Amazônia pré-colombiana

Como viviam os povos indígenas antes da chegada dos europeus

André Carvalho Do UOL, em São Paulo
Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

Inferno verde?

Por muito tempo, a região amazônica foi chamada de “inferno verde”. Um local que não permitiria o desenvolvimento de civilizações com grandes populações e tecnologias avançadas. O clima extremamente úmido, a alta densidade da floresta tropical e o solo infértil, ‘lavado’ constantemente pela chuva, explicariam essa tese.

A teoria, da década de 1950, de que nossos indígenas teriam vindo dos Andes e se 'degenerado' culturalmente foi derrubada apenas nos anos 1980 com a descoberta de cerâmicas no Marajó mais antigas do que as produzidas pela população da região andina. 

Hoje sabe-se que, antes dos europeus chegarem a essas terras, a floresta amazônica tinha cerca de 8 milhões de pessoas, que se concentravam principalmente nas margens de grandes rios, como o Amazonas e o Tapajós. Atualmente vivem na Amazônia 306 mil indígenas, segundo o IBGE.

Os grupos formaram a floresta amazônica como conhecemos, povoaram áreas que originaram nossas cidades, e, entre outras coisas, construíam estradas. 

 

Fábio Nascimento/Greenpeace Fábio Nascimento/Greenpeace

Escavando a história

As pesquisas feitas do Acre ao Pará, em cerca de 3 mil sítios arqueológicos, demonstram que as sociedades pré-coloniais eram mais complexas do que se pensava.

Observamos o uso de tecnologias sofisticadas de produção de materiais, de interação ambiental e de manejo com o ambiente e vimos que grande parte dessa paisagem amazônica vista como virgem e intocada, é de fato, fruto de ação humana no passado.”

Helena Lima, do Museu Emílio Goeldi e da Ufam

A riqueza pode ser expressa pela alta diversidade cultural dos povos originários da Amazônia. Estima-se que mais de mil línguas --dos troncos Aruaque, Caribe, Macro-Jê, Pano, Tucano e Tupi, além de línguas isoladas ou não classificadas-- eram faladas na região no século 16. Atualmente, são faladas cerca de 240 línguas.

"É um indicador da diversidade cultural. E essa é a grande lição que a arqueologia pode nos dar: mostrar que é possível se ocupar a Amazônia, mas com critérios baseados na diversificação, não na especialização", diz Eduardo Neves, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.

Arte UOL

Amazônia plantada

A floresta amazônica é resultado de milhares de anos de trabalho com o solo e em um processo de "engenharia florestal", em que os indígenas domesticaram espécies e escolheram tipos de plantas comestíveis para plantar em áreas de maior concentração de população.

A terra preta, tipo de solo produzido há milhares de anos, é o resultado da junção de restos de peixes e animais de caça, sementes e restos de vegetais queimados para aumentar a fertilidade do terreno. O registro mais antigo de terra preta, ocorrido às margens do rio Madeira, em Rondônia, é de 6 mil anos atrás.

Estudo recente, publicado na Science, mostrou que a Amazônia que os europeus encontraram no século 16 não estava intocada. A pesquisa identificou 85 espécies de árvores que foram domesticadas na floresta.

Entre elas, espécies que já eram utilizadas como alimento pelos antigos indígenas: cacau, batata-doce, mandioca, castanha-do-pará, cupuaçu, açaí e abacaxi.

Para Neves, os povos indígenas pré-colombianos mais que agricultores, eram manejadores. "O manejo é a exploração e a manipulação de algumas plantas, sem necessariamente levar à sua domesticação. Já a domesticação ocorre quando uma planta é modificada geneticamente, dando origem a outra", explica.

André Dusek/Estadão Conteúdo André Dusek/Estadão Conteúdo

Mandioca, milho, pesca e caça

Plantas domesticadas nesse período eram (e são) importantes fontes alimentares: a mandioca e o milho. "A mandioca é uma planta amazônica domesticada há milhares de anos que se espalhou por todo o continente. Já o milho é proveniente do México", diz Neves.

Antes da chegada dos europeus, esses alimentos eram preparados em enormes fornos de cerâmica. Os achados arqueológicos demonstram a existência de uma indústria da farinha.

Para completar a alimentação: pesca e caça. Em áreas próximas dos rios, o consumo de peixe era mais intenso; em áreas mais afastadas, a caça de animais, como paca, anta, e jabutis, tinham um peso maior na alimentação dos indígenas.

As cheias dos rios também alteravam a dieta. Quando eles estavam cheios, a pesca era dificultada, fazendo com que a caça aumentasse. Já nos períodos de seca, o consumo de peixes era intensificado.

Obras de engenharia

Indígenas construíram pontes, estradas, aterros e geóglifos

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Estradas

No Alto Xingu, em Mato Grosso, floresceu entre os séculos 13 e 15 uma civilização com aldeias gigantescas (de até 500 mil metros quadrados), densamente habitadas (até 5.000 pessoas), com represas, aterros, fossas, pontes e estradas. As rodovias chegavam a ter 5 quilômetros e 50 metros de largura e serviam de ligação entre as aldeias.

Divulgação/Agência Acre Divulgação/Agência Acre

Geóglifos

Os geóglifos são desenhos gigantes feitos com valetas de cerca de dez metros de largura e entre dois e três metros de profundidade. Estas obras de engenharia foram feitas pelos aruaques entre os séculos 1 e 10 e serviam de campo para rituais religiosos. Já foram mapeados mais de 800 deles, a maioria no leste do Acre.

Museu Goeldi Museu Goeldi

Aldeias foram trilha de ocupação

A fundação de cidades modernas pela Amazônia aconteceu em locais onde já havia povoações indígenas. Novo Airão e Manacaparu, próximas a Manaus e às margens dos rios Negro e Solimões, são exemplos de cidades fundadas sobre antigas aldeias.

O caso se repete não só no Amazonas, mas em 90% dos municípios da região. Em Gurupá (PA), cidade de 32 mil habitantes na confluência dos rios Xingu e Amazonas, cerca de 50 sítios arqueológicos já foram identificados --a maior parte deles com vestígios pré-coloniais. 

"Começamos em 2014, e já temos coisas importantes, que dizem respeito a história indígena antiga do Baixo Amazonas, e da Amazônia como um todo", diz Lima, que coordena as escavações da região.

Cerâmicas, carvões e amostras de solo de diferentes épocas já foram coletados e levados para análise na Reserva Arqueológica do Museu Goeldi.

Santarém, a cidade mais antiga do Brasil

Cidade paraense tem ocupação contínua há mais de mil anos

Fundada pelo padre jesuíta João Felipe Bettendorf em 1661 sob o nome de "Aldeia dos Tapajós", a cidade paraense de Santarém é exemplo emblemático de cidade fundada sobre aldeias. 

Quando a cidade é fundada no século 17, já havia gente vivendo lá em uma enorme cidade pré-colombiana. E as pessoas que viviam lá descendiam das pessoas que viviam lá desde o século 9."

Eduardo Neves, arqueólogo do MAE-USP

É comum que moradores locais encontrem peças arqueológicas de centenas de anos em quintais, roçados, e outros locais espalhados pela cidade. O município tem cerca de 30 sítios arqueológicos já estudados e mais de cem a serem pesquisados. 

Amazônia e sua imensa malha hidrográfica

O fluxo comercial, social e intelectual na região amazônica

A malha hidrográfica possibilitava aos indígenas pré-colombianos uma intensa mobilidade, que permitia uma comunicação constante entre os diversos povos que habitavam a região. A área tinha uma teia de comércio, de relações sociais e de fluxo de ideias.

Carlos Augusto da Silva, pesquisador da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), afirma que o padre dominicano Gaspar de Carvajal, que navegou o Amazonas no século 16, relatou a ocorrência de uma indústria da canoa criada pelos indígenas.

"Em vez de gastar uma imensa energia para transportar uma madeira por dois ou três quilômetros, eles replantavam essas espécies em torno das aldeias", diz Silva. 

A área de trocas entre as populações era imensa. Por exemplo, os estudos na região de Gurupá mostraram que os Koriabos estabelecerem uma rede de contato que ia até o Caribe, passando pelo Amapá e pelas Guianas.

Em outros locais, como a região dos geóglifos (Acre), e o Alto Xingu (Mato Grosso), estradas foram construídas e garantiram o fluxo comercial, social e intelectual.

 

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A cerâmica mais antiga do continente

A cerâmica produzida na região amazônica é a mais antiga do continente. Há registros de objetos de cerâmica de 7.000 anos atrás na região de Santarém (PA).

Os artefatos de cerâmica são recorrentes nos trabalhos arqueológicos na região, que tem entre seus destaques a cerâmica tapajônica (do Tapajós às Guianas) e a marajoara (da Ilha de Marajó), parte da tradição Polícroma, que se estende da foz do Amazonas até a beira da cordilheira dos Andes.

Entre as peças encontradas em escavações por toda a Amazônia, há urnas funerárias, potes, frascos, copos, tigelas, joias, martelos e outras ferramentas. 

 

Acervo pessoal Acervo pessoal

O resgate da história indígena na Amazônia

O arqueólogo Carlos Augusto Silva, conhecido como Dr. Tijolo, é neto de indígenas das etnias munduruku e apurinã e atua no resgate de urnas funerárias milenares há duas décadas. Em suas andanças por Manaus e pelo interior do Estado, já encontrou mais de 70 urnas.

Na área ocupada pelo gasoduto Coari-Manaus foram registrados 73 sítios arqueológicos, dos quais aproximadamente 30 escavados --Silva foi um dos coordenadores de campo de resgate de alguns destes sítios, atuando ao lado do arqueólogo da USP Eduardo Neves.

“Para mim, é como se eu estivesse renascendo todo dia”, afirma Silva, quando questionado sobre o significado de ser indígena e trabalhar no resgate de peças de povos pré-colombianos da região amazônica.

Cada trabalho que faço me parece que é uma nova vida que vivo e uma nova história que está sendo escrita."

Uma parte dessa história será recontada do dia 30 de agosto a 27 de outubro, durante a exposição "Patrimônios Amazônicos Revelados", que estará no Museu Amazônico, em Manaus. Estarão expostos objetos pré-colombianos resgatados durante a pesquisa na obra do gasoduto. 

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