A bomba de Kim Jong-un

Testes de mísseis realizados pela Coreia do Norte na verdade apresentam mais sucessos do que fracassos

Talita Marchao Do UOL, em São Paulo
AFP/KCNA VIA KNS
KCNA via AP KCNA via AP

Taxa de sucesso dos testes norte-coreanos é alta

A tecnologia nuclear e bélica da Coreia do Norte pode não ser a mais moderna do mundo, mas é certamente mais avançada do que a comunidade internacional acredita.

Os últimos testes realizados pelo ditador Kim Jong-un mostraram mais sucessos do que fracassos. As falhas registradas, na verdade, são de mísseis ainda em desenvolvimento --e problemas em testes durante a concepção do projétil ocorrem em qualquer projeto de qualquer país, mesmo os que possuem modernas tecnologias.

A Coreia do Norte possui hoje mísseis operacionais de curto alcance e trabalha no desenvolvimento de foguetes balísticos de médio e longo alcance --os intercontinentais. O projeto prevê ainda a tentativa de fazer com que os mísseis levem uma ogiva nuclear. Daí, existe a necessidade de desenvolver a ogiva cada vez menor e um foguete mais leve para que ela seja acoplada ao míssil.

A base do programa balístico de Pyongyang é a engenharia reversa, e mísseis soviéticos são os principais modelos usados pelos norte-coreanos em sua produção.

"O Scud tem um papel muito importante no programa de mísseis norte-coreano. Modelos como o Nodong, de curto alcance, e os veículos lançadores de mísseis são todos com base na tecnologia do Scud", disse Melissa Hanham, pesquisadora sênior do CNS (Centro de Estudos de Não-Proliferação, na sigla em inglês), nos EUA. "Com base no Scud, eles começaram a criar seus próprios mísseis fazendo alterações, como aumentar o comprimento do míssil para que ele carregue mais combustível, por exemplo", afirma.

A pesquisadora do CNS cita ainda o exemplo do Musudan, que os norte-coreanos começaram a testar recentemente e que teria como base um míssil balístico de lançamento submarino soviético. "Eles fizeram um novo trabalho de engenharia reversa com este míssil, e acreditamos que estão usando um combustível mais energético que o Scud, o que significa que ele pode carregar um peso maior em uma distância maior", explica.

Reuters/ KCNA Reuters/ KCNA

Joshua Pollack, também pesquisador sênior do CNS, diz que nos últimos dois anos, a tecnologia norte-coreana começou a dar sinais de que está deixando para trás os antecedentes soviéticos.

"A Coreia do Norte já está desenhando seus próprios mísseis e não só simplesmente reproduzindo cópias de designs estrangeiros". afirma.

"Um exemplo concreto está no foguete Unha-3 (conhecido como Taepodong-2), lançado em 2012. Quando a Marinha da Coreia do Sul recuperou a maior parte dos destroços no primeiro estágio do foguete no mar, uma análise confirmou que o equipamento tinha peças fabricadas em muitas partes do mundo e alguns componentes recuperados do Scud. A questão é que todo o resto, incluindo a estrutura e os motores do primeiro estágio, pareciam ter sido feitos na Coreia do Norte", explica Pollack. "Quando as peças do lançador espacial Kwangmyongsong foram recuperadas no mar em fevereiro do ano passado, as descobertas foram as mesmas."

Segundo Melissa Hanham, os dados mostram que a taxa de sucesso norte-coreana, na verdade, é bem alta. "A razão pela qual ocorrem algumas falhas é porque estão abandonando o sistema tradicional do Scud e testando mísseis mais complexos, com tecnologia diferente", analisa. 

Os testes têm diferentes propósitos e são normalmente realizados sobre a própria Coreia do Norte ou sobre o Mar do Japão, já que aquela é uma região densamente povoada, e seria arriscado sobrevoar os territórios da Rússia, da China e da Coreia do Sul --um míssil já sobrevoou o Japão, por exemplo, mas a prática é muito arriscada.

Outra tática para a realização dos testes com riscos mínimos é o lançamento do míssil para o alto, em direção à atmosfera, sem destino certo. "Dessa forma, o projétil percorre uma grande distância enquanto ganha altura", diz Hanham. É o que ocorreria com os lançamentos de foguetes para supostamente colocar em órbita satélites.

A Coreia do Norte não tem um míssil intercontinental, mas continua testando seus componentes desde o ano passado. Um míssil intercontinental, que seria capaz de atingir os EUA, é formado por estágios, e seriam estes estágios que estariam em testes.

"O míssil intercontinental tem muitos módulos sobrepostos, e isto torna o foguete pesado. Ele ainda leva o combustível e a ogiva. Para alcançar uma distância maior, ele abandona as partes mais pesadas. O primeiro estágio acende, queima combustível até acabar e aquela peça toda cai. Em seguida, o segundo estágio acende e impulsiona o míssil a uma distância ainda maior", explica a especialista.

Um exemplo de teste realizado no ano passado que poderia ser de um equipamento do míssil intercontinental seria uma espécie de escudo no veículo para a reentrada. Um míssil interbalístico, durante a trajetória até o alvo, deve sair da atmosfera. Mas ele precisa retornar, e esta reentrada na atmosfera enfrenta calor, pressão e turbulência. Por isso, um escudo é necessário: para proteger a ogiva e os estágios restantes do míssil.

Outro teste contemplou o uso de um novo tipo de combustível que permitiria levar uma carga mais pesada, como a ogiva, por uma trajetória maior. Motores mais potentes também foram utilizados em outro teste.

"Pelos testes que vimos, podem ser mísseis de médio alcance. Mas poder ser também os estágios deste míssil intercontinental", afirma Hanham.

Os mísseis norte-coreanos

Reuters Reuters

Fundador da Coreia do Norte é o criador do programa nuclear

O programa nuclear norte-coreano nasce ligado ao projeto militar, ainda na década de 1950, no contexto da Guerra das Coreias. Naquele momento, o país se sentia ameaçado pela possibilidade de os EUA usarem também um artefato nuclear contra a Coreia do Norte –Hiroshima e Nagasaki, no Japão, tinha sido alvos de bombas atômicas anos antes.

Na divisão da península coreana, o Norte ficou com o parque em que a indústria pesada e as minas de minerais estavam instaladas, enquanto o sul era mais agrário.

Entre seus aliados, durante o período da Guerra Fria, estavam a China de Mao Tsé-Tung e a União Soviética, comandada por Josef Stalin até 1953 e posteriormente por Nikita Khrushchev.

Pyongyang, ainda naquela época, tentou o apoio da China para desenvolver um artefato nuclear, mas não obteve sucesso --até hoje a China é contra a ambição norte-coreana de ter armas nucleares, apesar dos laços mantidos com o regime norte-coreano.

Alexandre Uehara, coordenador do Grupo de Estudos sobre Ásia do Instituto de Relações Internacionais da USP, explica que a proximidade com a extinta URSS se dá pelo líder fundador da Coreia do Norte, Kim Il-sung, que foi instruído em termos militares pelos soviéticos. A ascensão de Kim Il-sung no comando da Coreia do Norte em 1948 foi com o apoio de Stalin. Os soviéticos deram o suporte com o fornecimento de tecnologia e equipamentos para o programa nuclear. Norte-coreanos são até hoje integrantes do Instituto Central de Investigações Nucleares instalado na Rússia na década de 1950.

AFP AFP

Mas diante da relação nem sempre estável com Pequim e Moscou, que passava por uma "desestalinização" iniciada por Khrushchev após a morte de Stalin, Kim Il-sung passou a questionar a confiabilidade de seus aliados no caso de uma guerra com os EUA e passou a investir pesado em seu projeto de mísseis.

"Nas décadas de 1960 e 70, existiu uma cooperação, um intercâmbio de conhecimentos entre norte-coreanos e soviéticos. E isso fez com que a Coreia do Norte pudesse construir a sua usina nuclear”, explica Uehara, da USP.

"O que podemos dizer é que a tecnologia nuclear norte-coreana funciona. E independentemente de ser moderna ou ultrapassada, ela é efetiva", disse Melissa Hanham, pesquisadora do CNS.

"O país hoje tem um tipo de reator nuclear muito básico, e agora tenta concluir um modelo mais avançado. Eles também dominam o reprocessamento e o enriquecimento, o que o coloca em um clube de países como EUA, Rússia, França, Reino Unido, China, Israel, Índia, Paquistão, Brasil, Argentina e Japão", diz Joshua Pollack, também pesquisador sênior do CNS.

The New York Times The New York Times

Com o final da Guerra Fria, nos anos 1980, a relação entre os soviéticos e os norte-coreanos muda, inclusive em termos econômicos.

"O intercâmbio comercial, que até então era praticado por meio de escambo, ou seja, a troca de produtos, acaba e Moscou passa a exigir meios financeiros", lembra Uehara. Com a dificuldade econômica que atingiu a recém-criada Rússia, muitos cientistas acabam migrando para a Coreia do Norte para desenvolver ainda mais programa nuclear.

Na década de 1990, Pyongyang desenvolveu a capacidade de desenvolver o ciclo do combustível nuclear –as etapas de preparação e produção de combustível nuclear-- e tem programas bem-sucedidos de enriquecimento de urânio de plutônio.

O país ainda realizou cinco testes nucleares: em 2006, 2009, 2013 e duas vezes em 2016 –o segundo teste deste ano seria um dispositivo termonuclear. A frequência de testes nucleares e de mísseis aumentou durante o comando de Kim Jong-un, após a morte de seu pai, Kim Jong-il.

Dados apontam que Kim Jong-un realizou o teste nuclear mais poderoso desde o começo do programa norte-coreano.

A cooperação da União Soviética e a China com a Coreia do Norte não foi só tecnológica, mas militar. Moscou e Pequim foram os principais fornecedores de mísseis e projéteis balísticos. Foi assim que a Coreia do Norte conseguiu desenvolver seus próprios mísseis de curto alcance. O país não via o desenvolvimento de mísseis somente como um investimento em segurança nacional, mas também em um meio de gerar lucros.

Kim Il-sung entrou no ramo de mísseis e foguetes no começo da década de 1960, segundo a ONG americana Nuclear Threat Initiative. É neste período que começa a preparação de pessoal para desenvolver o programa de mísseis e a criação de projetos balísticos terra-ar e antinavios.

No fim da década de 1960, os soviéticos passaram a negar a venda de mísseis e o repasse de tecnologia. Então, Pyongyang passou a receber os projéteis de Pequim, além da assistência técnica.

Na década de 1970, os norte-coreanos alcançaram um acordo com a China para adquirir, desenvolver e produzir mísseis e outros sistemas de armas. Mas o desenvolvimento de pessoal capacitado norte-coreano não era suficiente para o progresso do programa de mísseis do país, então Pyongyang recorreu a tecnologias mais avançadas, como o Scud-B soviético –acredita-se que quem forneceu o projétil foi o Egito, entre 1976 e 1981.

Em 1985, a Coreia do Norte fechou um acordo com o Irã para obtenção de financiamento para o desenvolvimento de mísseis em troca do fornecimento dos armamentos para Teerã durante a Guerra Irã-Iraque. O conflito foi a oportunidade ideal para Pyongyang ganhar dinheiro com a venda dos mísseis, testá-los em um conflito armado e aumentar os lucros e a sua produção. Os dados dos mísseis usados na guerra foram usados em pesquisas posteriores.

AP AP

A tecnologia dos mísseis foi posteriormente repassada também para outros países na década de 1990, como Irã e Paquistão. Acredita-se, por exemplo, que o míssil iraniano Shahab-5/6, que estaria em desenvolvimento, tenha como base o projeto do Taepodong-2, que já foi testado pelos norte-coreanos.

Pollack, do CNS, lembra que a Coreia do Norte conseguiu acesso a mísseis de desenvolvimento complexo no fim da década de 1980 e começo da década de 1990 quando os cientistas soviéticos, desesperados por emprego, passam a trabalhar em Pyongyang. A partir daí, o país começa a investir em tecnologias mais avançadas --em meio à fome que assolou o país.

Curtiu? Compartilhe.

Topo