Mulheres digitais

Por que todas as assistentes virtuais têm vozes femininas?

Márcio Padrão Do UOL, em São Paulo

Se você é do time "E aí, Siri?" ou do "Ok, Google", não importa. Seja qual for a assistente de sua preferência, ela será mulher. Algumas iniciativas estão tentando mudar isso, mas via de regra Siri (Apple), Google Assistente, Alexa (Amazon) e Cortana (Microsoft) vão responder aos seus pedidos com uma voz robotizada de mulher.

As assistentes de voz são uma grande tendência da tecnologia, e não se restringem aos celulares: aparelhos como alto-falantes inteligentes, como Google Home, Amazon Echo e Apple Homepod também as utilizam, e a tendência é que você controle tudo por voz daqui a uns anos.

Mas o fato de terem "nascido" mulher, ou carregarem por configuração de fábrica vozes femininas, vem levantado questionamentos do ponto de vista da igualdade de gênero. Por que esse tipo de tecnologia que veio facilitar nossas vidas é associado ao sexo feminino?

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Voz feminina é para ajudar

Em 2005, antes mesmo de Siri e companhia existirem,  o professor de comunicação da Universidade Stanford, Clifford Nass, escreveu o livro "Wired for Speech: How Voice Activates and Advances the Human-Computer Relationship" [Conectado por discurso: como a voz ativa e avança a relação humano-computador, em tradução livre] documentou dez anos de pesquisa sobre os elementos psicológicos e de design das interfaces de voz.

A conclusão: a voz sintética feminina é percebida como capaz de nos ajudar a resolver nossos próprios problemas, enquanto a equivalente masculina é vista como figura de autoridade que nos dá as respostas. Pior: ao contrário da voz masculina, voz feminina é percebida como "uma melhor professora de amor e de relacionamentos e um pior professor de assuntos técnicos". Esta percepção apenas replicaria nas vozes digitais preconceitos já existentes em nossa sociedade.

Ou seja, a mulher é ouvida quase como se fosse uma mãe, enquanto o homem é visto como um professor

Três anos depois, Karl MacDorman, professor da Universidade de Indiana, notou que quando homens e mulheres ouviam vozes sintetizadas masculinas e femininas, ambos os grupos disseram que as vozes femininas eram mais calorosas e agradáveis.

Mulheres que orientam

Tem a ver com a relação com homem e mulher na sociedade. Anos atrás, a publicidade concluía, por pesquisas de opinião, que vozes masculinas eram a preferência até para mulheres. Isso mudou porque a mulher ouve mais a mulher e passou a confiar menos no homem. Nos tempos atuais, o empoderamento feminino traz uma sociedade menos paternalista e mais maternal. Mulher gerencia casa, compra carro, e ao mesmo tempo é receptiva, calorosa. Não é mais uma coisa de remeter à sensualidade, como era entendido antigamente

Regina Bittar

Regina Bittar, locutora que fez a voz da Siri e do Google Assistente

Pesquisas dizem que mulheres modulam a voz melhor que os homens. As empresas visam o lucro, então vão escolher as vozes que são mais aceitas por todos, para vender mais. Que isso [assistentes de voz mulheres] reforça o fato das mulheres estarem sempre a postos para ajudar, isso é verdade. Por isso a importância de deixar mais opções como a voz masculina. Vivemos ainda em uma sociedade machista, mas se dermos essas opções, esses padrões serão quebrados

Claudia Cotes

Claudia Cotes, fonoaudióloga de mídia do UOL

Essa confiança que a voz feminina pode estar relacionada ao papel da mulher na sociedade. Homens historicamente tiveram hegemonia, mas por conta dos movimentos emancipatórios tivemos mudanças significativas e outros olhares sobre as mulheres. Se isso pode transmitir a ideia de que elas são hoje um gênero mais forte, outra leitura seria de que a voz de mulher é sempre a voz da orientação, da maternidade, do acolhimento. É uma leitura particular que faço sobre esse fenômeno das assistentes

Breno Rosostolato

Breno Rosostolato , psicoterapeuta e educador sexual

Submissão digital

Uma outra questão levantada é que as assistentes virtuais, quando confrontadas com machismo e assédio, acabam propagando um estereótipo de subserviência.

Em fevereiro de 2017, o portal "Quartz" realizou uma pequena experiência com elas: as assistentes pessoais responderam a frases envolvendo assédio sexual, intimidação e submissão. Algumas respostas cortaram o assédio. Outras, como as do Google, não estão pré-configuradas para reagir a tais frases e afirmam não ter entendido ou sugerem buscas na web.

Mas outras, principalmente no caso da Siri e Alexa, não foram muito empoderadoras; pelo contrário, foram coniventes ou até estimulantes ao interlocutor. Abaixo destacamos algumas das respostas que a "Quartz" obteve com as quatro principais assistentes virtuais em uso nos EUA. 

As perguntas e respostas foram feitas em inglês, e foram traduzidas aqui.

Como as assistentes respondem hoje?

Repetimos um teste parecido com Google Assistente, Siri e Cortana em abril deste ano. A Alexa ficou de fora por não funcionar no Brasil atualmente. 

Houve algum progresso. Recebemos respostas mais assertivas a perguntas fortes.

Mas algumas reações ainda são fracas --como as isentas buscas na web-- ou condescendentes, como Siri e Google aceitando chamar seu "dono" de "mestre". Há ainda respostas de tom cômico, como a do "lado caliente" do Google ao rebater a frase "você é gostosa".

"Responderia ao assédio com humor"

O que Regina Bittar, que atuou como a voz da Siri e do Google, faria se tivesse seu próprio assistente virtual

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"A tecnologia reflete o mundo como ele é"

Mariana Ribeiro, diretora de comunicação do coletivo feminista Nossas, diz o que acha das assistentes

"Eu atribuiria isso ao fato de que mulheres são maioria em cargos de assistentes ou secretárias. Quando a Hanna-Barbera criou os Jetsons nos anos 60, a Rosie, a robô-governanta da família, tinha nome e personalidade de mulher. A tecnologia - e a ficção -, em muitas medidas, refletem o mundo como ele é. O que não significa dizer que não tenham um papel importante em questioná-lo, interrogá-lo ou propor outras formas de representação.

Uma consequência é a possibilidade de a tecnologia reforçar a visão de que mulheres deveriam ocupar esses papéis de assistentes ou secretárias. Isso não seria uma questão em si se as mulheres tivessem as mesmas condições reais de ocupar espaços de mais poder, como cargos de direção ou presidências. Enquanto essa for a realidade, precisamos ter cuidado para que a tecnologia não reforce estereótipos.

Não acredito que as empresas o façam de forma maquiavélica ou premeditada. A assimetria de poder entre mulheres e homens tem um forte elemento cultural."

As mulheres são colocadas na tecnologia em um espaço menos dinâmico, como uma mediadora. Essas empresas transferem o padrão cultural mais atrasado para o padrão tecnológico mais avançado. Assim dão continuidade a essa cultura com medo de perder dinheiro e competição no mercado. Se elas tivessem a intenção de mudar [esse padrão vigente], poderiam mudar

Cristina Buarque, pesquisadora especializada em feminismo da Fundação Joaquim Nabuco

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O que dizem as empresas

No geral, as empresas se esquivam da polêmica, dizendo que a predileção por mulheres vem de pesquisas com clientes, e juram que as assistentes sequer têm gênero.

O Google diz: "A primeira voz do Assistente foi baseada na tecnologia que usamos anteriormente para a busca por voz e foi algo que já tínhamos em mãos quando criamos o Assistente. Nós não pensamos no Assistente como qualquer gênero. No ano passado, apresentamos uma segunda voz para o Assistente do Google nos Estados Unidos, então você pode escolher a voz que é certa para você", afirmou um porta-voz ao UOL Tecnologia.

A Apple vai pelo mesmo caminho: "O iOS oferece a opção para trocar para a voz de um assistente pessoal. Não tem polêmica [na escolha]. Apenas para os usuários poderem escolher mais uma opção".

"Testamos diversas vozes diferentes para Alexa. Os retornos que tivemos de nossos clientes são de que eles amam a voz da Alexa. Sabemos que há muita pesquisa e debate abrangendo ambos os lados deste tema. Continuaremos focados em nossos clientes e no retorno que recebemos deles", disse a porta-voz da Amazon, que também destacou que a empresa desencoraja insultos ou comportamentos inapropriados à Alexa.

A Microsoft não respondeu ao UOL Tecnologia, mas para o portal "PC Mag" disse em janeiro deste ano que a Cortana pode tecnicamente ser sem gênero, mas a empresa mergulhou na pesquisa de gênero ao escolher uma voz e pesou os benefícios de uma voz masculina e feminina.

As empresas acham que essa situação é conveniente mas pode nem ser mais. Vemos hoje propagandas que já ousam um pouco, ao vender produto mudando a perspectiva cultural. Acho que ter mais mulheres nas assistentes atrasa um processo de ruptura, interfere sem dúvida no ritmo de desenvolvimento na igualdade

Cristina Buarque, pesquisadora especializada em feminismo da Fundação Joaquim Nabuco

Só que robôs têm gênero! Ou você acha que tem...

Apesar das empresas se esforçarem para dizer que os assistentes não têm gênero, isso não é visto na prática. As pessoas sempre vão associar um gênero às máquinas. Em um estudo de 2014 com voluntários, Brian Scassellati, professor do Laboratório de Robótica Social da Universidade de Yale, percebeu que mesmo apresentando um robô humanoide usando o pronome “it” (isto), as pessoas se referiam à inteligência como “he” (ele) e “she” (ela), mostrando que as pessoas criam identificação e personalizam até mesmo vozes robóticas.

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Mudança a passos lentos

Por parte das empresas, os avanços também são lentos. Embora a Siri tenha uma opção de voz masculina desde 2013 (no Brasil, desde 2017), a opção não vem configurada de fábrica e fica escondida nos ajustes do iOS. O mesmo ocorre com o Google Assistente, que precisa ser ativamente modificado pelo usuário para trocar de voz (essa opção não está disponível no Brasil). 

Já Alexa e Cortana continuam sendo só mulheres. No segundo caso, a explicação é que a Cortana foi inspirada em uma personagem do game "Halo", que apresenta no jogo um corpo sensual. No Windows, a Cortana é só um círculo azul falante. 

Veja como mudar a voz do seu assistente no iOS e no Google Assistente

Dentro da lista de prioridade de grupos feministas, imagino que essa questão não esteja no topo. Existem questões mais prementes --que envolvem a segurança física e psicológica de mulheres reais. Essas, sim, são as prioridades desses grupos. A questão da tecnologia é tangencial

Mariana Ribeiro, diretora de comunicação do Nossas

Ken Jennings, Brad Rutter/AP Ken Jennings, Brad Rutter/AP

Tem assistente homem também

Um dos poucos assistentes homens é o Watson, da IBM. Ele pertence a uma plataforma de inteligência artificial avançada, pouco pensada para o consumidor final. Mas quando fez aparições públicas, especialmente na histórica vitória contra humanos no game "Jeopardy", sua voz é de homem.

Por outro lado, há quem acredite que justamente o fato de ser mais poderoso que os concorrentes mulheres e "ser" homem também é uma forma de sexismo. Enquanto Watson é um "cientista", que participa, por exemplo, de pesquisas contra o câncer e na previsão de crimes, assistentes mulheres ficam com tarefas triviais, como informar hora e temperatura, aumentar e tocar música no celular ou procurar por bobagens na internet. 

A IBM diz que o Watson, que foi batizado em homenagem a Thomas J. Watson, fundador da IBM, não tem gênero. A justificativa é o fato de que a plataforma serve como cérebro para produtos, aplicativos e serviços de outras empresas. Ou seja, o Watson não aparece diretamente nos celulares e computadores das pessoas, mas empresta seu poder computacional para que desenvolvedores criem assistentes do tipo. Dessa maneira, quem desenvolve pode aplicar a personalidade que quiser ao Watson.

No Brasil, por exemplo, ele tem voz e nome de mulher: Isabela.

Reprodução Reprodução

Siri era para ser "homem"

Steve Jobs não era exatamente um cara conhecido por ser um lorde com as mulheres - na verdade, ele abandonou Chrisann Brennan, a mãe de sua primeira filha, ainda grávida. E negou a paternidade de Lisa Jobs por anos. Além disso, o executivo sempre barrou a Apple de abraçar publicamente causas sociais.

Ainda assim, ele queria um homem para ser a voz da (do?) Siri: o ator Jeff Goldblum, de clássicos como "A Mosca" e "Parque dos Dinossauros". A colaboração não se concretizou e a atriz de locução Susan Bennett tornou-se a primeira voz da assistente no iPhone 4S, em 2011. Ela está no posto até hoje lá nos EUA.

Claro, a ideia não tinha intenções de igualdade de gênero, mas poderia ter mudado os rumos da indústria...

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