Quem mais sofria eram as mulheres, pois David Berg dizia que elas estavam cheias do amor de Deus e precisavam distribuí-lo. Para o grupo arrecadar fundos, elas eram instruídas a sair da comunidade e entregar esse amor aos homens, fazendo sexo.
A ideia é que, em troca, recebessem uma ajuda financeira. Os ensinamentos, assim, davam outro significado para o que conhecemos como prostituição. Se as mulheres se negassem a fazer sexo, eram consideradas egoístas e estariam negando a Deus.
Dentro das comunidades, o amor era livre. Não era permitido casar, mas havia casais e eles tinham de compartilhar seus parceiros com outros. Principalmente as mulheres. Não importava se queriam, se sentiam atração, se tinham tesão. Sentimentos muito naturais do ser humano, como ciúme, eram condenados. Quem sentisse isso precisava tratar seu egoísmo, aprender a se abrir e compartilhar.
Quem visse algum problema nessas práticas de amor livre era impuro: o problema estava naquela pessoa, considerada pouco evoluída
As crianças que chegavam ou nasciam na comunidade aprendiam muito cedo sobre a sexualidade. Queriam que elas crescessem livres, andassem peladas, sem medo de expor seus corpos. Lembro desde muito pequenininha aprendendo sobre sexo. Pegavam a mão das crianças e mostravam: ‘Você faz assim, isso é assim, assado’.
Antes de eu nascer, eram muito mais comuns os casos de abusos sexuais contra crianças. David Berg dizia que, aos seis anos, elas já poderiam ter relações. Mas algumas pessoas começaram a abandonar e denunciar as comunidades, então estabeleceram que sexo só a partir dos 16. Mesmo assim os abusos não pararam, eles só passaram a acontecer no escuro. Quando a gente ia descansar à tarde, por exemplo, sempre tinha um tio cuidando da gente. Era nesses momentos que acontecia.
Aprendi o que era sexo da mesma forma como aprendi a escovar os dentes. Por mais que fosse criança e me mostrassem aquilo como sendo algo natural, eu não queria
Mesmo com os abusos mais discretos, eu não contava para ninguém, não falava sobre o que acontecia. Não sabia que aquilo era errado. Nas cartas, David Berg mandava fotos dizendo que estava tendo um ‘dia de família’ com suas netas e todos apareciam pelados na cama.
Ele pedia fotos de crianças peladas, pedia vídeos de crianças tirando a roupa, pedia vídeos de casais fazendo sexo enquanto diziam seu nome e louvavam a Deus [em uma carta, o líder encoraja a produção de 'vídeos de amor', com mulheres dançando nuas de forma artística e suave, além de cenas de sexo. São 57 tópicos, que vão desde instruções dos movimentos à música, passando por aquilo que deve ser dito nas gravações e por repreensões. 'Se não se cuidou e está muito magra, a culpa é sua, não de Deus', escreveu o guru que admitiu gostar de mulheres com barriga saliente e que 'gostaria de fazer amor com todos vocês'].
Para mim, Deus era sexo. Eu não conseguia separar uma coisa da outra
Muitas das pessoas na comunidade também foram vítimas. David Berg passava os ensinamentos e tinha quem não colocasse em prática, por discordar. Outros, mesmo de maneira desconfortável, obedeciam por acreditar nele. E havia pessoas que já tinham essa podridão antes de entrar na comunidade, onde receberam carta branca e puderam se aproveitar da situação. É importante entender o contexto, porque fica muito fácil julgar de fora. As pessoas eram usadas, abusadas, machucadas, mas a manipulação era tão grande que não conseguiam enxergar.