Mas não se trata da internet. Tudo isso ocorre em uma espécie de intranet altamente selada, do tipo que uma empresa de médio porte poderia usar para seus funcionários.

Peter Hamlin/ AP Peter Hamlin/ AP

O fluxo livre de informação é uma questão para regimes autoritários e, com a possível exceção da ditadura africana da Eritreia, a Coreia do Norte ainda é o país menos aberto para a internet no planeta. O acesso à internet global ainda é inimaginável para a maioria. Poucos têm um computador pessoal ou um endereço de e-mail que não seja compartilhado e o preço por tentar driblar as regras do governo pode ser severo.

Mas para Kim Jong-un, o primeiro líder do país a amadurecer na era da internet, a ideia de uma Coreia do Norte mais conectada também é atraente. Ela oferece o potencial dos grandes benefícios da tecnologia da informação ao país, assim como novas formas de controle político e social que prometem ser mais eficazes do que qualquer coisa que seu pai e avô poderiam ter sonhado. Também oferece a possibilidade de ciberataques contra o Ocidente.

A solução de Pyongyang é um sistema de duas camadas, onde a elite de confiança pode navegar na internet com relativa liberdade, enquanto as massas são mantidas dentro da intranet nacional, meticulosamente vigiadas e isoladas do mundo exterior, construída em grande parte com software roubado.

Em outras palavras, o regime criou uma versão online da própria Coreia do Norte.

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Navegando na intranet

Erguendo-se na Ilha de Ssuk no rio Taedong, que divide o leste e oeste de Pyongyang, há um prédio com formato de um átomo colossal.

O "setor de conhecimento" é uma prioridade para Kim Jong-un e o vasto Complexo de Ciência e Tecnologia, um centro para disseminação de informação científica para todo o país, é um de seus principais projetos de desenvolvimento. Ele abriga a maior biblioteca de livros eletrônicos da Coreia do Norte, com mais de 3 mil terminais onde operários de fábrica participam de teleaprendizado, crianças usando lenços vermelhos assistem desenhos e estudantes universitários fazem pesquisa.

 

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Pak Sung Jin, um estudante de pós-graduação em química de 30 anos, veio para trabalhar em um ensaio. É um dia útil e a biblioteca eletrônica está lotada.

Diferente da maioria dos norte-coreanos, Pak tem alguma experiência com a internet, apesar de uma supervisionada, focada apenas no necessário. Se Pak precisar de algo da internet, autoridades credenciadas da universidade pesquisarão para ele. Como acadêmico e cientista, diz Pak, é seu dever patriótico estar a par das pesquisas mais recentes.

Ele repete a condenação oficial de que a internet foi envenenada pelos imperialistas americanos e seus fantoches. "Deveria existir uma aceitação básica de que a internet deveria ser usada pacificamente", ele diz.

Hoje, ele conta com a versão norte-coreana da internet, a intranet nacional.

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Abaixo de um rótulo vermelho que declara que seu computador desktop "Ullim" preto foi doado pelo Querido e Respeitado Líder Kim Jong-un, o que está na tela de Pak é apenas para olhos norte-coreanos. O endereço de IP, 10.76.1.11, indica que ele está na rede fechada que os norte-coreanos chamam de "Kwangmyong", que significa resplendor ou luz.

Usando um navegador "Naenara" (o nome significa "meu país", mas é uma versão modificada do Firefox), Pak visita uma página de restaurante, o site de sua universidade e sites de culinária e compras online.

Há poucos sites de fato na Kwangmyong. Um funcionário do centro de ciência e tecnologia  disse que totalizam 168.

Eles se espalham por redes separadas de agências do governo, escolas, bibliotecas e empresas. Ele é toda doméstica, apesar de conteúdo extraído da internet e aprovado pelo governo poder ser postado pelos administradores, principalmente para pesquisadores como Pak.

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O conceito de intranet nacional da Coreia do Norte é único e extremo, até mesmo em comparação a outros países cuidadosos com informação. China e Cuba. por exemplo, são conhecidos por quanto controle o governo exerce sobre o que os cidadãos podem ver. Mas isso é feito principalmente por meio de censura e bloqueio, não por uma separação completa.

Como a maioria dos computadores norte-coreanos, os do Complexo de Ciência e Tecnologia rodam com o sistema operacional "Estrela Vermelha", que foi desenvolvido pelo Centro de Computação da Coreia baseado no sistema operacional Linux de código aberto.

O Estrela Vermelha 3.0 conta com as ferramentas habituais: o navegador Naenara, e-mail, agenda e ajustes de fuso horário, até mesmo um "kPhoto" (com um ícone que parece muito o do iPhoto). Versões anteriores contavam com uma interface de usuário do Windows XP, mas agora tem um desenho de Mac, contando até mesmo com o ícone de espera de "bola de praia girando".

Versões do Estrela Vermelha que saíram da Coreia do Norte e foram parar nas mãos de especialistas estrangeiros também revelaram algumas funções um tanto sinistras, invisíveis para a maioria dos usuários.

Qualquer tentativa de alterar suas funções básicas ou desabilitar os programas antivírus resulta em um reboot automático. Os arquivos baixados de pendrives são marcados de forma que as autoridades possam identificar e rastrear atividade criminosa ou subversiva, uma medida de segurança que visa combater a disseminação de conteúdo não autorizado da Coreia do Sul, China e outras partes.

O Estrela Vermelha também conta com um visualizador que salva imagens regulares da tela. Essas imagens podem ser apagadas ou acessadas pelo usuário, mas ficam disponíveis para checagem caso um funcionário treinado do governo decida investigar.

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Fora da Coreia do Norte, os telefones Android contam com um visualizador semelhante, notou Will Scott, que lecionou ciência da computação na Universidade de Ciência e Tecnologia de Pyongyang em 2013 e atualmente é estudante de doutorado na Universidade de Washington. Mas a versão do Estrela Vermelha reflete as prioridades muito específicas do regime de vigilância e combate à violações. Ele não coleta muito mais que o Android, porém visa facilitar a obtenção dessa informação por uma autoridade local que não seja um programador treinado.

Scott disse que a Coreia do Norte tem sido "muito eficaz" no uso dessa tecnologia para atingir suas metas.

Nat Kretchun, vice-diretor do Fundo de Tecnologia Aberta, disse que os tipos de software de censura e vigilância no Estrela Vermelha e nos sistemas operacionais dos celulares e tablets revelam uma nova estratégia de controle de informação.

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Sob os antecessores de Kim Jong-un, o fluxo de informação era controlado principalmente por uma rede humana intensiva em recursos, a "polícia de pensamento" do Ministério da Segurança, por exemplo, ou os icônicos controladores de tráfego de Pyongyang, que anotavam os que as pessoas estavam fazendo. Mas o advento da internet e os avanços em tecnologia de comunicação abriram buracos nessa estratégia, particularmente entre os mais educados, mais jovens e mais ricos, o próprio segmento da sociedade que poderia representar uma ameaça política.

Assim, enquanto mantinha suas táticas à moda antiga e impunha um bloqueio à internet global, as autoridades norte-coreanas aprenderam a se adaptar, usando os próprios dispositivos online como outra ferramenta de vigilância.

"Os celulares e aparelhos para intranet na Coreia do Norte costumam favorecer a vigilância e controle", disse Kretchun, que estuda o relacionamento da Coreia do Norte com a internet há anos.

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O smartphone Azalea e o iPad Ryonghung

A experiência online mais comum para os norte-coreanos não está em um notebook ou computador de mesa. Ela está no smartphone.

Há uma década, apenas um pequeno número seleto de autoridades do regime e oficiais militares tinha acesso a smartphones. Hoje, segundo o mais recente relatório financeiro do principal provedor, há estimados 2,5 a 3 milhões de celulares na Coreia do Norte, um país de 25 milhões de habitantes.

A rápida disseminação de celulares é uma das maiores histórias de sucesso da era Kim Jong-un. Após duas tentativas fracassadas, o ingresso da Coreia do Norte na telecomunicação móvel começou para valer em 2008, sob Kim Jong-il. Mas realmente floresceu nos últimos cinco anos com a introdução de serviços 3G, graças em grande parte a dois investidores estrangeiros, a Loxley Pacific, da Tailândia, e a Orascom Telecom Media and Technology, do Egito.

Assim como a intranet isolada, os telefones da Coreia do Norte não permitem acesso ao mundo exterior.

Os telefones locais permitem aos norte-coreanos telefonarem e mandarem mensagens de texto uns aos outros, jogar jogos, navegar na intranet doméstica e acesso a outros serviços. Os usuários contam com centenas de toques e sons para escolher, é possível checar o boletim do tempo, procurar palavras em dicionários e tirar selfies. Mas não podem receber ou fazer chamadas para números de fora dessa rede, em outras palavras, o restante do mundo.

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É fácil para os norte-coreanos comprarem telefones, apesar dos números precisarem ser registrados e aprovados. Um modelo bom de smartphone "Pyongyang" ou "Arirang" custa entre US$ 200 e US$ 400 (cerca de R$ 660 a R$ 1.320). Telefones mais básicos podem custar muito menos, especialmente se forem modelos de segunda mão.

No segundo andar do centro Pottonggang de informática, uma funcionária fica atrás de um balcão mostruário de vidro repleto de tablets e pendrives USB. Placas na parede atrás dela anunciam os programas antivírus e aplicativos para instalação nos celulares, que pode ser feita via Bluetooth na loja. Um dos aplicativos mais populares é um jogo de RPG baseado em "Menino General", um desenho animado de sucesso de origem local. Ele custa US$ 1,80 (cerca de R$ 6).

Os estrangeiros na Coreia do Norte ficam relegados a uma rede diferente e não podem receber e nem fazer chamadas para números locais. Eles podem comprar telefones locais se quiserem, mas os aparelhos são despojados dos aplicativos e ferramentas que normalmente possuem e codificados de modo que os aplicativos não possam ser adicionados posteriormente. O uso de Wi-Fi é proibido aos norte-coreanos e altamente restringido e monitorado para bloquear qualquer tentativa de uso sigiloso do sinal dos estrangeiros.

A Coreia do Norte sem dúvida importa e muda a marca de alguns de seus produtos de informática. Mas nos últimos meses, duas empresas provocaram bastante agitação entre os fãs da Apple com produtos rotulados como sendo totalmente domésticos: o smartphone "Jindallae (Azalea) III" e o "iPad Ryonghung".

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Applemaníaco

A indisfarçada semelhança dos aparelhos com os produtos da Apple e a apropriação descarada do nome "iPad" não causam surpresa. Kim Jon-u n gosta de produtos da Apple (ele já foi fotografado com um MacBook Pro em seu jato particular, e até mesmo com um iMac de 21 polegadas na mesa atrás dele, quando a mídia estatal o mostrou revisando o "plano de ataque nuclear aos Estados Unidos" há quatro anos.

Parece que os programadores norte-coreanos também pegaram algumas ideias da Apple.

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Especialistas externos acreditam que um programa semelhante ao que a Apple usa em seu OS X e iOS sirva como base para programa que impede as tentativas de desabilitar as funções de segurança no Estrela Vermelha. Ele agora é padrão nos telefones norte-coreanos. E em 2014, todos os sistemas operacionais dos celulares foram atualizados para incluir um sistema de marca d'água para rejeição de aplicativos ou mídia que não contenham a assinatura de aprovação do governo.

É o mesmo mecanismo usado pela Apple para bloquear aplicativos não autorizados pela sua App Store, mas no caso da Coreia do Norte serve para controle do acesso à informação.

"O que está em jogo é infinitamente maior na Coreia do Norte, onde as comunicações são monitoradas e ser pego falando a respeito da coisa errada pode levá-lo a um campo de prisioneiros políticos", notou Kretchun.

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Elites conectadas e cibersoldados

Ao mesmo tempo que bloqueia as massas, a Coreia do Norte permite mais acesso à internet a um pequeno segmento da sociedade, incluindo a elite do país e seus cibersoldados.

Para criar um retrato do comportamento online da elite, a empresa americana de inteligência para ciberameaças Recorded Future e o Team Cymru, um grupo sem fins lucrativos de segurança na internet, analisaram a atividade em endereços de IP supostamente usados pela Coreia do Norte de abril a julho deste ano. Eles descobriram que o número limitado de norte-coreanos com acesso à internet é muito mais ativo e engajado no mundo, além de contarem com mais serviços contemporâneos e tecnologias do que muitos fora do país acreditavam, segundo Priscilla Moriuchi, a diretora de desenvolvimento contra ameaças estratégicas da Recorded Future e uma ex-agente da Agência de Segurança Nacional americana.

"Os líderes norte-coreanos não estão desconectados do mundo e das consequências de suas ações", ela disse.

Não se sabe quão profundo é o acesso. Membros da Recorded Future e Team Cymru contatados pela reportagem da "Associated Press" se recusaram a comentar a respeito de detalhes de seus dados, incluindo quantos usuários da "elite" foram observados e como turistas ou estrangeiros que moram na Coreia do Norte foram excluídos.

Mesmo assim, é possível argumentar que ao menos parte dos membros da liderança norte-coreana tem o acesso que precisa para permanecer atualizado a respeito dos eventos mundiais e que agentes especiais são autorizados a monitorar e colher inteligência na internet.

Também há forte evidência de que a Coreia do Norte permite que as pessoas envolvidas em hackeamento e ciberoperações tenham o acesso necessário para o profundo engajamento em ciberataques e cibercrime.

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Segundo o FBI (Birô Federal de Investigação, a polícia federal americana), os maiores ataques hacker pela Coreia do Norte incluem o recente ataque com o vírus WannaCry , que infectou centenas de milhares de computadores em maio e debilitou partes do Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido. O país foi associado aos ataques ao banco central de Bangladesh no ano passado e a bancos na Coreia do Sul desde 2013. Também ocorreu o ataque hacker contra a Sony Pictures devido ao lançamento do filme "A Entrevista", uma comédia de humor negro que retratava Kim Jong-un sendo morto. As autoridades americanas apelidaram a ciberpresença da Coreia do Norte de "Cobra Escondida".

A transformação do ciberespaço em arma é uma opção lógica para a Coreia do Norte, porque pode ser feito a um custo relativamente baixo  e ao mesmo tempo é algo fácil de ser negado, segundo um relatório do Congresso americano apresentado em agosto.

Pyongyang nega as alegações de ataque hacker, mas a habilidade de executar ciberoperações sofisticadas é uma poderosa arma militar nas mãos de um Estado. Assim como é certo que a Coreia do Norte está desenvolvendo suas capacidades de mísseis e nuclear, a maioria dos especialista presume que também esteja aperfeiçoando suas ferramentas de ciberguerra.

Beau Woods, vice-diretor da Iniciativa para Ciberatividade de Estado do Conselho do Atlântico, alertou para o "grande número de pontos de interrogação" em relação às cibercapacidades da Coreia do Norte, assim como para quão potencialmente devastadora uma Coreia do Norte mais ciberativa poderia ser.

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Essas preocupações são viradas ao contrário no Complexo de Ciência e Tecnologia em Pyongyang.

Pak, o químico, apoia a posição oficial da Coreia do Norte de que o crescente risco de ciberataques e propaganda caluniosa vem dos Estados Unidos contra Pyongyang. O governo diz que justifica o isolamento para proteger as massas da propaganda agressiva e a necessidade de extensas medidas de cibersegurança em nome da defesa nacional.

"Você não vê quão severa é a calúnia contra a República por nossos inimigos na internet?", disse Pak, apesar das políticas restritivas dificultarem para ele a realização de sua pesquisa. "Há muitos casos onde a internet está sendo usada para fomentar hostilidade contra nós."

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