Da rua se vê em grandes letras “bazar” e nenhuma numeração. É o encontro de duas ruas na várzea da Barra Funda (região central de São Paulo) onde antes havia uma estação, a da Barra Funda, em que paravam os trens da antiga ferrovia Santos-Jundiaí e, depois, com a inauguração do gigantesco terminal de passageiros intermodal do bairro, abrigavam os passageiros que aguardaram, nos anos 1990, os trens de luxo de São Paulo para o Rio de Janeiro.
Hoje, quem trabalha nos escombros do que um dia foi uma estação ferroviária é o advogado Edivaldo Godoy, 55. As escadarias que dão para a antiga passarela funcionam como a sua central de contatos. Sua função é ajudar aqueles, que como ele, viveram no sistema prisional do Estado de São Paulo.
Na Barra Funda, Godoy junta os pontos de sua trajetória que já foi errática. Há 40 anos, também em uma estação de trem, ele partia de Catanduva, no interior de São Paulo, para a capital paulista. Foi morar nas ruas e continuar o que fazia na cidade da região da Alta Araraquarense: pequenos furtos.
“Eu era muito danado, não tinha medo de nada”, diz. “Minha ascensão foi por isso, pela minha coragem. Fui criando respeito. Quando falava que era comigo, falavam: ‘Com ele, eu vou’. Dava certo o que a gente fazia. Eu queria que todo mundo tivesse suas coisas: comprei carro, casa. Tinha muita maconha, mas aí a cocaína estava no auge, todo mundo queria e ninguém tinha.”
Depois de passar para a Febem, antes mesmo de completar 20 anos, cumpriu pena por assalto a banco na Casa de Detenção. A pena era de 62 anos, mas, unificada, ficou em 16 anos e oito meses, todos eles cumpridos no Pavilhão 9. “Entrei no Carandiru em 1980. Fui pego no banco Safra, em que a segurança era feita por militar. Ninguém gostava de roubar o Safra porque tinha resistência. Eu falei: roubei um, vou roubar outro. Nessa me ferrei. Dois morreram, dois fugiram e eu fui baleado na perna. Fui preso em flagrante e desci para o Carandiru, para a casa de pedra.”
Diferentemente do que acontece hoje, quando presos sem condenação vão para os CDPs (Centro de Detenção Provisória), e os condenados, para as penitenciárias, na Casa de Detenção não havia separação de acordo com o julgamento. Os nove pavilhões consistiam na portaria (o Pavilhão 1), na triagem (o 2), a enfermaria (o 4), o seguro --presos jurados de morte e os estupradores-- e os homossexuais (o 5), a administração (o 6), o de trabalho (7), os reincidentes (o 8) e, por fim, os que cumpriam pena pela primeira vez (o 9).
“O 8 era o pavilhão mais tranquilo. No 9 estavam os cabeças de bagre. Se o cara passava no 9, quando chegava no 8 já sabia o que acontecia. No 9 tinha muita conversa fiada, e a bomba explodia”, explica Godoy.
O dia 2 de outubro de 1992, a princípio, não era para ser o mais sangrento que o hoje advogado viu. Ele lembra da rebelião de 1987, quando, pela primeira vez, detentos foram degolados em presídios do Estado. “Nunca havia sentido cheiro de carne humana. Presos foram queimados vivos. O cara que começou tudo, o Açougueiro, foi o primeiro a degolar uma pessoa na cadeia.”
Godoy participava de tudo. Era considerado uma liderança e chegava junto em tudo o que acontecia na cadeia. Sempre sabia o que ia acontecer.
Naquela sexta do massacre, ele presenciou o início da briga. “Era por causa de droga, de cocaína. O grosso da droga vinha por fora. No caminhão do lixo, da lavagem. O número de fornecedores que entrava lá era grande. Não tinha revista de funcionário, que trazia dois, três quilos de maconha. A questão foi que alguém não pagou e outro foi cobrar, não gostou e enfiou a faca.”
Na Detenção, antes do PCC, havia um conflito por região da cidade de São Paulo – zonas leste, norte, oeste, sul. Se alvo era alguém da leste, por exemplo, quem era da região tinha que saber por quê. “E mataram [naquele dia] povo da sul e da leste. No dia, tinha dez cadáveres. Aí o diretor se apavorou.”
Quando o Choque entrou, para os presos não havia de nada de anormal. “O Choque costumava entrar para treinar. Nós também: fazíamos coquetel molotov, barricadas, atirávamos merda. Era uma resistência. Mas ninguém esperava o que aconteceu.”