Humilhação no transporte

Denúncias de assédio sexual em ônibus, trens e no metrô de São Paulo crescem 650% em cinco anos

Luís Adorno Do UOL, em São Paulo

O número de denúncias de assédio sexual no transporte público vem crescendo anualmente no Estado de São Paulo. Em 2017, já foram 514 casos – um aumento de 650% em comparação aos registros de 2012. Eles ocorrem em ônibus municipais, intermunicipais e rodoviários, trens e no metrô. As abordagens vão desde toques sem consentimento a ejaculações e até penetrações.

Especialistas entrevistados pelo UOL afirmaram que os números refletem principalmente um aumento no número de notificações. Ele estaria acontecendo devido a uma maior conscientização da população sobre o problema do assédio sexual -- tendência que pode ser atribuída, em parte, a campanhas publicitárias e à abordagem do assunto na mídia. 

Segundo dados da SSP (Secretaria da Segurança Pública), obtidos com exclusividade pelo UOL através da Lei de Acesso à Informação, em todo o ano de 2012 foram registrados no Estado 68 assédios sexuais e atos libidinosos no transporte público -- uma média de um caso a cada 5 dias. Já entre janeiro e outubro de 2017, a média de assédios foi de quase dois casos por dia.

O governo de São Paulo afirma que os policiais têm treinamento para lidar com esse tipo de caso, e ressalta que o Estado conta com uma rede - em expansão - de 133 delegacias especializadas em crimes contra a mulher (36% do total de delegacias desse tipo no país).

Onde e quando ocorrem os assédios?

  • 1.035 casos em ônibus municipais

  • 765 casos no metrô e trens da CPTM

  • 371 casos em ônibus de viagem

  • 532 casos entre 7h e 10

  • 437 casos entre 17h e 20h

  • 1.300 casos na capital

Felipe Druda/UOL Felipe Druda/UOL

O drama e o trauma

A estudante universitária Nathalia Araujo Reis Santana, 20, foi uma das 2.171 vítimas de assédio sexual no transporte público atacadas entre os anos de 2012 e 2017 em São Paulo. Ela mora na na zona leste da capital paulista e utiliza o metrô diariamente para estudar pedagogia em uma faculdade na Vila Prudente, zona leste, e trabalhar como atendente na região dos Jardins, zona sul.

Em julho deste ano, Nathalia voltava para casa por volta das 19h30, usando a linha 3-Vermelha do Metrô, quando um homem a tocou com a mão. Ele aproveitou a superlotação do trem e, na sequência, ejaculou nas costas dela.

A jovem percebeu na hora o que havia acontecido, mas ficou sem reação. Chegou a ver o rosto do homem, mas, assim que o metrô parou, ele deixou o vagão rapidamente.

Nathalia procurou os seguranças do Metrô, que a acolheram e a levaram até um banheiro para que se limpasse. Eles a orientaram a registrar o caso.

No dia seguinte, ela foi à Delegacia de Polícia do Metropolitano, que fica dentro da estação Barra Funda, na zona oeste. Até hoje, o homem que ejaculou em Nathalia não foi localizado pelas autoridades, segundo investigações da Polícia Civil.

Mas ela o reencontrou por acaso, na mesma linha 3-Vermelha, em setembro deste ano. "Eu o vi e reconheci. Ele percebeu que eu reconheci e saiu do vagão. Fiquei paralisada de novo, sem saber o que fazer. O próprio delegado que me atendeu disse que seria mais fácil eu encontrar do que a polícia, pelo grande número de pessoas que passam pelo metrô todos os dias", conta Nathalia, que desde então, só entra no metrô acompanhada de algum conhecido e jamais em vagões cheios.

"Essas pessoas devem ser tratadas"

Eu fiquei dois meses sem entrar no metrô. Para ir à delegacia, que fica dentro do metrô, eu não fui de metrô. Fiquei com medo. Hoje, eu não entro no vagão se ele está cheio. E prefiro sempre estar acompanhada de alguém para entrar"

Nathalia Araujo Reis Santana

Aloisio Mauricio /Fotoarena/Folhapress Aloisio Mauricio /Fotoarena/Folhapress

Investigação dos crimes

Para o professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) Rafael Alcadipani, que estuda a Polícia Civil de São Paulo, "as polícias não conseguem investigar esta alta quantidade de crimes, pois falta estrutura e pessoal para tanto. Assim, a chance de um assediador sair impune é muito grande".

"No que diz respeito à Polícia Civil, ela enfrenta um grave problema de baixo número de funcionários, falta de condições de trabalho e falta de reposição inflacionária e de aumento em seus salários. O problema na polícia científica, que realiza as perícias e produz provas, é tão grave ou até mesmo pior. Diante disso, é urgente investir em polícia de investigação e também combater o machismo para que esta situação mude", afirmou Alcadipani.

Já segundo a delegada Jacqueline Valadares, titular da 2ª Delegacia da Mulher de São Paulo, a Polícia Civil "tem funcionários preparados, com a consciência de que a mulher precisa ser bem acolhida. Quando ele (policial) faz a academia de polícia, passa por aulas sobre violência doméstica e sobre direitos humanos. E, ao longo da carreira, ele tem cursos de aperfeiçoamento para que a vítima seja bem acolhida em qualquer unidade (da polícia)".

"A vítima vai procurar a unidade policial e narrar o fato. É importante que ela tenha consciência de que é a vítima (e não a culpada) e não precisa ter vergonha. Vamos fazer o registro da ocorrência e dar as orientações a ela. Se for algum crime que deixa vestígio, a gente vai encaminhá-la para fazer exame de corpo de delito. Isso já vai ser adotado no plantão", afirmou.

"De fato, as vítimas se sentem um pouco desamparadas em decorrência da legislação", disse a delegada. Segundo Jacqueline, muitos casos acabam sendo classificados não como crime, mas como contravenção penal. "Isso em si já gera uma sensação de impunidade para a vítima. O fato de ser alguém desconhecido, de fato gera mais investigação", afirmou a delegada.

Segundo o governador do Estado, Geraldo Alckmin (PSDB), São Paulo tem 133 delegacias da defesa da mulher e uma, na Sé, que funciona 24 horas por dia. Segundo ele, as delegacias de defesa da mulher da capital paulista representam 36% desse tipo de delegacias em todo o Brasil. "Vamos reforçar ainda mais", disse.

Risco permanente

A socióloga Esther Solano, professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), aponta que, para a mulher, todo lugar e todo horário oferecem risco de assédio sexual.

"Sem transporte, não existe cidade, trabalho. A mulher precisa ocupar esse espaço urbano para sobreviver, mas, para isso, tem de encarar um espaço de perigo", afirmou a socióloga. "Até lugares menores, com malha de transporte pequena, também tem casos. Ou seja, vai ter em todo lugar. E em todos os horários. É uma questão cultural e social".

Esther também afirma que, quando o homem sai para trabalhar, na rua, tem uma tranquilidade que a mulher não tem.

O simples fato de a mulher sair de casa e tomar o transporte público já causa um medo. É um risco permanente, por 24 horas por dia. Estamos em planos diferentes. Atos pequenos para os homens não são os mesmos para as mulheres

Para ela, as campanhas publicitárias estão ligadas ao aumento do número de comunicação de casos de assédio nos últimos anos.

"Era um tema muito invisível, mas nos últimos dois anos há muitas campanhas para visibilizar o assédio e apontar que é, sim, uma violência. São campanhas pedagógicas. Uma vez que você mostra que o assédio é violência, serve para que a mulher se empodere e para que a sociedade no seu conjunto se sensibilize", afirmou.

Fabio Braga/Folhapress Fabio Braga/Folhapress

As campanhas contra o assédio nos transportes públicos do Estado

Está em vigor uma campanha encabeçada pelo TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) e governos estadual e municipal contra o assédio nos transportes públicos. Cartazes espalhados pelos coletivos tentam educar sobre a gravidade do assédio e encorajam as vítimas a pedirem ajuda e registrarem casos de abuso.

A campanha chama-se "Juntos podemos parar o abuso sexual nos transportes". Segundo nota oficial do Metrô, "a campanha visa promover uma mudança cultural que estimule vítimas de abuso sexual nos transportes e/ou pessoas que presenciam algum episódio de violência a denunciarem os agressores, e consequentemente, inibir a prática desse tipo de crime".

Autoridades paulistas também afirmam ter realizado seminários de sensibilização direcionados aos funcionários das empresas de transporte. O objetivo foi prepará-los para o atendimento às vítimas.

Estão ocorrendo mais crimes ou as mulheres estão sendo encorajadas a denunciar?

Para Fabíola Sucasas, promotora de Justiça de São Paulo, os números têm aumentado pelas campanhas feitas nos transportes públicos. "As campanhas são importantes para que as mulheres tenham coragem de denunciar e conscientizam as pessoas para as mulheres que sofrem violência", disse.

"Acredito que (o aumento de registros) tenha relação com as campanhas, porque elas olham para a vítima e para os passageiros e testemunhas, que são pessoas que ou não querem se envolver, por terem seus compromissos, ou se revoltam e querem fazer Justiça com as próprias mãos", afirmou.

"O autor da violência é aquele que não se intimida, que acha que vai ter penas brandas caso seja pego. O assédio faz parte do desenvolvimento do homem, da masculinidade. Por isso, não adianta trabalhar só com a vítima. Também é preciso olhar para os passageiros e testemunhas", afirmou a promotora.

A juíza criminal Ivana David, que atua na 4ª Câmara do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), disse concordar com a promotora. "Eu sou juíza há 27 anos e sempre julguei crimes sexuais. Isso sempre aconteceu. Hoje, no entanto, as mulheres procuram mais as autoridades para narrar essas circunstâncias. O número aumentou não só porque aumentou o número de crimes. Mas porque as mulheres, mais independentes, que mudaram muito durante os últimos 10 anos, trazem mais essas informações à Justiça", afirmou.

"Problema de legislação"

Segundo a juíza Ivana David, em 90% dos estupros praticados contra a mulher, sejam tentados ou consumados, o criminoso recebe uma pena alta e sempre em regime fechado. No entanto, o ato de molestar uma mulher dentro do transporte nem sempre configura estupro.

Hoje em dia, a legislação diz que não é necessário que um agressor tenha conjunção carnal com a vítima para que o crime de estupro seja configurado. Se a pessoa for forçada a tomar parte em um ato libidinoso, isso já pode ser entendido como estupro.

Mas, dependendo das circunstâncias, muitos casos que acontecem no transporte público -- como toques sem consentimento ou ejaculação -- são tratados como contravenções penais, que têm punições muito menores.

E aí é um problema de legislação. Ou se amplia a lei ou aumenta a pena. A lei de Contravenções Penais é uma lei antiga e superada. A importunação ao pudor e ao sossego são antigas, de outros tempos. O que mais me incomoda é essa pena, uma tipificação fora do nosso tempo. O homem mudou, nossa sociedade mudou, os valores mudaram e a tipificação é de outros tempos

Segundo a juíza, a sensação de impunidade que a vítima sente parte daí. Além disso, segundo ela, o próprio criminoso sabe que, se for pego praticando assédio, não vai ter uma pena de muitos anos na cadeia.

Outro fator é a dificuldade de se obter provas, segundo a magistrada. "A prova para o processo é difícil. A ejaculação não é crime de estupro. O tipo penal não é estupro. Ou a gente trabalha para mudar a lei ou fica como contravenção penal".

Segundo ela, também é difícil conseguir depoimentos de testemunhas, pois elas não se sentem seguras para falar com as autoridades. "Às vezes, a própria vítima desiste. E a prova fica muito frágil. A gente tem uma legislação que é muito tacanha. Na própria Lei Maria da Penha, as penas são muito pequenas", afirmou a juíza.

Fábio Vieira/FotoRua/Folhapress Fábio Vieira/FotoRua/Folhapress

Assédio nos transportes: um retrato de todo o Brasil

Segundo pesquisa do FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), 5,2 milhões de mulheres foram assediadas em transportes públicos do país no ano de 2016. De acordo com Samira Bueno, diretora-executiva do FBSP, "isso passa por uma questão cultural. Homens no Brasil acham que têm o direito de tocar as mulheres no espaço público", disse.

"De um lado, eu diria que esse é um problema do sistema de justiça criminal de punição desses assediadores -- que não é com prisão que será resolvido, diga-se de passagem. Eles têm que ter tratamento, acompanhamento psicológico", afirmou. "Deve haver algum tipo de 'pena' que faça com que o cara pense no que fez e mude sua conduta", complementou.

"O outro lado é cultural mesmo. Tem que ter campanha, (o assédio) tem que ser discutido nas escolas, tem que ter formação para os motoristas e cobradores saberem como agir numa situação dessas", disse.

Para Samira, a polícia "ainda têm uma grande dificuldade de incorporar e aprimorar o atendimento com perspectiva de gênero. No caso da Polícia Civil, embora a criação das delegacias da mulher nos anos 80 tenha se tornado um caso de sucesso, a coisa parou por aí. Óbvio que temos muitas delegadas engajadas nessa agenda, mas isso tem mais a ver com uma dedicação pessoal do que com uma agenda institucional", afirmou.

"Para nossa surpresa, tem muita coisa sendo implementada no Brasil e esse tem sido um tema que está sendo apropriado pelas polícias. Importante destacar que as polícias são um dos principais gargalos no atendimento às mulheres em situação de violência. O Disque 180 tem um levantamento da ouvidoria que diz que 9 em cada 10 reclamações que chegam até eles diz respeito ao atendimento prestado pelas instituições policiais. Então, as polícias ainda precisam se capacitar para isso".

Como denunciar um abuso nos transportes públicos de São Paulo

  • Ônibus municipais

    A SPTrans recomenda que o motorista oriente a vítima a registrar o boletim de ocorrência. Caso o motorista encontre um policial, ele deve parar o ônibus e comunicar o fato imediatamente.

  • Autor do assédio: motorista ou cobrador

    Além do boletim de ocorrência, a vítima deve registrar a agressão nos canais de comunicação da SPTrans, pelo telefone 156 ou pelo site da prefeitura, para que medidas possam ser adotadas

  • Metrô

    Além de procurar um funcionário, o usuário pode recorrer ao aplicativo de celular "Metrô Conecta" ou ao serviço SMS-Denúncia, pelo número (011) 9-7333-2252. A mensagem é recebida no Centro de Controle de Segurança, que envia os agentes mais próximos para o local onde ocorreu o abuso

  • CPTM

    Ao sofrer ou presenciar um abuso sexual nos trens ou estações, a pessoa deve informar o fato imediatamente a um funcionário e apontar o autor --para que ele seja levado à delegacia de polícia mais próxima. Assim como no Metrô, nos trens também há o serviço do SMS-Denúncia, mas com um número diferente: (011) 97150-4949

  • EMTU (Empresas Metropolitanas de Transportes Urbanos)

    Os funcionários foram treinados e estão orientados a denunciar o criminoso pelo telefone 190 da PM e acompanhar a vítima caso ela se sinta confortável

Curtiu? Compartilhe.

Topo