O seu corpo e o nazismo

Como a ciência nazista ainda influi no estudo da anatomia e alimenta debate sobre aborto

Emily Bazelon Da Slate
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Em 1941, Charlotte Pommer se formou pela escola de medicina da Universidade de Berlim e foi trabalhar para Hermann Stieve, chefe do Instituto de Anatomia da escola. Filha de um editor de livros, Pommer cresceu na capital da Alemanha enquanto Hitler ascendia ao poder. Mas ela não percebeu o impacto dos nazistas sobre seu campo escolhido até 22 de dezembro de 1942. O que ela viu no laboratório de Stieve naquele dia mudou sua vida e a levou a um ato singular de protesto.

Stieve obtinha seu "material", como ele chamava os corpos usados para pesquisa, da prisão próxima de Plötzensee, para onde os tribunais enviavam réus para execução após condenados à morte. Nos anos que se seguiram após a guerra, Stieve alegou que dissecava apenas cadáveres de "criminosos perigosos". Mas naquele dia, Pommer viu no laboratório dele os corpos de dissidentes políticos. Ela reconheceu aquelas pessoas. Ela os conhecia.

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Na mesa estava Libertas Schulze-Boysen (foto), neta de um príncipe prussiano. Ela foi criada no castelo da família, cursou uma escola para moças na Suíça e trabalhou como assessora de imprensa em Berlim do estúdio Metro-Goldwyn-Mayer de Hollywood. Ela entrou para o Partido Nazista em 1933.

Em uma caçada, ela flertou com Hermann Göring, comandante da Luftwaffe, a força aérea alemã. Mas em 1937, Schulze-Boysen se juntou à resistência com seu marido, Harro (foto), um tenente da Luftwaffe. Eles ajudaram a formar um pequeno grupo rebelde que os nazistas chamavam de Orquestra Vermelha.

Quando Libertas começou a trabalhar para o império cinematográfico de Hitler em 1941, ela reuniu fotos das atrocidades no fronte para um arquivo secreto. Harro foi transferido para o centro de comando de Göring e, juntamente com outros dissidentes, começou a repassar para os soviéticos informações detalhadas sobre o plano de Hitler para invadir a Rússia. A Gestapo decodificou suas mensagens de rádio em 1942 e prendeu Harro no final de agosto.

Eles foram atrás de Libertas oito dias depois. Tanto ela quanto seu marido foram condenados à morte por espionagem e traição.

Agora o corpo de Harro estava em outra mesa no laboratório. Pommer viu que ele tinha sido enforcado e Libertas decapitada por uma guilhotina.

Em uma terceira mesa, Pommer identificou Arvid Harnack, outro membro da Orquestra Vermelha que foi um informante chave para a embaixada americana assim como para os soviéticos.

Nos anos 20, Harnack estudou economia como bolsista Rockefeller da Universidade de Wisconsin, onde entrou em uma aula de literatura por engano e conheceu uma jovem assistente americana chamada Mildred Fish.

Eles passaram a se ajudar em aulas de inglês e alemão e se casaram na fazenda do irmão dela. Após o casal se mudar para a Alemanha, Mildred também ajudou o esforço da resistência transportando mensagens e seguindo seu marido em suas reuniões, para assegurar que ele não estava sendo seguido.

Eles foram pegos na mesma operação da Gestapo que prendeu os Schulze-Boysen. "Você se recorda de Picnic Point, onde ficamos noivos?", Arvid perguntou à sua esposa em sua carta final para ela, escrita na prisão. "E antes disso, de nossa primeira conversa séria em um almoço em um restaurante na State Street? Aquela conversa se transformou na minha estrela guia."

Na época, Mildred estava cumprindo uma pena de seis anos por participar da Orquestra Vermelha. Antes de ser executado, Arvid escreveu para sua família sobre a alegria dele pela vida dela ter sido poupada. Mas Hitler se recusou a aceitar a sentença e Mildred também seria decapitada por ordem dele dois meses depois.

"Eu fiquei paralisada. Eu mal conseguia realizar minha tarefa como assistente do professor Stieve, que realizava seus estudos científicos como sempre, com a maior diligência. Eu mal conseguia acompanhar."

Charlotte Pommer, Sobre a visão dos corpos

Pommer tinha 28 anos. Libertas Schulze-Boysen tinha 29 quando morreu. Em sua última carta para sua mãe, ela disse que pediu para que seu corpo fosse devolvido à sua família. "Não se preocupe com como as coisas poderiam ter ocorrido, de um jeito ou de outro", ela escreveu. "Se puder, me enterre em um local bonito, em meio à natureza ensolarada."

Pommer parou de trabalhar para Stieve, assim como também deixou o campo da anatomia, devido ao que viu naquele dia no laboratório dele. Ela própria passou a ajudar na resistência ao nazismo, ao esconder o filho de um homem que participou no "Plano de Julho" para assassinar Hitler, em 1944. Na primavera de 1945, pouco antes do fim da guerra, Pommer foi enviada à prisão.

Naquela época, anatomistas alemães aceitaram os corpos de milhares de pessoas mortas pelo regime de Hitler. A partir de 1933, todos os 31 departamentos de anatomia no território ocupado pelo Terceiro Reich, incluindo a Polônia, Áustria e República Tcheca, além da Alemanha, aceitavam esses cadáveres. "Charlotte Pommer é a única que conhecemos que deixou esse trabalho devido ao que descobriu sobre os corpos", diz Sabine Hildebrandt, uma historiadora e anatomista da Escola de Medicina de Harvard.

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Diferente da pesquisa dos cientistas nazistas, que estavam obcecados com características raciais e com a superioridade ariana, o trabalho de Stieve não acabou no lixo da história. As origens manchadas dessa pesquisa, juntamente com outros estudos e ensino que fizeram uso do suprimento nazista de corpos humanos, continuam assombrando a ciência alemã e austríaca, que apenas agora está lidando plenamente com as implicações.

De forma impressionante, alguns dos fatos apenas agora estão vindo à tona. E algumas universidades alemãs, austríacas e polonesas ainda precisam enfrentar a presença provável de restos mortais de vítimas de Hitler (suas células, ossos e tecidos) nas coleções de universidades que existem até hoje.

Esta história importa por si só. Também importa para debates que permanecem não resolvidos, sobre como os anatomistas obtêm corpos e o que fazer com pesquisa que é cientificamente valiosa, porém moralmente perturbadora.

E há esta relevância assustadora: o trabalho de Stieve foi a fonte de uma controvérsia explosiva nas eleições americanas de 2012. Ela é a base para uma alegação jogada pelos republicanos no Congresso como uma bomba no meio do debate sobre o aborto: a ideia de que as mulheres raramente engravidam ou nunca engravidam por estupro.

Ahle, Fischer & Co. Bau Ahle, Fischer & Co. Bau

Dando um passo atrás por um momento, em um aspecto, o uso de prisioneiros executados para ciência não causa surpresa.

Por séculos, anatomistas de todo o mundo tiveram dificuldade para encontrar um fornecimento adequado de corpos. A necessidade era aguda, afinal, sem cadáveres, não haveria dissecação para pesquisa e treinamento médico. Na França, os corpos de pobres que morriam nos hospitais eram amplamente usados nos anos 1700.

Uma lei britânica de 1832 permitia acesso aos corpos não reclamados de qualquer um que morresse nas prisões ou hospícios. Nos Estados Unidos, estudantes de medicina roubavam túmulos, com frequência de afro-americanos. "Em Baltimore, os corpos de pessoas de cor são levados exclusivamente para dissecação porque os brancos não gostam, e as pessoas de cor não podem resistir", observou um escritor de viagem britânico em 1838.

Quando pobres eram alvo de roubo de corpos, a prática era justificada por causa de sua pobreza. "Por que seria permitido àqueles que travaram guerra contra a sociedade ou foram um fardo para ela opinar a respeito do que deveria ser feito de seus restos mortais?", perguntou o jornal "The Washington Post" em um editorial de 1877. "Por que não deveriam ser compelidos a ser de alguma valia após sua morte, tendo fracassado em ser de valor ao mundo durante a vida?"

Antes de Hitler, anatomistas alemães se queixaram por décadas ao governo sobre a falta de fornecimento. Eles tinham o direito de reivindicar os corpos dos executados, mas poucas penas de morte eram executadas.

Isso mudou quando os tribunais nazistas ordenaram primeiro dezenas, depois centenas, de execuções de civis a cada ano, em um total estimado de 12 mil a 16 mil de 1933 a 1945. (Os 6 milhões que foram mortos em campos de concentração são contados separadamente, assim como outros muitos milhões que também foram vítimas de assassinato em massa.)

Plötzensee (foto acima) e outros presídios passaram a fornecer aos anatomistas uma abundância repentina. Em meados da década de 30, anatomistas britânicos descreviam com inveja as "fontes valiosas de material" com as quais seus pares alemães contavam.

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As "fontes de material" incluíam muitas pessoas condenadas à morte pelos nazistas por crimes menores, como pilhagem, e muitas condenadas por crimes políticos que irritavam particularmente o regime, que variavam de traição à vaga ofensa de "derrotismo".

As vítimas incluíam pessoas que realizavam protestos políticos como os Schulze-Boysen e os Harnack, que futuramente passariam a ser vistos como heróis. Ao lhes recusar um túmulo, anatomistas como Stieve humilhavam as famílias das vítimas e perturbavam a paz dos mortos.

Alguns poucos desses anatomistas seguiram os nazistas mais além pelo seu caminho tortuoso: eles cometeram ou concordaram com atos de assassinato em massa, em nome da ciência e de dentro dos salões da academia.

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"Estupro legítimo"

Stieve tinha um gosto pela teatralidade: ele apreciava vestir sua longa túnica acadêmica preta para dar aulas. Aos 35 anos, ele se tornou o médico mais jovem a presidir um departamento médico alemão. Isso foi em 1921, pouco depois de Stieve apoiar o golpe que derrubaria a República de Weimar em prol de um regime autoritário.

Stieve também era nacionalista na linguagem: ele apoiava o esforço para substituir anglicismos como "April" e "Mai" por alternativas germânicas. Stieve apoiava Hitler por sua promessa de restaurar o orgulho do país, apesar de não ter ingressado no Partido Nazista. Como a maioria dos acadêmicos, Stieve não protestou quando os nazistas começaram a expulsar os judeus das universidades em 1933.

O principal interesse de pesquisa de Stieve, ao longo de toda sua carreira, era o efeito do estresse e de outras condições ambientais sobre o sistema reprodutor feminino. Ele estudou se galinhas botavam ovos tendo uma raposa engaiolada próxima, e criou condições de estresse para tritões. Stieve estudou úteros e ovários humanos sempre que podia obtê-los de vítimas de acidente ou de ginecologistas que removiam os órgãos durante uma operação.

Antes dos nazistas, o acesso que os anatomistas alemães tinham aos corpos de presos executados era de pouca utilidade para Stieve. Durante a República de Weimar, nenhuma mulher recebia pena de morte.

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O Terceiro Reich e a guerra mudaram isso. Apenas em Plotzensee, os nazistas executaram 3.000 pessoas. Stieve concordou em retirar todos esses corpos das mãos das autoridades prisionais, muito mais do que ele precisava para sua pesquisa.

Ao atender Plotzensee, ele obteve concessões que auxiliaram seu trabalho com o "número sem precedente de mulheres" que passou a dispor, como coloca o anatomista alemão e historiador Andreas Winkelmann.

Em 1942, quando a prisão mudou o horário das execuções para o anoitecer, Stieve visitou a prisão e conseguiu que as execuções voltassem para a manhã, para que ele pudesse continuar processando os órgãos e tecidos no mesmo dia. Ele também obtinha detalhes sobre o prontuário médico das mulheres antes de morrerem, incluindo informação sobre seus ciclos menstruais, suas reações ao ambiente da prisão e o impacto ao receberem a sentença de morte.

Nós sabemos disso porque Stieve mantinha uma lista. O registro oficial dos corpos que ele recebeu se perdeu quando o registro do Instituto de Anatomia foi destruído em 1945, deliberadamente ou devido a um bombardeio. Mas um pastor protestante que atendia os prisioneiros de Plötzensee durante a guerra ajudou a procurar e registrar informação sobre eles.

Ele relatou que, em 1946, Stieve lhe entregou uma lista datilografada de nomes, as pessoas cujos corpos ele usou. Ela foi localizada décadas depois nos arquivos do governo alemão, com adições manuscritas. Havia 182 nomes: 174 mulheres e oito homens. As idades deles variavam de 18 a 68 anos, com a maioria em idade reprodutiva. Duas das mulheres estavam grávidas quando foram mortas. A maioria foi executada por razões políticas. Elas vieram em grande parte da Alemanha e de sete outros países. Libertas Schulze-Boysen é a 37ª na lista de Stieve. Mildred Harnack é a 87ª.

Stieve publicou 230 artigos de anatomia. Com os dados que obtinha antes das execuções, assim como os tecidos e órgãos colhidos e estudados, ele pôde traçar o efeito de uma execução iminente sobre a ovulação.

Stieve descobriu que as mulheres convivendo com a proximidade da sentença de morte ovulavam de forma menos previsível e às vezes experimentavam o que ele chamou de "sangramentos por choque". Em um livro publicado depois da guerra, Stieve incluiu uma ilustração do ovário esquerdo de uma mulher de 22 anos, notando que ela "não menstruava a 157 dias devido à agitação nervosa".

Duas conclusões de Stieve que continuam sendo citadas (em grande parte de forma não crítica) é de que o método rítmico (conhecido como tabelinha) não era eficaz para prevenir a gravidez. (Ele entendeu os detalhes fisiológicos errado, mas chegou à conclusão certa.) E descobriu que estresse crônico (a espera pela execução) afeta o sistema reprodutor feminino.

Em agosto de 2012, o então deputado Todd Akin do Missouri disse que as mulheres podem prevenir sozinhas a gravidez após um "estupro legítimo". Após o alvoroço causado, Akin perdeu a disputa pela cadeira no Senado. Mesmo assim, alguns poucos republicanos o acompanharam, argumentando que o estupro raramente resulta em gravidez, para explicar por que se opunham a isentar as vítimas de estupro das leis que restringem o acesso ao aborto.

Quer saibam ou não, o trabalho de Stieve é a fonte da alegação desacreditada deles. O Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas alertou que dizer que vítimas de estupro raramente engravidam é "medicamente incorreto, ofensivo e perigoso".

Mas o médico antiaborto Jack Willke, ex-chefe do Comitê Nacional do Direito à Vida, insistiu o contrário. "Isso remonta 30 ou 40 anos", ele disse ao "Los Angeles Times" em meio ao furor envolvendo Akin. "Quando uma mulher é atacada e estuprada, há uma quantidade tremenda de transtorno emocional em seu corpo." Willke escreveu que "um dos motivos mais importantes para uma vítima de estupro raramente engravidar" é o "trauma físico".

De onde ele tirou essa ideia? Em 1972, outro médico antiaborto, Fred Mecklenburg, escreveu um ensaio em um livro financiado pelo grupo americano United for Life (Unidos pela Vida), no qual afirmava que as mulheres raramente engravidavam em um estupro. Mecklenburg disse que:

Os nazistas testaram a hipótese de que o estresse inibe a ovulação ao selecionarem mulheres que estavam prestes a ovular e as enviando para as câmaras de gás, apenas para as trazerem de volta após sua realística falsa execução, para ver que efeitos causavam sobre seu padrão de ovulação. Um percentual extremamente alto dessas mulheres não ovulou."

Fred Mecklenburg, médico antiaborto

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Mecklenburg entendeu os fatos de forma errada. O presídio de Plotzensee não era uma câmara de gás. E o trauma prolongado da espera pela execução não é o mesmo que o choque do estupro. Mas quando Hildebrandt, a historiadora de Harvard e anatomista, leu a respeito do argumento de Mecklenburg após eu ter escrito a respeito para a "New York Times Magazine" e "Slate", ela reconheceu o trabalho de Stieve (foto acima).

Mecklenburg tinha citado uma apresentação de um "experimento nazista" por outro obstetra, da Universidade de Georgetown, em uma conferência sobre aborto em 1967, em Washington, D.C. Aquele médico devia estar falando sobre Stieve, diz Hildebrandt, já que "não há outro 'experimento nazista' como esse". Era outro elo na cadeia de Stieve a Mecklenburg, a Willke, aos republicanos antiaborto atuais.

Tomei conhecimento do trabalho dela depois que Hildebrandt escreveu para mim a respeito de Stieve. Ela tem 55 anos e nasceu na Alemanha. Os pais dela eram crianças durante o Terceiro Reich. "Sempre esteve ao nosso redor", ela disse. "Eu não tinha vizinhos judeus. Cursei uma escola primária que levava o nome de um membro da resistência alemã."

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Hildebrandt passou a viver nos Estados Unidos em 2002. O interesse dela pela história da anatomia é recente. "De muitas formas, foi útil para mim formular minhas primeiras ideias por conta própria, com distância física da Alemanha", ela disse. "Não precisei me preocupar em pisar no calo de ninguém. Não sou uma pessoa corajosa."

Em comparação, Hildebrandt diz que Stieve "nunca duvidou de si mesmo". Ela acha que ele se recusava a ver que a ética de como obtinha corpos mudou sob os nazistas. "Ele sabia, mas não queria ver, porque tratava-se de uma grande oportunidade para ele", ela diz. "Ele realmente podia fazer o trabalho que sempre quis fazer."

Quando pedi para saber mais sobre Stieve, Hildebrandt me encaminhou para Winkelmann, o médico alemão e professor de anatomia no Charité, o maior hospital universitário em Berlim.

Nascido em 1963, Winkelmann também é da "geração dos netos", como colocou quando falamos por telefone. Eu lhe perguntei a respeito de como se interessou por Stieve, e ele disse: "Stieve era um anatomista de Berlim como eu. Ele faz parte da minha história. Ele trabalhou no mesmo prédio em que trabalhamos hoje".

Winkelmann ajudou a preparar o caso ético contra Stieve. "A pesquisa dele não pode ser validada sem justificar, ao menos em certo grau, todo o sistema de justiça nazista, que na verdade era um de injustiça", ele argumentou em um artigo de 2009, coescrito com Udo Schagen, um historiador médico do Charité.

Stieve colaborou com os nazistas em sua disposição de aceitar mais corpos do que precisava para pesquisa, e manteve sigilosa sua linha de fornecimento. E Winkelmann apontou que o "uso (por Stieve) do terror do corredor da morte como uma variável científica é sem dúvida insensível".

Mas Winkelmann também apelou por um tipo de misericórdia por Stieve, ou ao menos por uma atenuação:

As pessoas tendem a esquecer que foi apenas nos anos 50 e 60 que programas de doação de corpos foram inventados. Stieve achava que usar os corpos de presos executados era algo normal. Ele não realizou pesquisa para provar que algumas pessoas eram sub-humanas, como alguns médicos fizeram. Eu não acho que isso justifica o que ele fez, mas é possível dizer que pelo menos ele não fez isso."

Winkelmann

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Um monstro?

Winkelmann também reagiu contra duas alegações que transformariam Stieve em um monstro. William Seidelman, um professor de medicina da Universidade de Toronto que escreveu extensamente sobre a medicina no Terceiro Reich, acha que Stieve permitiu que oficiais da SS estuprassem as mulheres em sua lista antes de serem executadas, para que pudesse estudar a migração do esperma. A alegação de Seidelman se baseia em uma carta de 1997 de um ex-aluno de Stieve.

O coautor de Winkelmann, Schagen, conversou com o ex-aluno, e acham que ele estava repetindo um rumor ou interpretando de forma equivocada comentários de Stieve sobre seu trabalho. Nenhum dos trabalhos de Stieve discute migração de esperma. O ex-aluno já morreu e Seidelman mantém sua acusação. Winkelmann a considera "exagerada". Mas acrescenta: "Entendo como Seidelman possa achar que é verdadeira, pois sempre que você olha para a medicina nazista, você descobre que as piores coisas de fato aconteceram".

Um exemplo: há um rumor de que o laboratório de Stieve fazia sabão com os restos mortais das vítimas. Winkelmann também refutou esse. "Mas outro anatomista chamado Spanner transformava corpos em sabão", ele me disse. Rudolf Spanner foi diretor do Instituto de Anatomia de Danzig. Mas não havia uma produção em massa; a "Fábrica de Sabão do Professor Spanner" é um mito. Mas os restos mortais de 147 pessoas não identificadas foram encontrados no instituto de Spanner depois da guerra, e "durante vários interrogatórios, Spanner reconheceu a produção de pequenas quantidades de sabão para fins de trabalho de anatomia, mas não foi processado", escreve Hildebrandt.

Depois da guerra, Stieve insistiu falsamente que não realizou pesquisa em corpos de presos políticos. O anatomista, ele argumentou, "apenas tenta extrair resultados dos incidentes que pertencem às experiências mais tristes conhecidas na história da humanidade". Ele continuou vendo a si mesmo como um homem de ciência. "De forma nenhuma preciso me envergonhar do fato de que pude revelar novos dados a partir do corpos dos executados, fatos que eram desconhecidos antes e agora são reconhecidos por todo o mundo."

Como quase todos os outros anatomistas de sua época, Stieve nunca foi penalizado profissionalmente ou processado por realizar pesquisa nos cadáveres de presos assassinados. Ele continuou dirigindo o Instituto de Anatomia de sua universidade até sua morte por derrame em 1952. Os obituários de Stieve nunca descreveram suas negociações com o presídio de Plötzensee a respeito da melhor hora das execuções, para assegurar a entrega diária de corpos frescos. Eles o saudaram como um cientista altamente respeitado que amava caçar e alpinismo.

Winkelmann me contou uma história estranha que apoia sua interpretação de Stieve como alguém cego pela ciência, não por ideologia. Em 1944, Stieve dissecou um de seus próprios amigos. Walter Arndt era um médico e zoólogo que se converteu ao judaísmo em 1931. Ele foi executado após ser condenado por criticar os nazistas. "Stieve removeu o coração dele e o guardou", Winkelmann me disse.

Stieve queria doar seu próprio corpo para a ciência quando morresse. Mas sua esposa fez objeção. Assim, no final, ele foi enterrado."

Winkelmann

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Psicopatas pervertidos?

Com o fim da guerra, veio uma primeira chance de investigação. Os governos da ocupação militar estabelecida depois da guerra tentaram encontrar os corpos de dissidentes políticos e estrangeiros. E as famílias à procura de seus entes queridos começaram visitando os institutos de anatomia da Alemanha. A aquisição dos corpos era um segredo aberto. "Assim, era perguntado aos anatomistas sobre a identidade e destino dos corpos restantes nos espaços de depósito de seus institutos", escreve Hildebrandt.

Mas com frequência a identificação era impossível: documentos tinham se perdido, os corpos dissecados eram irreconhecíveis. Nos julgamentos de Nuremberg, 23 médicos foram indiciados. Mas os poucos indiciados por crimes eram médicos na linha de frente nazista: aqueles que realizaram experiências em pessoas vivas em campos de concentração, não o número muito maior de acadêmicos que permaneceram nas universidades.

"Muitas pessoas na profissão médica que exerceram papéis importantes durante o Terceiro Reich mantiveram seu poder após a guerra, especialmente no meio acadêmico", Seidelman me disse. "Eles conseguiram manter as coisas encobertas."

Metade dos médicos da Alemanha ingressou no Partido Nazista. Apesar de desnazificação que ocorreu depois da guerra, quase todos eles continuaram praticando. "As pessoas não queriam saber", disse Arthur Caplan, um bioeticista da Universidade de Nova York e autor de "Quando a Medicina Enlouqueceu: A Bioética e o Holocausto" (não lançado no Brasil, mas disponível em português de Portugal).

"Quem seriam os médicos se não os médicos de antes da guerra? Quem mais preencheria as universidades? O establishment alemão não queria expurgar todos os médicos que fizeram coisas ruins."

Museum of Natural History Museum of Natural History

Assim, foi oportuno quando um influente médico alemão, ao qual foi pedido que estudasse o assunto, declarou em uma convenção nacional em 1948 que entre os 90 mil médicos do país, apenas 300 ou 400 estiveram envolvidos em crimes nazistas. Outros médicos rapidamente adotaram a avaliação, "já que lhes permitia convenientemente declarar que as atrocidades médicas do Nacional-Socialismo foram cometidas por apenas alguns poucos psicopatas pervertidos", escreve Hildebrandt.

Caplan enfatiza que isso é uma armadilha. Ele defende a importância de ver os médicos que tiraram proveito da imoralidade nazista para beneficiar suas pesquisas não como "malucos", mas em vez disso como típicos e convencionais para sua época e lugar. "Um dos maiores desafios em toda a ética é, como pessoas legítimas, tradicionais, fazem coisas malignas?" ele disse. "Não é como se necessariamente pudéssemos impedir isso. Mas entender como isso aconteceu, essa é nossa melhor esperança."

Quanto maior o distanciamento, mais esse tipo de investigação profunda se torna possível. Nos anos após a guerra, entretanto, quando os horrores dos campos ainda eram frescos, punir os piores dos piores médicos tinha precedência. O único anatomista que foi para a prisão era um deles.

Johann Paul Kremer era um oficial da SS assim como anatomista da Universidade de Münster. Lá, ele conduziu experimentos com animais a respeito da fome. Designado para Auschwitz, ele deu continuidade a sua pesquisa em seres humanos. Ele observava os prisioneiros, ele disse posteriormente, "e quando um deles me interessava devido ao estágio altamente avançado de fome, eu ordenava que aquele paciente fosse reservado para mim e que me informassem quando aquele paciente seria morto com a ajuda de uma injeção". Kremer com frequência testemunhava as mortes. Ele coletava tecido e o enviava para Münster.

Em outra faceta de seu trabalho, Kremer selecionou 10.717 prisioneiros para a morte na rampa do trem em Auschwitz. Por isso, ele foi condenado à morte na Polônia em 1948. Ele cumpriu 10 anos de prisão antes de ser solto e retornar para Münster.

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Enquanto isso, outros anatomistas escondidos na academia escaparam impunes com crimes terríveis, mesmo quando os Aliados tinham conhecimento direto deles.

Em junho de 1945, um neurologista de Boston chamado Leo Alexander, um consultor do secretário de Guerra dos Estados Unidos, visitou Julius Hallervorden, um médico e membro do Partido Nazista que, em 1938, se tornou chefe do departamento de neuropatologia do Instituto Kaiser Wilhelm para Pesquisa do Cérebro (um dos centros mais proeminentes de pesquisa psiquiátrica do mundo, com um prédio financiado nos anos 20 pela Fundação Rockefeller).

Hallervorden mostrou a Alexander uma coleção de 110 mil amostras de cérebro de 2.800 pessoas. Hallervorden disse que juntamente com o diretor de seu instituto, Hugo Spatz, ele coletou os cérebros das vítimas da Ação T-4, o programa nazista para matar pacientes psiquiátricos com gás em seis centros de "eutanásia" na Alemanha e na Áustria. "Hallervorden estava presente no momento das mortes e removeu os cérebros das vítimas assassinadas", escreve Seidelman.

Alexander relatou o que soube, mas ninguém agiu contra Hallervorden e Spatz. Eles foram autorizados a ajudar a transferir o Instituto Kaiser Wilhelm para Frankfurt, Alemanha, onde foi rebatizado de Instituto Max Planck para Pesquisa do Cérebro. Eles continuaram sendo reconhecidos por seu principal feito científico: em 1922, Hallervorden e Spatz descobriram uma doença degenerativa do cérebro que acabou recebendo o nome deles.

Os dois neuropatologistas concluíram suas carreiras e morreram nos anos 60. Em 1982, Hallervorden foi homenageado por uma universidade alemã; a citação o chamou de "um grande e velho homem da neuropatologia alemã e internacional".

Agora, devido aos métodos posteriores de Hallervorden e Spatz, a doença que descobriram tem outro nome. Essa é a decisão acertada, diz Caplan da Universidade de Nova York. Apesar de não achar que a ciência deva descartar as descobertas de Hallervorden e Spatz, ele também tem regras para lidar com dados manchados.

"Se você usá-los, é melhor ter certeza de que não tem outra escolha", ele disse. "O propósito deve ser salvar vidas ou muito, muito importante. E precisa admitir que o está usando, mas sem dar crédito à pessoa que lhe deu os experimentos manchados. Você diz: 'Isso veio de um cientista alemão proeminente sob os nazistas', mas sem os reconhecer pelo nome." Isso é adequado. Mas foi preciso muito tempo para se chegar aí.

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"Sujando o ninho"

Nos anos 80, os médicos e cientistas da geração da Segunda Guerra Mundial não mais comandavam as escolas de medicina e institutos de anatomia da Alemanha. Eles já tinham passado o bastão para seus pupilos. Mas essa segunda geração não estava mais ávida em escavar o passado.

Quando estudantes de medicina alemães e alguns poucos pesquisadores, Seidelman entre eles, começaram a fazer perguntas sobre a conduta dos anatomistas sob Hitler, e os status das lâminas e amostras de tecido que deixaram como materiais didáticos, seus questionamentos em grande parte se deparavam com um muro de negação. Professores repreendiam a nova geração de estudantes por exigir mais informação, os censurando por serem "nestbeschmutzer", ou estarem "sujando o ninho".

Mas o muro de negação começou a rachar quando um historiador e jornalista alemão, Götz Aly, persistiu em seus pedidos de acesso à coleção de amostras do Instituto Max Planck. Assim que conseguiu entrar, Aly identificou algumas das vítimas de eutanásia da Ação T-4 e começou a pressionar pelo enterro das amostras. Era uma ideia nova.

O diretor do Instituto Max Planck resistiu, contestando as alegações de Aly. Mas Aly contava com evidências sólidas. Em pequenos grupos, os estudantes de medicina alemães começaram a aderir à mesma causa.

Na Universidade de Heidelberg, onde Gerrit Hohendorf (atualmente um professor da Universidade Técnica de Munique) foi estudante, "Eles não queriam uma investigação independente ou que estudantes lidassem com essas coisas", ele me disse.

"Nós organizamos uma série de palestras de estudantes por conta própria, sem apoio da faculdade ou dos professores de medicina. Nós ouvimos coisas sobre crianças mortas por eutanásia no hospital psiquiátrico de Heidelberg, então fomos ao hospital e perguntamos aos professores."

A nova onda de atenção chegou ao ápice na Universidade de Tübingen, em 1989, quando a exigência por parte dos estudantes de uma investigação recebeu atenção da imprensa nacional. Reportagens na TV e em jornais e revistas destacaram a continuidade do uso de amostras da era nazista para pesquisa e ensino.

Manifestantes protestaram do lado de fora da embaixada alemã em Israel, e o ministro da Religião israelense exigiu que o chanceler Helmut Kohl devolvesse os restos mortais de todas as vítimas dos nazistas para que fossem enterrados de forma apropriada. Aly jogou mais lenha na fogueira com um artigo citando Hallervorden dizendo "quanto mais, melhor", sobre os cérebros que adquiriu. "Não ouvi nenhum anatomista alemão que, depois da guerra, tenha repudiado as práticas nazistas e enterrado sua coleção obtida de forma imprópria", escreveu Aly.

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Dois livros importantes foram publicados: "Doctors Under Hitler" (Médicos sob Hitler, em tradução livre, não lançado no Brasil), pelo historiador da Universidade de York, Michael Kater, e o volume sobre saúde, raça e política alemã do historiador de Oxford Brookes, Paul Weindling.

Caplan realizou a primeira conferência sobre medicina e ciência durante a era nazista em Minnesota. Uma proposta de boicote aos dados alemães obtidos sob Hitler foi discutida. A Universidade de Tübingen emitiu um pedido público de desculpas e criou uma comissão para investigação que serviu como modelo para outras escolas. E a Sociedade Max Planck reconheceu que sua coleção continha tecidos de vítimas de eutanásia, incluindo 700 crianças.

A Sociedade Max Planck enterrou esses restos mortais em uma cerimônia memorial em maio de 1990. Era a exigência que Aly vinha fazendo. Mas não foi suficiente, na visão de Seidelman e Caplan, que começaram a exercer um importante ativismo entre os pesquisadores ocidentais.

Seidelman protestou contra o descarte dos restos mortais humanos em uma vala comum, sem descobrir "quem eram essas pessoas, como morreram", e como seus tecidos foram usados por quase meio século. Ele e Caplan pediram por um inquérito de bioética e reconhecimento internacional. Isso não aconteceu. "Eles não estavam prontos", diz Seidelman.

Em 1992, o governo alemão ordenou que todas as universidades públicas investigassem suas coleções de anatomia. Algumas seguiram os passos de Tübingen. Outras seguiram o exemplo da Max Planck de descarte em massa.

"Os corpos das vítimas eram vistos como 'poluindo' as universidades alemãs", escreve Weindling, o historiador britânico. E algumas universidades ignoraram a ordem do governo ou alegaram que não podiam atendê-la, pois seus prédios foram bombardeados durante a guerra.

O esforço para realização de uma investigação nacional plena afundou em um momento de distração nacional: o Muro de Berlim caiu em novembro de 1989 e a União Soviética logo entraria em colapso. Em meio à agitação, a indiferença venceu. Como um professor de anatomia disse duas décadas depois, aos 96 anos, quando foi entrevistado sobre o uso de corpos de executados em seu instituto em Viena: "Ninguém se importava, então por que deveríamos?" Um colega de 77 anos disse o mesmo: "Ninguém se importava".

Os dois homens falavam sobre uma controvérsia que estourou em seus próprios institutos. Ela envolvia um trabalho de importância científica duradoura, um que ocupa seu próprio nicho e é usado por médicos e pesquisadores de todo o mundo, o atlas Pernkopf.

Eduard Pernkopf trabalhou nos quatro volumes de seu atlas em Viena por mais de 20 anos, a partir de 1933. "Ele trabalhava 18 horas por dia dissecando corpos humanos e supervisionando uma equipe de artistas que pintava o que ele revelava em detalhes minuciosos", explica Heather Pringle na revista "Science".

"The New England Journal of Medicine" chamou o atlas de "um livro excepcional de grande valor" em 1990. "Se você é um anatomista sério como eu, você ainda olha para a coisa, porque tem mais detalhes do que qualquer outro", diz Hildebrandt. "E algumas das imagens aparecem em livros posteriores de anatomia."

Pernkopf era um nazista. Como reitor da escola de medicina da Universidade de Viena, ele expulsou judeus do corpo docente mais rápido do que qualquer outra autoridade de universidade do Terceiro Reich. A insígnia nazista aparece em seu atlas, inserida nas assinaturas dos artistas.

Um professor de odontologia da Universidade de Columbia, Howard Israel, começou a perguntar sobre a insígnia em 1994. "Sua esposa lhe deu o atlas como presente quando estava cursando odontologia", diz Seidelman. "Ele o usava todo dia."

Seidelman levou as preocupações de Israel ao Yad Vashem, o museu do Holocausto em Jerusalém.

Um dos homens retratados no atlas tinha a cabeça raspada, seria um judeu vítima de campo de concentração? Cartas começaram a ser trocadas entre o Yad Vashem e Viena. As autoridades austríacas inicialmente negaram que qualquer ilustração no atlas tivesse vindo da era nazista. O cabelo de todos os cadáveres era raspado no instituto, elas disseram.

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"Nós apontamos por que estavam errados", diz Seidelman. Em um simpósio de 1999 da Universidade de Viena chamado Medicina Sob Escrutínio, o reitor anunciou um comitê de investigação. "Ele disse que consultou o corpo docente de medicina e percebeu que eles mentiram", lembra Seidelman, que também falou no simpósio. "Ele se erguer em público e dizer aquilo, foi arriscado. Foi muito importante."

O comitê de investigação documentou a entrega de 1.377 corpos à universidade provenientes das câmaras de execução do tribunal regional de Viena. As imagens do atlas de Pernkopf não podiam ser rastreadas a vítimas individuais, mas os historiadores com os quais conversei acham que é grande a probabilidade de que os desenhos retratem pessoas executadas pelos nazistas.

E havia mais: um elo entre os cientistas da universidade e Heinrich Gross, o médico que chefiava a ala de bebês da Spiegelgrund, a ala infantil do Hospital Psiquiátrico de Viena, durante a guerra. Gross realizou experimentos dolorosos em crianças vivas ali, sendo que algumas delas morreram em decorrência delas.

Uma criança que sobreviveu disse que as crianças chamavam Gross de "o Ceifador"; outra lembrou que a chegada dela à ala "era como a chegada de um vento frio".

Ao todo, 772 crianças morreram em Spiegelgrund, cerca de metade delas na ala de Gross. Em 1948, ele foi acusado de homicídio doloso. Mas o código penal sob o qual foi processado não definia assassinato como incluindo pessoas inválidas, pois "não eram capazes de raciocinar". Ele então foi considerado culpado apenas de homicídio culposo (sem intenção de matar), e quando Gross apelou e venceu, o promotor optou por não recorrer.

Gross voltou para Spiegelgrund (ela foi rebatizada) e continuou sua pesquisa usando os cérebros colhidos das crianças que morreram ali. Ele publicou 35 artigos, alguns dos quais em conjunto com o corpo docente da Universidade de Viena. Ele também testemunhou como especialista psiquiátrico em milhares de casos em tribunais austríacos. Em 1975, ele foi condecorado com a Cruz de Honra Austríaca para Ciências e Arte.

Quando o comitê da Universidade de Viena gerou atenção renovada a essa história, as evidências contra Gross também vieram à tona em arquivos da Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental. Em 1999, ele foi indiciado de novo por homicídio. Mas os advogados de Gross disseram que ele sofria de Alzheimer e não podia entender o processo contra ele. O tribunal aceitou essa defesa. Mas Seidelman não acredita nisso. "Você sabe o que Gross fez?" ele perguntou. "Ele sorriu e foi para um café com seus amigos e família para celebrar."

Gross viveu por mais seis anos, até os 90 anos. Em 2002, as amostras humanas do tempo de guerra da Universidade de Viena foram enterradas no cemitério judeu da cidade, e os cérebros das crianças de Spiegelgrund foram colocados no cemitério principal. A Cruz Austríaca foi retirada de Gross no ano seguinte.

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Doação de corpos

A história há muito enterrada da anatomia da era nazista está vindo à tona agora por causa do aumento de investigações pela terceira geração do pós-guerra. Esses acadêmicos também desejam fazê-lo em memória das vítimas. "Nunca esperei ver esse reconhecimento em meu tempo de vida", me disse Seidelman. Ainda assim, é "apenas o início", como escreveu Hildebrandt em 2012 com Christoph Redies, diretor do departamento de anatomia da Universidade de Jena, na Alemanha, e outro líder na nova história, que acompanha o primeiro simpósio público de anatomia durante o Terceiro Reich, realizado pela prestigiosa sociedade internacional de anatomia, Anatomische Gesellschaft, fundada em 1886.

Hildebrandt rastreou evidência mostrando que após a Segunda Guerra Mundial, durante a ocupação Aliada, os Aliados interrogaram anatomistas em 11 dos 31 institutos de anatomia das universidades na Alemanha, Áustria, Polônia e do restante do território ocupado pelo Terceiro Reich. Desde 1992, quando o governo alemão ordenou que as universidades investigassem suas coleções de anatomia e suas histórias da época da guerra, apenas 14 das 31 universidades realizaram exames plenos e meticulosos.

As outras 17 realizaram investigações preliminares ou nenhuma. Isso significa que elas ainda possuem um enorme problema do tipo Henrietta Lacks. Por exemplo, na Jena, que abriu sua coleção para inspeção externa em 2005, mais de uma dúzia de blocos de parafina com amostras histológicas, extraídas de quatro pessoas executadas sob Hitler, foram encontradas nos últimos três anos. É impossível dizer o que há nas coleções das escolas que não realizaram esse tipo de levantamento.

No best-seller de 2010 de Rebecca Skloot sobre Lacks, cujo câncer cervical produziu uma linhagem de células que se tornou a base para décadas de avanços científicos, a autora levanta questões éticas profundas sobre o uso das células de Lacks: afinal, ela e sua família nunca deram consentimento a qualquer pesquisa realizada com o tecido dela.

O consentimento informado é a diferença moral entre o destino dos corpos de Libertas e Harro Schulze-Boysen e o de doadores voluntários. Anatomistas e estudantes de medicina precisam de cadáveres. A ciência precisa de ossos e tecidos. O argumento utilitário para uso de corpos de executados ou pessoas que morreram em instituições públicas e cujos cadáveres não são reclamados, é de que o benefício científico é maior que o dano moral. E os mortos nunca saberão.

Quando o consentimento informado não é a regra, as pessoas cujos corpos e tecidos são destinados à medicina são em sua maioria os pobres e marginalizados. Em um artigo na "Clinical Anatomy", o bioeticista Gareth Jones e a anatomista Maja Whitaker, ambos da Nova Zelândia, pedem por um padrão internacional de consentimento informado. "Os anatomistas devem cessar de usar corpos não reclamados", eles escrevem.

Isso mudaria a prática em vigor em alguns países africanos e também em Bangladesh, Índia e Brasil, dizem Jones e Whitaker, onde doações são raras ou inexistentes. Também exigiria a mudança da lei em partes dos Estados Unidos. "Maryland, Pensilvânia, Carolina do Norte, Michigan e Texas repassam automaticamente os corpos não reclamados para os conselhos estaduais de anatomia", escrevem os autores. Também há preocupações com os corpos dos executados na China.

AP AP

Em um e-mail, Jones me disse que vê as leis estaduais que ainda permitem o uso de corpos não reclamados como uma "ressaca histórica". É hora de esses estatutos mudarem. Os países sem uma tradição de doação de corpos representam um dilema maior, mas Jones acha que cadáveres poderiam ser enviados de lugares onde há boa oferta para aqueles onde não há.

"Temos que começar a considerar seriamente isso", ele escreveu. "Corpos são doados onde há boas relações entre os que pedem os corpos (os departamentos de anatomia) e aqueles capazes de fornecer os corpos (pessoas comuns da comunidade). Isso exige confiança e entendimento mútuo, algo que é desenvolvido ao longo de muitos anos. Na minha estimativa, esse lado da doação tem sido seriamente ignorado e minimizado pelos anatomistas." O mesmo pode se aplicar à doação de órgãos.

Como escrevem Jones e Whitaker, "Sempre haverá tensão entre a obtenção de uma variedade satisfatória de material humano aceitável, tanto para ensino quanto para pesquisa, e o respeito por padrões éticos exigentes". O campo da anatomia há muito fracassou em conseguir o equilíbrio certo. Isso ajuda a explicar o que deu tão errado entre os anatomistas da Alemanha nazista. "É uma profunda infelicidade eles terem pertencido a uma disciplina que na época dava pouca atenção à ética (uma crítica que pode ser aplicada por muitos anos após os anos 40 a qualquer país)", Jones escreveu para mim. "Consequentemente, eles operavam com um etos que permitia um comportamento não ético estarrecedor. Isso de forma nenhuma justifica qualquer uma de suas práticas, mas se a anatomia como disciplina fosse radicalmente diferente, ao menos parte dos horrores desse canto das atrocidades nazistas poderia não ter ocorrido."

Em 2001, Hubert Markl, presidente da Sociedade Max Planck, fez um discurso histórico sobre a culpa dos médicos e cientistas da sociedade na época da guerra. Markl reconheceu que Josef Mengele (foto), o notório médico nazista que escolhia as pessoas que viveriam ou morreriam em Auschwitz, realizou sua pesquisa perversa com gêmeos juntamente com seu mentor, um antropólogo do Instituto Kaiser Wilhelm, o precursor da Sociedade Max Planck.

Na plateia estavam alguns poucos sobreviventes das experiências de Mengele. Markl pediu desculpas a eles pessoalmente. "É uma forma dolorosa de encontrar o passado quando se está pessoalmente face a face com as vítimas desses crimes", ele disse. "Eu peço a vocês, vítimas sobreviventes, do fundo do meu coração, para que perdoem aqueles que, independente de seus motivos, fracassaram em lhes pedir eles mesmos."

Esse é o mais recente estágio do acerto de contas: tentar atender às vítimas e à memória delas. O avanço mais notável veio do jornalista alemão e professor de cultura de Tübingen, Hans-Joachim Lang. Ele identificou todos os judeus escolhidos para morrer com gás por August Hirt, diretor do instituto de anatomia de Estrasburgo, que tinha um plano singularmente macabro para seus restos mortais.

Hirt estava interessado em aumentar a coleção de crânios da Universidade de Estrasburgo. "Apesar de coleções extensas de crânios existirem de quase todas as raças e povos", faltavam os judeus, ele escreveu ao diretor de um grupo de pesquisa da SS estabelecido para provar a superioridade ariana. "Começando pelos comissários judeus-bolcheviques, que representam um tipo repulsivo, porém característico, de sub-humano, temos a oportunidade de adquirir um documento científico tangível ao obtermos seus crânios."

Hirt estava basicamente competindo com o Museu de História Natural de Viena, que obteve crânios judeus junto a outro anatomista, Hermann Voss. Na consulta aos funcionários de Heinrich Himmler, Hirt recebeu permissão para seguir em frente.

Dois funcionários foram enviados para Auschwitz para separar um grupo de judeus, 30 mulheres e 79 homens. Eles foram examinados de acordo com os padrões para discriminação racial na época: a cor da pele, cabelo e dos olhos e codificados com uso de tabelas especiais, e as formas de suas cabeças, testas, narizes, bocas e orelhas foram medidas. Cinquenta e sete dos homens e 29 das mulheres foram escolhidos. Eles foram mortos com gás em uma câmara especial e seus corpos entregues para Hirt em seu instituto de anatomia.

Os corpos foram armazenados por Hirt no porão. No final, ele não trabalhou neles, pois carecia de equipamento durante a guerra.

No final da guerra, Himmler ordenou que os corpos fossem destruídos. Mas em janeiro de 1945, após a libertação de Estrasburgo, o jornal "Daily Mail" de Londres noticiou a descoberta deles no instituto de anatomia. Acusado como fanático, Hirt apontou que corpos podiam ser encontrados em todos os institutos de anatomia. Os cadáveres, ele escreveu, "são os cadáveres habituais para treinamento de dissecação".

Cortesia de Hans-Joachim Lang Cortesia de Hans-Joachim Lang

Hirt se escondeu em abril daquele ano e cometeu suicídio dois meses depois. Foi descoberto que a ordem de Himmler foi parcialmente cumprida: as cabeças de 70 corpos foram removidas e cremadas. Os militares franceses, que controlavam Estrasburgo, desistiram de tentar identificá-los e enterraram os corpos no cemitério judeu local, em uma vala comum.

Mas os franceses deixaram para trás documentos que mostravam que os funcionários do laboratório de Hirt tinham esquecido de remover os números do campo de concentração de alguns dos corpos. E um desses funcionários revelou no julgamento dos médicos em Nuremberg que tinha anotado os números sem saber do que se tratavam. Ele guardou o papel.

Após uma longa busca, Lang encontrou uma cópia dele no Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos. Ele traduziu os números de volta em nomes. Ele encontrou fotos de algumas das vítimas. Ele descobriu quais eram suas cidades de origem. Um homem, Frank Sachnowitz (foto), veio da Noruega. Seu irmão, que sobreviveu a Auschwitz, escreveu em um livro de memórias que seu pai tinha plantado uma macieira, a árvore da vida, para si mesmo, sua esposa e cada um de seus oito filhos no quintal da família. Antes da guerra.

Em 2005, uma pedra memorial com os nomes das vítimas foi adicionada ao seu túmulo. Lang criou um site a respeito delas. "A lembrança de seus destinos (...) não devolve, como é dito com frequência, a dignidade às vítimas", ele escreveu neste ano em um artigo na "Annals of Anatomy". "Não são as vítimas que perderam sua dignidade, mas sim aqueles que as perseguiram. Não deve ser permitido que os perpetradores tenham a palavra final."

Hildebrandt também considera esta como sendo sua missão: "Converter os números novamente em nomes", como ela coloca. Ela publicou a lista de Stieve, dando à "BBC" as fotos e detalhes sobre algumas das mulheres, além de ajudar a "Slate" neste artigo. Ela abre um de seus artigos com uma citação de 1946:

A dificuldade é, como você pode ver, que nossa imaginação não consegue contar (...) E se eu digo que um morreu, um homem que fiz você conhecer e entender (...) então talvez eu tenha lhe dito algo que você deveria saber a respeito dos nazistas."

Hildebrandt

 Erich Maria Remarque Peace Center Osnabrück Erich Maria Remarque Peace Center Osnabrück

As palavras vieram de um homem que conhecia o poder da narrativa: Erich Maria Remarque (foto, com as irmãs). Ele escreveu "Nada de Novo no Front", o romance clássico sobre a Primeira Guerra Mundial. Remarque serviu em uma batalha da Primeira Guerra Mundial com Hitler. Mas os nazistas proibiram e queimaram seu livro.

Ele partiu da Alemanha para a Suíça nos anos 30. Sua irmã, Elfriede Scholz, permaneceu no país com seu marido e dois filhos. Ela foi declarada culpada de "minar o moral" em 1943, ao dizer que achava que a guerra estava perdida. "Seu irmão infelizmente está além de nosso alcance, mas você não escapará de nós", disse o juiz ao dar a Scholz a sentença de morte. Assim como Libertas Schulze-Boysen e Mildred Harnack, ela foi executada na prisão de Plötzensee e seu corpo foi entregue a Stieve.

Hildebrandt contou cerca de 2.000 vítimas de execução da anatomia da era nazista que foram identificadas individualmente. Ela aponta que mesmo assim, "os memoriais existentes raramente citam nominalmente os indivíduos".

Weindling está tentando identificar as vítimas de todos os experimentos médicos da era nazista, incluindo aqueles das eutanásias da Ação T-4. Ele tem sido impedido pelas regras dos arquivos alemães, que ditam que os nomes não podem ser divulgados por razões de privacidade, pois eram pacientes psiquiátricos.

German Resistance Memorial Center German Resistance Memorial Center

Mas após a passagem de tantos anos, privacidade é realmente a principal preocupação?

Enquanto escrevia este artigo e convivia com seus horrores, as fotos das mulheres e homens em seu centro me seguraram. Eles são jovens. São cheios de vida. Eles vestem os chapéus e roupas da geração dos meus avós. Eu aprendo pouco com os rostos dos anatomistas. Mas poderia olhar para sempre para Libertas e Harro Schulze-Boysen, Arvid e Mildred Harnack (foto), e Frank Sachnowitz.

Não consegui encontrar uma foto de Charlotte Pommer. Ela nunca se casou e nem teve filhos. Ela morreu em uma casa de repouso perto de Munique em 2004 e doou seu corpo para a anatomia.

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