No caso da Luz na Infância 2, coordenada pelo Ministério de Segurança Pública, houve uma concentração nacional de esforços nas investigações e no cumprimento dos mandados. Cada estado, porém, ficou responsável pelas detenções, pelos processos e julgamentos de seus suspeitos, considerando aí as particularidades de cada região. Há dados referentes ao número de detidos, cidades onde moram, idades e profissões mais recorrentes, mas não existem informações consolidadas sobre o encaminhamento desses casos.
Essas “ilhas de informação” são comuns no Brasil quando se trata das investigações e acompanhamento de processos. Ainda mais porque, em se tratando de abuso infantil, o segredo de justiça protege a identidade dos menores. Além disso, o tipo de crime determina quais instituições lidarão com ele. Grosso modo, sem considerar as especificidades de cada caso, a Polícia Federal fica responsável por aqueles envolvendo transnacionalidade e compartilhamento de imagens, enquanto a posse de arquivos e o abuso sexual fica com a Polícia Civil. A partir daí, o encaminhamento pode ser feito na justiça federal ou estadual.
Segundo recomendação da CPI, aquele banco de dados nacional ficaria a cargo da Senasp (Secretaria Nacional de Segurança Pública), ligada a esse mesmo ministério. Já o levantamento estatístico dos processos judiciais seria responsabilidade da CNJ (Comissão Nacional da Justiça). Procurados, os dois órgãos não justificaram o não cumprimento dessas propostas.
“Não existe um canal único, um repositório onde essas informações possam ser cadastradas e buscadas. Isso atrapalha no estabelecimento de políticas públicas, de estratégias de investigação e de prioridades”, afirma Flúvio Cardinelle, delegado da Polícia Federal do Paraná, que também atua como professor de direito processual penal da PUC-PR e já respondeu pelo núcleo de repressão aos crimes cibernéticos da PF naquele mesmo estado. “Eventualmente podemos dar início a uma investigação que está avançada em outro lugar ou vice-versa. Alguém está engatinhando, enquanto o outro já pediu o mandado de busca e apreensão.”
Cardinelle dá o exemplo de um único site que recebeu mais de 70 mil denúncias ligadas ao abuso sexual infantil. “Ficamos sabendo de tantas notificações por acaso, ao contatarmos um órgão central em Brasília.” Ele explica que pode ser recorrente o fato de diferentes órgãos investigarem denúncias equivalentes. “Na PF temos bases que concentram informações. No entanto, elas não conversam com a polícia civil, com a militar, com a guarda municipal. Uma integração nesse sentido certamente aumentaria a efetividade das investigações.”
Profissionais ouvidos pela reportagem também disseram se comunicar com colegas, sejam de suas ou de outras instituições, muitas vezes usando grupos de WhatsApp.
O compartilhamento de informações funciona como um grande quebra-cabeça. Talvez alguém já tenha avançado para além daquele ponto ou feito outro caminho. Ao juntar esses dados, chegamos eventualmente à responsabilização pelos crimes
Flúvio Cardinelle, delegado da Polícia Federal do Paraná
As opiniões do delegado são equivalentes ao que diz Ivana David, desembargadora da 4ª câmara criminal do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), no âmbito judicial. Em sua experiência de 28 anos como juíza, ela afirma que a quantidade de crimes sexuais contra crianças julgados atualmente é muito maior do que em um passado recente. Porém, diz que sem estatísticas não há como fazer uma avaliação objetiva nem pensar estratégias em relação à maneira como essa conduta vem sendo combatida no país.
“O Brasil não tem a cultura dos dados, e é claro que isso representa um problema. Deveria haver uma base para esse e outros tipos de crime, na qual as autoridades e polícias de todo o país tivessem uma senha. Quando alguém acessa é criado um registro e, se a informação vazar, foi ele que contou. Isso não é lógico? O que estamos pedindo não é um absurdo”, afirmou a desembargadora. “Por que nos Estados Unidos isso funciona? Porque lá o governo entende que é algo importante. Aqui parece que não.”
O TJ-SP registra que, somente na capital, há 1.256 inquéritos policiais para apurar a prática de estupro de vulnerável e 527 processos denunciados na Justiça pelo mesmo delito. Deste total, não há informação de quantos estão presos.
A solução para consolidar os dados, criando um raio-X nacional da situação, passaria por algo na linha do Susp (Sistema Único da Segurança Pública), aprovado pelo Congresso também em maio, que prevê integrar a atuação dos órgãos de segurança pública de todas as 27 unidades federativas, além de unificar dados e inteligência do setor. A implementação tem um calendário longo, como foi com o SUS (Sistema Único de Saúde), sem previsão de quando começará a funcionar em sua totalidade.
O Ministério da Segurança Pública afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que "com a integração dos sistemas eletrônicos de boletins de ocorrência por meio do Sinesp [Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais e sobre Drogas Sinesp], qualquer tipo de crime poderá ser mapeado, inclusive os de violência sexual contra crianças e adolescentes". Aprovado em 2012 pelo Congresso, o Sinesp deve conectar-se ao Susp, mas também sem previsão.