Sexo, mentiras e videotape

O depoimento da brasileira nascida em uma comunidade religiosa que unia pedofilia a "salvação do mundo"

Juliana Carpanez Do UOL, em São Paulo
Arquivo pessoal
Reprodução Reprodução

Não tínhamos acesso a TV, livros, desenhos. Todo o conteúdo infantil era produzido por líderes da comunidade. Teve uma história em quadrinhos que me marcou muito, de uma super-heroína chamada Heaven’s Girl [garota do paraíso]. Ela conquistava tudo, era forte, dominava o mal.

Era a época do fim do mundo e ela estava sendo perseguida por pessoas que queriam matá-la. Foi capturada e seria estuprada. Pela primeira vez introduziam esse conceito para a gente, de que estupro era sexo com violência. Eu devia ter uns 4 ou 5 anos.

A heroína então falou que não precisavam fazer aquilo, pois daria seu amor àqueles homens. Com isso, eles receberam Jesus no coração e a salvaram. A mensagem, então, era: violência e estupro são ruins. Mas, quando você não resiste e entrega seu amor, você salva as pessoas.   

Demorou anos para eu entender que o que eu tinha vivido era estupro, era abuso.

Divulgação/A Família Internacional Divulgação/A Família Internacional

A grande família

A comunidade Meninos de Deus teve início na Califórnia (EUA), no final dos anos 1960. David Berg, o fundador, vinha de uma família religiosa e apresentava uma visão diferente de Deus, mais revolucionária, aberta, de quem queria mudar o mundo através do amor. Era a época dos hippies e muitos jovens se juntaram ao movimento, vivendo em comunidades e deixando para trás a escola e suas casas.

Eles começaram a se espalhar para outros países, inclusive o Brasil, para onde minha mãe se mudou [ela é britânica e conheceu o grupo no Reino Unido]. Aqui havia diversas comunidades fechadas, espalhadas pelo país. Às vezes eram cem, 150 moradores. Com o tempo foram diminuindo para 30, 50 pessoas. Podiam viver em sítios afastados ou em casas enormes, onde cabia muita gente.

Fica muito difícil compreender a realidade das comunidades se você nunca viveu algo parecido. O grupo começou com o sonho de mudar o mundo, que era algo lindo. E é sempre assim no começo. Só que David Berg era um especialista em manipulação, além de ter muitas questões sobre sua sexualidade que só ficaram claras depois. Com o tempo, ele passou a ensinar crenças totalmente erradas. Misturou tudo, criando uma sopa que não deixava claro o que era bom ou ruim.

Nasci em uma dessas comunidades em São Paulo, em 1988. Passei a infância mudando de casa: morei no Rio, na Bahia, em Pernambuco, em vários lugares. Nossa cultura era americana e a primeira língua, o inglês [Dawn fala português, mas ainda tem sotaque]. Não havia nenhum acesso ao mundo exterior, onde nos diziam que só havia o mal, pessoas ruins, perdidas.

A gente não saía, não ia para a escola, não podia ver televisão, não tinha amigos fora da comunidade. Tudo o que eu aprendia 24 horas por dia era a Bíblia e os ensinamentos deste homem [David Berg]

Desde muito pequena me lembro da preocupação com o fim do mundo, que estava próximo. Fazendo as contas, descobri que eu não passaria dos 16 anos. A gente aprendia como se proteger diante do fim e também a decorar a Bíblia inteira, que deixaria de existir quando o mundo acabasse. Havíamos sido escolhidos e nossa missão era morrer como mártires para salvar o planeta.

Tinha também os ensinamentos de David Berg, que chegavam através de cartas. Nunca o vi pessoalmente, mas mesmo à distância as pessoas confiavam cegamente nele. Ninguém o chamava pelo nome: ele era o ‘pai’. A segunda geração, da qual faço parte, o chamava de ‘avô’. Eram todos parte de uma única família: tios, tias, irmãos, irmãs. As cartas, sempre acompanhadas de fotos e desenhos, eram a forma de David Berg ter acesso a cada uma dessas comunidades com seus ensinamentos. 

Reprodução Reprodução

Outra versão para 'Deus é amor'

Quem mais sofria eram as mulheres, pois David Berg dizia que elas estavam cheias do amor de Deus e precisavam distribuí-lo. Para o grupo arrecadar fundos, elas eram instruídas a sair da comunidade e entregar esse amor aos homens, fazendo sexo.

A ideia é que, em troca, recebessem uma ajuda financeira. Os ensinamentos, assim, davam outro significado para o que conhecemos como prostituição. Se as mulheres se negassem a fazer sexo, eram consideradas egoístas e estariam negando a Deus.

Dentro das comunidades, o amor era livre. Não era permitido casar, mas havia casais e eles tinham de compartilhar seus parceiros com outros. Principalmente as mulheres. Não importava se queriam, se sentiam atração, se tinham tesão. Sentimentos muito naturais do ser humano, como ciúme, eram condenados. Quem sentisse isso precisava tratar seu egoísmo, aprender a se abrir e compartilhar.

Quem visse algum problema nessas práticas de amor livre era impuro: o problema estava naquela pessoa, considerada pouco evoluída 

As crianças que chegavam ou nasciam na comunidade aprendiam muito cedo sobre a sexualidade. Queriam que elas crescessem livres, andassem peladas, sem medo de expor seus corpos. Lembro desde muito pequenininha aprendendo sobre sexo. Pegavam a mão das crianças e mostravam: ‘Você faz assim, isso é assim, assado’.

Antes de eu nascer, eram muito mais comuns os casos de abusos sexuais contra crianças. David Berg dizia que, aos seis anos, elas já poderiam ter relações. Mas algumas pessoas começaram a abandonar e denunciar as comunidades, então estabeleceram que sexo só a partir dos 16. Mesmo assim os abusos não pararam, eles só passaram a acontecer no escuro. Quando a gente ia descansar à tarde, por exemplo, sempre tinha um tio cuidando da gente. Era nesses momentos que acontecia.

Aprendi o que era sexo da mesma forma como aprendi a escovar os dentes. Por mais que fosse criança e me mostrassem aquilo como sendo algo natural, eu não queria

Mesmo com os abusos mais discretos, eu não contava para ninguém, não falava sobre o que acontecia. Não sabia que aquilo era errado. Nas cartas, David Berg mandava fotos dizendo que estava tendo um ‘dia de família’ com suas netas e todos apareciam pelados na cama.

Ele pedia fotos de crianças peladas, pedia vídeos de crianças tirando a roupa, pedia vídeos de casais fazendo sexo enquanto diziam seu nome e louvavam a Deus 
[em uma carta, o líder encoraja a produção de 'vídeos de amor', com mulheres dançando nuas de forma artística e suave, além de cenas de sexo. São 57 tópicos, que vão desde instruções dos movimentos à música, passando por aquilo que deve ser dito nas gravações e por repreensões. 'Se não se cuidou e está muito magra, a culpa é sua, não de Deus', escreveu o guru que admitiu gostar de mulheres com barriga saliente e que 'gostaria de fazer amor com todos vocês'].

Para mim, Deus era sexo. Eu não conseguia separar uma coisa da outra

Muitas das pessoas na comunidade também foram vítimas. David Berg passava os ensinamentos e tinha quem não colocasse em prática, por discordar. Outros, mesmo de maneira desconfortável, obedeciam por acreditar nele. E havia pessoas que já tinham essa podridão antes de entrar na comunidade, onde receberam carta branca e puderam se aproveitar da situação. É importante entender o contexto, porque fica muito fácil julgar de fora. As pessoas eram usadas, abusadas, machucadas, mas a manipulação era tão grande que não conseguiam enxergar. 

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Aos 8 anos, eu queria me matar

Não tenho muito claras as datas, mas com uns 6 anos comecei a questionar aquele amor. A gente era castigado se fizesse algo errado, lavavam nossas bocas com sabão se falássemos algo que não era de Deus. Um dia, aprontei algo e levei uma surra. Olhei para minha bunda toda roxa e pensei: ‘Isso não pode ser amor’. Essas mesmas pessoas que nos batiam depois nos abraçavam, beijavam e diziam: ‘Deus castiga aqueles que Ele ama’. O amor e a dor ficavam misturados. 

Não íamos a médico, ao hospital, não tomávamos remédios nem vacinas. Diziam que Deus nos protegia. Acho que tive todas as doenças infantis possíveis

Com uns 7 anos, muitos ficaram com pneumonia e uma ‘irmã’ acabou morrendo aos 9. Pensei que, se eu não fizesse algo para sair dali, em pouco tempo cada um de nós morreria. Eu sonhava como seria fora da comunidade, mas diziam que Deus virava as costas para aqueles que a abandonassem. Meu maior medo era ir para o Inferno. Aos 8 anos, eu queria me matar, preferia morrer a continuar lá.

Fui entrando em uma fase de rebeldia, em que parei de falar. Não podia compartilhar esses pensamentos com ninguém, porque seria castigada, então me fechei. Ninguém tinha acesso a mim, e o meu silêncio era uma forma de me proteger para eu tentar entender o que estava acontecendo. Comecei a fazer um diário, revidava quando me batiam, parei de ler as cartas de David Berg para tentar pensar sozinha, sem sua influência.

Conhecia algumas pessoas que haviam deixado a comunidade e elas me entregaram uma fita cassete. A primeira música que ouvi do sistema, considerada música do Diabo, foi uma do [rapper norte-americano] Eminem. Aquilo me fascinou, aquela coragem na voz para falar a verdade. Cantei alto o refrão ‘you can suck my dick if you don't like my shit’ [pode chupar meu p** se não gosta das minhas merdas] em um horário de exercícios físicos. O professor me molestava direto, me deu uma bronca e eu respondi com este trecho da música.

Fiquei de castigo e, a partir daí, virei a maçã podre: não podia visitar outras comunidades, porque poderia apodrecê-las também.

Quando tinha uns 12 anos e morava em São Paulo, comecei a fugir para a casa dos nossos vizinhos. Eles traficavam drogas e, por isso, achei que o mundo lá fora era realmente do Diabo. Quando conversava com eles, eu era um extraterrestre: não entendia nada sobre o mundo. Mas achava interessantíssimo o que eles falavam, porque sabiam que estavam fazendo algo errado. E estavam dispostos a sofrer as consequências daquilo, como aconteceu com seus amigos que haviam sido presos. Percebi que as pessoas da comunidade faziam algo ruim pensando que era bom. Elas não tinham escolha, estavam cegas.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

O gosto doce e amargo da liberdade

Aos 13 anos, deixei a comunidade e, até os 15 anos, morei em outros desses grupos com pessoas que já haviam abandonado o Meninos de Deus. Até então, minha alimentação era totalmente saudável, só comidas naturais. Assim que me vi livre, fui a uma loja de doces para comer o que quisesse. Experimentei um [chiclete] Bubballo, que estourou na minha boca e achei aquilo sensacional. Gastei todo o dinheiro em chiclete: comprei uns 200 Bubballos e comi um atrás do outro.

Vivia de casa em casa, muitas vezes cuidando das crianças para os pais trabalharem: alternativas comuns eram ensinar inglês ou cantar em bares. Conheci pessoas do sistema e sofria bullying: não havia frequentado a escola, não tinha inteligência para o mundo lá fora, perguntavam sobre meu sotaque, consideravam meu nome era estranho [nesta época ela ganhou o apelido de Sol].

Eu não me encaixava em lugar nenhum e entrei numa depressão profunda. Tentei suicídio três vezes e conheço pessoas em situação semelhante que se mataram.

Aos 15 anos, me apresentaram uma comunidade em Santa Catarina e me apaixonei pelo trabalho deles. Morei lá até os 19, em um lugar onde me considerava segura, amada e pude buscar minha cura. O líder me protegeu e me ensinou sobre o amor sem a conotação do sexo, ele não me desejava. Muita coisa mudou positivamente dentro de mim. Quando ele morreu, em 2008, meu mundo caiu: descobri que ele usava sua influência para ter relação sexual com as mulheres da comunidade, repetindo uma história que eu já conhecia bem.

Por incrível que pareça, foi o melhor que poderia ter acontecido. Comecei a compreender mais sobre o ser humano: que todos somos feitos de luz e sombra, podemos amar e machucar. Eu não precisava jogar tudo fora, porque este homem que errou também me ensinou coisas boas.

E fiz as pazes com minha história na primeira comunidade: da mesma forma que escolhi viver em Santa Catarina achando que aquele grupo era bom, anos antes aquelas pessoas viram luz nos ensinamentos de David Berg. Depois a sombra se espalhou e machucou tanta gente, mas a princípio não era isso. Comecei assim minha jornada de cura e perdão.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

É preciso reconhecer que vivi abusos, vivi estupros e isso foi errado. Mas também vivi coisas lindas, conheci pessoas lindas. Não posso jogar nada fora, porque tudo isso faz parte de mim

Voltei para São Paulo e comecei a trabalhar como assistente em uma escola de inglês: pedi o emprego dizendo que não tinha educação formal, mas que havia cuidado de crianças minha vida inteira. Fui ganhando experiência, alunos e também dinheiro, a ponto de alugar um apartamento para mim e comprar um carro. Descobri na TV o telecurso, que foi a melhor coisa da minha vida. Comprei todos os DVDs e, aos 22 anos, comecei a aprender coisas que nunca tinha visto antes. Emendei um supletivo e entrei na faculdade de psicologia, que acabei não concluindo.

Reprodução/Netflix Reprodução/Netflix

História revelada para 2.500 desconhecidos

Eu estava muito focada em mim, em me reestabelecer e em conquistar minha liberdade. Mas sabia que tinha de lidar com coisas que nunca tinha contado para ninguém, não falava sobre minha infância. Ao mesmo tempo, era comum conhecidos virem desabafar e me pedir ajuda sobre os mais diversos temas, inclusive abusos. Sentia que podia ajudar e também achava que precisava me abrir, mas não sabia como fazer isso pelo medo do julgamento.

Um dia um amigo me apresentou o [palestrante motivacional] Tony Robbins e comecei a assistir a seus vídeos no YouTube. A princípio não me chamou a atenção, porque achei que era outro guru e só pensava: chega de gurus!

Mas, ouvindo, fiquei chocada. Ele falava sobre as coisas que eu escrevia no meu diário quando estava dentro da comunidade. Como era possível, se não existia nenhum contato entre nós? Decidi que precisava me encontrar com ele, mesmo sem saber por que nem o que falar. Era uma intuição muito forte. Saí do meu apartamento, fui morar em uma república e vendi todos os meus móveis. Com o dinheiro, paguei para ir a um evento na Flórida [EUA] onde falaria com ele. 

Ao chegar lá, me assustei porque me lembrei muito da primeira comunidade. Vi todo mundo junto, fazendo ‘uhu’, batendo palma. Não queria falar com ninguém, só com ele. No terceiro dia, entendi a gravidade da situação: seria impossível, porque todos [2.500 participantes] queriam a mesma coisa. Isso me deixou doente, comecei a ficar com febre. As pessoas em volta perceberam, chamaram um médico e ele disse que eu teria de abandonar o evento.

Sentei em um canto chorando e falei com uma moça da organização. Ela se comoveu e disse que me deixaria ficar se eu conseguisse uma autorização médica. Foi comigo a um hospital, o médico viu que era um sintoma emocional e me deu um atestado. Cinco minutos depois de eu voltar à sala, o Tony perguntou se alguém lá era suicida. Olhei para a moça da organização, que me encorajou a levantar. E ele me chamou. 

Só pensava que precisava acessar minha alma para conseguir tocar a dele, e a única forma de fazer isso era sendo verdadeira. Comecei a falar e, pela primeira vez, na frente de milhares de pessoas, estava contando minha história em voz alta

Olhei ao redor e só vi amor. Neste momento, entendi que para ajudar os outros e a mim mesma eu só precisava falar sobre isso. Correndo o risco do julgamento, que sempre vai existir, mas este é o preço para a liberdade. Muita gente veio conversar comigo depois, dizendo que minha verdade liberou a deles, fazendo com que falassem sobre situações de abuso que também haviam escondido.

Ainda no evento, Tony me ofereceu um treinamento para que eu pudesse aprender técnicas para ajudar outras pessoas. Essa é minha missão hoje: acolher e criar um ambiente seguro para que aqueles com experiências parecidas, de dores profundas, encontrem o caminho de volta para o amor.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Entendi que, quanto mais eu tentava fugir da dor, mais minha vida piorava. Quando a enfrentei, embaixo dela havia amor para me curar e também ajudar aqueles ao meu redor

Hoje, não enxergo ninguém como um Deus. E também não quero que me vejam desta forma, como um guru. Há pessoas que nos inspiram e eu não estaria aqui hoje se não fosse por elas. Mas existe uma chave dentro de mim e eu sou cuidadora dela. Sou eu que decido quem entra ou não em minha vida, quem pode ou não me influenciar. Tudo o que preciso está dentro de mim. Fui eu que me salvei. As nossas cicatrizes não são algo para nos envergonharmos, mas sim a prova viva da nossa capacidade de nos curarmos. Onde está a sua dor está a sua força. 

Curtiu? Compartilhe.

Topo