Minha casa é no cemitério

Brasileiro fotografa famílias que trabalham, estudam e até tomam banho ao lado de ossadas nas Filipinas

Beatriz Montesanti Do UOL, em São Paulo
Gustavo Gusmão

Em um cemitério, um colchonete é encaixado em meio a tumbas e jazigos. Sobre lápides, jovens estendem uma rede de vôlei e, ao lado de um funeral, crianças tomam banho.

Essa é a rotina não de um, mas de diversos cemitérios de Manila, capital das Filipinas, onde cerca de 6.000 pessoas, sem ter onde morar em uma das cidades mais densas do mundo, encontraram entre os mortos um lugar para viver.

Os cemitérios-favela têm hoje escolas, comércio e o próprio sistema de transporte. Seus moradores se ocupam de ofícios diversos, a maior parte associada ao mercado fúnebre. Por mais mórbido que soe, é um estilo de vida.

O fotógrafo paulistano Gustavo Gusmão vivia no país asiático havia pouco mais de três meses quando passou a frequentar essas comunidades. Sua estadia se estendeu por dois anos e o resultado dessa experiência foi o projeto Limbus, ensaio composto de 15 fotografias saturadas que registram o dia a dia da população à margem da sociedade filipina.

“Eu sabia que até eu realmente entender o que é esse modo de vida demoraria um tempo. É uma realidade muito diferente da nossa. Envolve muitas questões, para além da pobreza, da miséria. Envolve um modo de vida. É complexo”, diz o fotógrafo em entrevista ao UOL

O nome do projeto, Limbus, veio da ideia de ser um lugar à margem da sociedade, resultado do descaso de autoridades e do esquecimento de populações inteiras.

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Os primeiros residentes

O North Manila Cemitery começou a funcionar em 1904. Hoje, com seus cerca de 54 hectares de área, é um dos maiores e mais antigos cemitérios do país. Abriga ao menos 1 milhão de mortos, além dos cerca de 2.000 vivos.

Algumas de suas tumbas são centenárias. Ali estão enterradas personalidades históricas e celebridades, que atraem visitantes aos mais vistosos mausoléus.

Há mais de 50 anos, as famílias abonadas passaram a pagar para pessoas tomarem conta das tumbas: lavar, vigiar, trocar as flores. Foi assim que chegaram os primeiros residentes, que, ao dormirem sobre as sepulturas, poupavam o dinheiro e o desgaste do deslocamento até a periferia da Grande Manila.

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Logo outras pessoas chegaram fugindo das lotações, violência e péssimas condições de vida das favelas da periferia - que incham progressivamente desde o final da ditadura no país, em meados da década de 1980, quando milhares de pessoas migraram dos campos para a capital.

Hoje, Manila é uma das cidades mais densas do mundo --são 71 mil pessoas por quilômetro quadrado, segundo Censo de 2015. Para comparar, a populosa Mumbai, na Índia, têm 32 mil pessoas por quilômetro quadrado. Em São Paulo, há 7.400 habitantes por quilômetro quadrado. Manila é uma cidade insustentável.

Em oposição, no cemitério, a vida é mais calma, contaram alguns moradores a Gusmão.

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A vida ao lado da morte

O fotógrafo descreve as comunidades como locais de miséria extrema, em que pessoas trabalham em 'bicos' diversos e crianças brincam ao lado da morte.

Além dos cuidadores de tumbas, há outros trabalhadores do mercado local: fazedores de lápides, coveiros, vendedores de velas e flores. Há também um comércio voltado para os moradores, com lojas de conveniência, bares e karaokês. E pessoas que trabalham fora, mas voltam ao cemitério para dormir, como os motoristas de ônibus e de jeepneys --táxis típicos, feitos de jipes militares norte-americanos abandonados após a Segunda Guerra Mundial.

“Ao mesmo tempo em que você está lá vendo pessoas jogando basquete, tem alguém sendo enterrado e crianças atrás do funeral pedindo dinheiro. Ou pessoas tomando banho ao lado de ossadas. É muito forte. E é banal”, diz.

O que acontece lá, ninguém vê

Gustavo Gusmão

Gustavo Gusmão, fotógrafo

Gustavo Gusmão Gustavo Gusmão

Como há muitas crianças, explica Gusmão, foram criadas também escolas improvisadas, com voluntários tanto de fora quanto do próprio cemitério que se revezam para dar aulas.

Há também traficantes, ladrões e usuários de drogas, o que fez aumentar a violência nos cemitérios, ante a guerra às drogas lançada pelo atual presidente, Rodrigo Duterte.

A metanfetamina, conhecida no país como shabu, é atualmente a droga mais popular. Segundo o escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, são ao menos 900 mil usuários de shabu nas Filipinas. 

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'Zumbis' ou apenas pobres?

O presidente Duterte se elegeu em 2016 com a missão de erradicar o tráfico de drogas no país, custe o que custar. Desde então, sua guerra às drogas, tokhang como é chamada localmente, já deixou mais de 12 mil mortos, entre traficantes, usuários ou meros suspeitos, segundo a organização não governamental Human Rights Watch. Ativistas dizem que o alvo é a população mais pobre irrestritamente. 

Na linha de frente da matança estão policiais e quadrilhas de vigilantes incentivados pelas autoridades. Duterte alimenta a perseguição chamando os usuários de “zumbis” e “sem uso para a sociedade”.

Os mortos formam o “complexo Duterte” no cemitério Pasay City, como passou a ser chamada a ala em que são deixados, segundo uma reportagem do site investigativo The Ferret. Moradores trabalham na ampliação do local, já abarrotado com os corpos da guerra.

O extermínio fez dos cemitérios-favelas também lugares mais perigosos, perturbando o sossego anterior. Batidas policiais são constantes, assim como a visita das milícias. “Mas o que acontece lá, ninguém vê”, diz Gusmão. 

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No começo é muito difícil encarar a morte assim, mas, depois de um tempo, não sentia mais os cheiros, não sentia mais o esgotamento

Gustavo Gusmão

Gustavo Gusmão, fotógrafo

Ossadas queimadas

Jazigos podem ser usados pelo período de cinco anos nos cemitérios das Filipinas.

Esgotado o tempo, familiares podem pagar uma nova taxa para que o corpo permaneça no local. Do contrário, as ossadas são retiradas.

Algumas são queimadas, outras, espalhadas pela superfície do terreno. “O que não cabe, não dá para queimar no dia, eles jogam para trás”, conta o fotógrafo.

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As circunstâncias criam um cenário ainda mais lúgubre, com crânios e esqueletos a céu aberto, ignorados pela rotina da comunidade.

“No começo é muito difícil encarar a morte assim, mas, depois de um tempo, quando você começa a viver aquilo, para mim ficou um pouco normal. Eu não me impressionava mais, não sentia mais os cheiros, não sentia mais o esgotamento do começo, após um dia naquele ambiente. O ser humano se adapta”, diz Gusmão.

O fotógrafo esteve em Manila por dois anos. Muitos moradores do cemitério nasceram ali mesmo, ali enterraram seus pais e ali tiveram filhos. Sonham em se mudar, mas sabem que no cemitério conseguem viver. 

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