"A casa está afundando"

Habitantes de palafitas se equilibram em meio a água suja em Santos

Luciana Quierati Do UOL, em Santos (SP)
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Jurema dos Santos Alves cria oito netos em 14 metros quadrados. Até o mês passado, a casa era um pouquinho maior, mas um temporal tanto balançou o barraco que o quarto das crianças não aguentou e despencou no rio.

Agora, elas dormem metade no quarto da avó, metade na sala-cozinha, que são os dois cômodos que restam. É assim toda noite. Ou quase.

"Se der muito vento, tenho que pegar todos eles e sair de casa, como já fiz várias vezes, inclusive na madrugada", diz.

Do lado de fora, no entanto, os riscos também não são poucos. Enquanto brincava, dias atrás, na passarela em frente de casa, o neto de três anos de Jurema caiu na maré e levou 20 pontos na perna.

Da cama, ele não tem se atrevido a sair, amuado que só. O menino com fama de serelepe parece ter ficado com medo de chegar perto da porta e acontecer tudo de novo.

Acidentes assim fazem parte da rotina do lugar onde eles moram, uma das sete favelas de palafitas de Santos, no litoral paulista.

O município tem o sexto melhor IDH-M (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) do Brasil --medida composta por três indicadores: longevidade, educação e renda. Possui o principal porto da América Latina e o maior jardim de orla do mundo.

E ao mesmo tempo, registra um triste número habitacional: é a terceira cidade no país em número de moradias em favelas de palafitas, segundo o IBGE.

Em apenas duas dessas favelas, visitadas pela reportagem do UOL, vivem cerca de 7.000 famílias sem saneamento básico, em meio a ratos e água contaminada por lixo e esgoto, sobre áreas que um dia já foram produtivos manguezais.

Boa parte dessas pessoas está abaixo da linha da pobreza extrema. Jurema e cada um dos oito netos se viram com R$ 3,50 por dia.

Se der muito vento, tenho que pegar todos eles e sair de casa, como já fiz várias vezes, inclusive na madrugada.

Jurema dos Santos Alves, 60, que mora com oito netos na favela do Jardim São Manoel

A partir de um dos becos da rua João Carlos da Silva, depois de ziguezaguear por passarelas improvisadas com ripas de todo o tipo e quase nenhuma qualidade, se chega à casa de Jurema. Passa das 14h de sábado, e a porta está escancarada por causa do calor.

A mulher de 60 anos, completados no último dia 12 de maio, véspera do Dia das Mães, faz companhia ao neto que dias antes caíra na maré. Ambos assistem a um programa de auditório na TV, acomodados em um colchão de solteiro estendido no chão no canto da sala. 

Jurema pede para não se pôr reparo "na bagunça" e, de volta ao colchão, único lugar para se sentar, começa a contar sua história. Nascida numa tribo de Itacoatiara, no Amazonas, veio parar em Santos aos sete anos, junto dos pais adotivos.

Constituiu família, teve cinco filhos e, mais recentemente, depois que dois deles morreram, tornou-se tutora de oito dos 30 (ou perto disso) netos, que ela mantêm com pensão de um salário mínimo e uma venda ou outra de trufa de chocolate e lingerie.

Com um modesto empréstimo e a ajuda dos vizinhos, há três anos ergueu o próprio barraco de madeira, agora já bem capenga por falta de manutenção.

A casa está afundando, tem vigas embaixo que estão trincadas, caibros que já caíram. Sou sozinha, não tenho marido e com um salário não consigo arrumar.

Jurema dos Santos Alves 

Em condições semelhantes estão muitas das palafitas da comunidade, localizada no Jardim São Manoel, na região mais carente de Santos, a zona noroeste. Dali até a praia, que a maioria dos netos de Jurema não conhece, são 10 quilômetros de distância. 

O aglomerado de moradias integra um grande complexo de favelas de palafitas sobre mangues degradados que vem desde Cubatão, passa por Santos e São Vicente e chega ao Guarujá (quatro dos nove municípios da região metropolitana da Baixada Santista). 

Desse complexo também faz parte a que é considerada por pesquisadores (embora o IBGE não confirme) como a maior favela de palafitas do país, o Dique da Vila Gilda. Essa foi a outra comunidade visitada pelo UOL.

Arte/UOL

Um mar de lixo

O Dique da Vila Gilda fica numa das margens do estreito rio dos Bugres (na divisa com São Vicente), por onde a reportagem navegou numa manhã de quinta-feira.

É a partir do nível da água que se compreende a preocupação de dona Jurema e dos outros moradores locais com o estado das vigas que sustentam suas casas.

Sem nenhum tratamento para uso em área molhada e constantemente sujeito às oscilações da maré, o madeiramento apodrece muito rápido --ao contrário do que acontece em comunidades minimamente planejadas, como Afuá (PA), conhecida como a "Veneza da Ilha de Marajó".

Nas palafitas de Santos, a cada cinco ou seis meses parte das estacas tem de ser substituída, nem que seja por precaução. Mesmo cuidado que é dedicado a paredes e telhados, igualmente mal-arranjados.

Também é a bordo de um barco de pescador que se tem a dimensão dos riscos à saúde a que os moradores estão expostos. Minutos depois do início do percurso de 4 km, contornando toda a extensão da favela (que faz parte de três bairros vizinhos: Castelo, Rádio Clube e Bom Retiro), o rio começa a virar um mar de lixo e esgoto.

É tanto material flutuando e circundando as moradias que não foram poucas as vezes em que a hélice do motor enroscou, fazendo a embarcação parar. 

No trecho onde o curso do rio se afunila e as palafitas de Santos e São Vicente se acotovelam, prosseguir se torna quase impossível.

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Foi desviando a remo de colchões encharcados, bonecas sem cabeça e embalagens de fast food que a equipe conheceu Wellington de Freitas da Silva, 40. O pedreiro mora com a mulher, duas filhas adolescentes e um bebê de oito meses numa casa de palafita que ele mesmo construiu com todo o esmero que podia.

No chão tem piso laminado, e as paredes são de chapas de madeira naval, contrastando com a madeirite e forração de contêineres que predominam na favela. Nada disso, porém, o deixa imune aos efeitos da sujeira que o cerca, como o mau cheiro e a infestação de ratos.

"Aqui tem rato demais, não tem quem aguente", reclama Silva, enquanto segura rente à coleira um cão que late sem parar. "Tá vendo esse aqui? Não sei mais o que fazer."

Depois de estraçalhar uma ratazana, o bravo Barão começou a definhar. Tomou vitamina, vermicida e até ganhou ração nova e reforçada, conta o dono, mas nada de voltar à robustez de três meses antes. O bicho era só costelas aparentes.

Em condições sanitárias tão propícias a doenças, como a leptospirose, os sintomas de Barão acendiam o sinal de alerta da família.

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Como a maior parte das moradias dessas favelas está em situação irregular, construídas sobre mangues --que são áreas de preservação permanente--, os serviços básicos não chegam.

Não há rede de esgoto. Enquanto se toma banho, a água escorre pelas estacas, e dos vasos sanitários saem retalhos de canos de PVC tão curtos que nem sequer chegam a tocar o rio: os dejetos caem em cascata até se misturarem à maré. 

Água potável chega a um número limitado de moradias. Segundo a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), que atende o município, só 17% das casas do Dique da Vila Gilda, por exemplo, têm água encanada.

As demais são abastecidas de forma clandestina, com distribuição feita em mangueiras de jardim, conectadas umas às outras por metros e metros até alcançar as torneiras --numa gambiarra sujeita à contaminação a cada subida de maré.

Uma única ligação, explica o presidente da Sociedade de Melhoramentos do Jardim São Manoel, Edmílson de Almeida Duarte, o Didi, acaba atendendo de 20 a 30 famílias. Por esse motivo, a vazão é muito fraca e, não raro, os moradores se lavam de canequinha.

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Também são poucos os medidores de energia nas comunidades. Os "gatos" garantem que a luz chegue às casas e livram os moradores das contas, mas também os preocupam.

"Todo mundo tem medo de incêndio, porque, se pegar fogo na minha casa, vai todas as casas", diz a aposentada Nadir Mônica Leme (foto), 66, que mora no São Manoel. "Não tem nem condição de os bombeiros entrarem aqui."

Isso porque os becos são apertados e as casas, muito grudadas, até como forma de garantirem maior equilíbrio sobre as águas --razão pela qual muitas têm só uma porta e uma janela e, consequentemente, pouca ventilação. 

Quanto ao lixo, o caminhão da coleta passa diariamente esvaziando os contentores de mil litros espalhados pela rua principal da favela, que é asfaltada e a única com circulação de veículos.

Mas as palafitas ficam distantes às vezes 300 metros dessas vias, e seus moradores acabam preferindo atirar o lixo pela janela. Uns, por comodidade. Outros, para evitar atrito com vizinhos.

"É muita sacolinha para pouco contêiner, porque cada um deles serve a dezenas de moradias, e ninguém quer ter lixo transbordando em frente de casa", diz Didi. "Infelizmente, nem todo mundo tem consciência ambiental."

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Todo mundo tem medo de incêndio, porque, se pegar fogo na minha casa, vai todas as casas. Não tem nem condição de os bombeiros entrarem aqui.

Nadir Mônica Leme, 66, moradora da favela do Jardim São Manoel

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"Não dá para pagar aluguel"

Moradora do São Manoel há três anos, Isabel Cristina Nascimento, 42, é deficiente visual. Depois de cair algumas vezes nas pontes desgastadas e lodosas da favela, hoje só sai de casa na companhia da filha de 22 anos, com quem mora, ou de alguma colega da igreja que frequenta.

Diz que tudo no lugar só faz aumentar a vontade de arrumar outro canto. Mas como?

"Não é fácil morar aqui. A gente mora porque não tem outro jeito. O custo de vida [na cidade] é muito caro. Não dá para pagar aluguel", diz Isabel.

Santos tem o quarto valor de aluguel mais alto do Brasil, atrás apenas de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal, de acordo com o Índice FipeZap de Locação Residencial de abril, divulgado no último dia 16. O preço médio da locação na cidade é de R$ 29,22 o metro quadrado --em São Paulo, é de R$ 36,59.

Além disso, ainda segundo o levantamento, os proprietários de imóveis de Santos são os que mais ganham com aluguel: 6,7% de rendimento, contra 5% em São Paulo e 4,4% da média das 15 cidades pesquisadas.

Assim, o mangue (bem como encostas e morros) se torna a única opção para a população de baixa renda numa cidade onde quase já não há áreas para se construir, e as que existem são muito caras. Na verdade, é a opção mais barata, porque na favela de palafitas também se paga para morar.

Seus habitantes estão divididos entre: os que compraram um “terreno” --a área dentro do rio se torna terreno para os moradores-- e construíram seu barraco, como é o caso de Jurema; os que compraram uma casa pronta, como dona Nadir, que 13 anos atrás desembolsou R$ 5.000 na sua; e os que pagam aluguel.

"Muita gente comprou área para fazer barracos e alugar. Cobram R$ 250, R$ 300. Aproveitam para ganhar em cima do pobre", diz Didi, o presidente da Sociedade de Melhoramentos, que mantém uma página no Facebook, "Vida sobre vigas", para mostrar através de imagens a situação dos moradores das palafitas do São Manoel.

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"Nem endereço a gente tem"

Acho que todo mundo que mora aqui quer sair [das palafitas]. Acho que é o sonho de qualquer pessoa, ter um lugar decente pra morar e poder dizer assim: "Aqui é a minha casa".

Porque aqui nem endereço a gente tem. Chega uma carta, lá do beco mesmo a carta some. Para fazer uma consulta ou qualquer cadastro, a gente tem que pegar o endereço de outra pessoa.

Não temos nada aqui. Estamos abandonados, porque ninguém vem. Só vem no tempo de pedir voto. Quando ganha a eleição, todo mundo some. Essa é a verdade.

Infelizmente, no Brasil é assim. Só procura você quando precisa do voto. Vem e promete um monte de coisa. Quando ganha... meu Deus do céu! Nem se lembra da gente.

Falta uma pessoa que queira ser um prefeito, um presidente, um governador, um senador, gente que trabalhe com amor pelo povo, porque eles são pagos. Até de uma bala que a gente compra, a gente paga imposto. São pagos para cuidar de nós. Somos seres humanos e precisamos de ajuda.

Aqui não temos recurso nenhum, um curso gratuito, não temos nada. Nada! [Há] uma escola que, quando chove, enche de água, e os alunos têm que voltar para casa. [Há] ruas que alagam, e ninguém faz nada. Aqui as crianças caem na maré, se machucam, levam um monte de pontos.

[As autoridades] estão esperando o quê? Uma ponte desabar ou uma criança morrer afogada? Tem que acontecer uma tragédia, igual à que aconteceu em São Paulo, tem que um prédio desabar para se tomar alguma providência? Porque no Brasil é assim, só se toma providência se acontecer uma tragédia. Aí vai na televisão: "Mas nós fizemos isso e aquilo". Não fazem é nada. Não fazem nada por nós, não.

Isabel Cristina Nascimento, moradora da favela do Jardim São Manoel

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Desigualdade e isolamento

Além de viverem em áreas sem infraestrutura adequada, insalubres e de difícil acesso, os moradores das favelas de palafitas de Santos estão geograficamente isolados, no limite da ilha, do lado oposto à praia e ao porto que tanto atraem riqueza para a cidade. Estão escondidos, como eles dizem.

O bolsão de exclusão começou a ser formado na década de 1950, por gente como a mãe do pedreiro Silva, que veio de Pernambuco, e o pai, que nasceu na Bahia.

São brasileiros de outras regiões, especialmente do Nordeste, que foram atraídos por oportunidades de trabalho na expansão do porto e no polo petroquímico de Cubatão.

A valorização dos imóveis, porém, impulsionada pelo turismo e pela chegada das grandes construtoras e seus empreendimentos voltados à demanda de veraneio, acabou forçando esses trabalhadores de baixa renda a ocupar áreas sem valor imobiliário ou impróprias para habitação.

O Plano Diretor de Santos de 1968, conta a professora Maria Carolina Maziviero em artigo de 2015 para a Revista Brasileira de Gestão Urbana, “ignorava as áreas ocupadas por assentamentos precários, como morros e mangues, mas elevou o potencial construtivo na região da orla, servindo diretamente ao mercado imobiliário”.

No fim da década de 1980 e início da seguinte, de acordo com o artigo, a cidade passou a dar mais atenção à habitação de pessoas carentes, mas, já perto dos anos 2000, a agenda praticamente não avançou.

É o que também afirma a arquiteta e urbanista Mônica Antonia Viana, professora da Universidade Católica de Santos e coordenadora do Observatório Socioespacial da Baixada Santista. Ela foi técnica da Cohab Santista no começo dos anos 1990.

“Concluímos o primeiro trecho da Vila Telma [no extremo do Dique, para onde foram transferidas 111 famílias que viviam em palafitas], o novo prefeito construiu novos apartamentos, mas depois não teve continuidade”, diz a professora. “É evidente que falta vontade política.”

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Em novembro de 2009, a prefeitura teve aprovado empréstimo do Banco Mundial no valor de US$ 44 milhões (R$ 83 milhões no câmbio da época) para o Programa Santos Novos Tempos, que prevê melhorias para a zona noroeste como um todo e a construção de moradias para a população das palafitas do Dique.

Segundo o banco, 712 unidades habitacionais foram construídas (50% do total previsto), mas houve atrasos nas demais obras, como as de macrodrenagem para evitar enchentes, e “sérios problemas com a qualidade dos projetos”, segundo relatório a que o UOL teve acesso. Por essas razões, a instituição decidiu não renovar o financiamento, e o contrato foi encerrado em 2016.

Além disso, em 2015, o Ministério Público Federal instaurou inquérito para apurar possíveis irregularidades na aplicação dos US$ 24,5 milhões recebidos para a primeira fase. O procedimento, segundo o órgão, ainda está em curso.

“É um projeto extremamente importante para qualificar e desenvolver a região, levar emprego e renda, porque, para isso, é preciso ter infraestrutura na comunidade. Mas não sai do papel”, lamenta a professora Mônica Viana.

A prefeitura informa, no entanto, que o programa está em andamento com recursos próprios e obtidos junto a outras instâncias, como é o caso de R$ 81 milhões do projeto Avançar Cidades, do governo federal, que serão empregados em quatro estações elevatórias e cinco comportas na favela do Dique.

Ainda segundo a prefeitura, o atual programa habitacional do município prevê a construção de 3.619 moradias de interesse social (destinadas a famílias com renda de até três salários mínimos), das quais 731 estão em obras e 1.120 em fase de contratação.

Nenhuma delas, no entanto, contempla o Dique da Vila Gilda, que é a maior favela da cidade e a respeito da qual existe um inquérito civil em andamento no Ministério Público de São Paulo que pede providências com relação às precárias condições de vida no local. Segundo o MP, uma perícia na comunidade está para ser feita.

Para o São Manoel, também alvo de ação do MP, serão destinadas 205 unidades. O órgão estadual informa que já houve uma sentença e que o promotor responsável pelo caso aguardava, quando do fechamento desta matéria, resposta da prefeitura a um acordo de regularização da área até o fim de 2021, com a retirada das 1.451 habitações precárias e a inclusão das famílias em programas habitacionais.

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E quando o dinheiro não dá?

A realidade dos moradores das palafitas de Santos mostra que a questão habitacional é premente, mas de longe a única. Muitos, ao se verem perto de realizar o sonho da casa própria, são tomados por um misto de felicidade e preocupação.

A balconista Tatiane Rodrigues de Oliveira, 24, mora na favela do São Manoel com o marido e uma filha de nove anos. Pode ser contemplada ainda este ano com uma das 205 unidades do conjunto habitacional Santos O. Um número marcado pela Cohab Santista com tinta amarela do lado de fora de seu barraco a lembra disso todo dia.

Segundo a companhia habitacional do município, que realiza a obra em parceria com a CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), ligada ao governo do estado, 40 unidades devem ser entregues até o final de junho e outras 165 até dezembro.

O problema é que tanto Tatiane como o marido estão desempregados. Quando tiverem as chaves do apartamento novo nas mãos, passarão a ter gastos que hoje em dia eles não têm, como prestação da moradia, água, luz etc. 

A renda que o casal tem tido com bicos não cai todo mês na conta e pode ser insuficiente para arcar com os novos compromissos.

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A arquiteta Clarissa Souza, professora da Universidade Santa Cecília e pesquisadora do Observatório Socioespacial da Baixada, diz que a preocupação de Tatiane atinge a grande maioria das famílias das palafitas.

"Ninguém escolhe viver na miséria em que eles vivem. Se der uma opção de apartamento de dois quartos, é claro que eles vão querer. Mas é preciso fazer um mapeamento correto da renda dessas pessoas, senão não sobra dinheiro para comer, mesmo que se pague, por exemplo, uma taxa mínima de água", diz.

O gerente regional da CDHU da Baixada Santista, Rafael Redó, afirma que o critério adotado é o de que, mesmo desempregada, a família consiga reunir todo mês o valor de um salário para viver. E que, nesses casos, a prestação da nova moradia não passa de R$ 143,10 --quem comprova renda maior, paga mais.

Além disso, segundo ele, os mutuários são acompanhados por equipe de assistência social, que oferece respaldo em caso de dificuldades com o pagamento e encaminha a programas de geração de renda do estado.

Clarissa também observa que é preciso buscar alternativas além dos conjuntos habitacionais, já que as áreas para construir são poucas e o problema exige soluções rápidas. Segundo ela, existem edifícios antigos no centro da cidade que podem ser reabilitados. Muitos deles, inclusive, acabaram se tornando cortiços, estando precariamente ocupados.

A superintendente de Planejamento Habitacional da CDHU, Maria Claudia Pereira de Souza, concorda com a professora e diz que o caminho também passa pela regularização fundiária de áreas já urbanizadas e urbanização de trechos de favelas, acelerando a oferta de moradia.

Um mapeamento dos assentamentos precários das regiões metropolitanas do estado de São Paulo, incluindo os da Baixada Santista, está sendo realizado pela CDHU em parceria com os municípios e, segundo Maria Claudia, vai ajudar na identificação das demandas por moradia. 

As áreas serão classificadas em: 1) as que não precisam de nenhuma obra, mas necessitam de regularização; 2) as que deverão ser urbanizadas parcialmente com baixo índice de remoção de famílias que vivem em condições precárias; 3) as que terão parte urbanizada, mas com um alto índice de famílias a serem removidas por se tratar de uma área de grau de risco maior ou que necessitam de obras de maior porte; e 4) aquelas que necessitam de desocupação total, com recuperação para áreas de risco ou áreas de proteção ambiental.

Hoje, muitas cidades desconhecem o tamanho do problema, trabalhando com números subestimados de moradias precárias e até desconhecimento de suas reais condições. A última atualização que a Cohab Santista tem da quantidade de domicílios em favelas como o Dique da Vila Gilda, por exemplo, é de 2006

Ninguém escolhe viver na miséria em que eles vivem.

Clarissa Souza, arquiteta e professora em Santos

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Consequências ambientais

Outra implicação da instalação desordenada, ao longo de seis décadas, de palafitas sobre mangues em Santos e outros municípios da Baixada Santista é a ambiental.

Boa parte do lixo que se acumula no rio dos Bugres acaba indo parar nas praias, segundo William Rodriguez Schepis, diretor-presidente do Instituto EcoFaxina, ONG que há nove anos realiza monitoramento dos ecossistemas costeiros da região e ações de limpeza em mangues, uma delas acompanhada pelo UOL, em um trecho que resta de mangue no São Manoel (foto a seguir).

"A gente percebe que o resíduo que chega à praia não é o resíduo descartado pelo banhista, nem por navios. A imensa maioria é das habitações de palafitas, inclusive muita madeira podre, descartada nas manutenções feitas nas casas", afirma.

A Prefeitura de Santos, por meio de sua assessoria, diz que não há como saber a origem do lixo, mas que realiza a limpeza das praias todos os dias em três etapas, que duram das 4h até depois das 8h.

De qualquer forma, ao menos o lixo das areias pode ser recolhido, o que não acontece com o material que vai para o mar.

"O que fica de lixo na baía de Santos, não há como retirar, e ali se tem muita tartaruga, golfinhos, que sofrem demais, seja com a ingestão de plástico, porque eles acham que é comida, seja com o emaranhamento", diz Schepis.

Outra preocupação, segundo ele, é com a contaminação dos pescados e frutos do mar que são comercializados nas redondezas e que, para alguns moradores das palafitas, compõem parte importante da alimentação.

Pesquisa realizada com amostras de sedimentos do rio dos Bugres e publicada em 2016 na revista científica "Brazilian Journal of Aquatic Science and Technology" (Bjast), do Centro de Ciências Tecnológicas da Terra e do Mar da Universidade do Vale do Itajaí, indica a presença de metais pesados como mercúrio, níquel, zinco, cobre e chumbo, altamente prejudiciais à saúde dos seres humanos.

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Além disso, existe a questão ambiental primeira: a degradação dos mangues.

Os manguezais são responsáveis por produzir mais de 95% do alimento que o homem captura no mar. Já chegaram a ocupar 10% do território da Baixada Santista e hoje estão reduzidos a muito pouco.

Mapas da década de 1960 e do final dos anos 2000 disponibilizados no Atlas Ambiental e Socioeconômico da Baixada Santista mostram bem o declínio dessa vegetação. De lá para cá, no entanto, mais ainda se perdeu.

Schepis diz que propôs em 2009 à prefeitura parceria para a recuperação das áreas degradadas de mangue e contenção do lixo com ecobarreiras, impedindo-o de chegar ao mar. O trabalho seria desenvolvido a partir um galpão, a ser construído (mediante autorização das autoridades ambientais e com recursos da iniciativa privada) na área de palafitas que deve ser esvaziada no São Manoel com a ida das 205 famílias para o Santo O.

Segundo ele, a ideia é envolver a comunidade, gerando renda para os moradores que permanecerem (mesmo com a remoção prevista para este ano, cerca de outras 800 famílias da favela continuarão no aguardo por moradia), a partir da coleta seletiva do lixo e da venda de recicláveis. Além disso, essa seria uma forma de garantir que o local não volte a ser ocupado.

“A recuperação de áreas degradadas é uma ferramenta de congelamento de favelas, para que não se perpetue isso, como vem acontecendo, com as pessoas sendo transferidas e naquele mesmo local se instalando outras famílias, e mais mangue sendo cortado, porque não existe fiscalização. Se não houver um projeto atuando junto à comunidade, com presença diária e sendo um braço do Executivo, o problema nunca vai acabar”, diz Schepis, que aguarda resposta para a iniciativa.

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