As famílias do zika

Fora das prioridades, a vida de sustos e dificuldades das crianças com microcefalia no Nordeste

Pam Belluck e Tania Franco Do New York Times, em Escada (PE)
Adriana Zehbrauskas/The New York Times
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Nenhuma alma era visível na rua estreita de terra, exceto por um gato correndo sob a luz do luar.

São 2h30 da madrugada e Vera Lúcia da Silva estava preparando seu bebê para uma viagem até Recife, a 2 horas e meia de distância. Embalando Sophia Valentina, ela caminhou pela cidade envolta em neblina, então embarcou em uma van do governo para a viagem trepidante, chegando pouco após o nascer do sol. Elas fazem a viagem árdua várias vezes por semana. É a única forma de obter o tratamento e terapia que Sophia precisa para os vários problemas causados pelo vírus da zika.

Agora com mais de um ano, Sophia é uma filha da epidemia de zika, uma dentre os mais de 2.500 bebês no Brasil nascidos de mães infectadas, com danos cerebrais tão profundos que as consequências apenas começa a ser conhecidas.

Em novembro, a Organização Mundial da Saúde suspendeu a emergência devido ao vírus transmitido por mosquito, mas a zika está longe de ter desaparecido. Milhares de novas infecções pelo vírus da zika continuam sendo relatadas por toda a América Latina e as autoridades da OMS disseram que a doença, assim como a malária e a febre amarela, é uma ameaça contínua na região.

Para as famílias dos bebês da zika, entretanto, os efeitos desastrosos estão apenas se aprofundando. Isso é especialmente verdadeiro nas cidades e vilarejos pobres do Nordeste do Brasil, onde a conexão entre o vírus misterioso e bebês nascidos com microcefalia foi inicialmente detectada e onde centenas de famílias têm dificuldade para dar a esses bebês a melhor vida possível.

Adriana Zehbrauskas/The New York Times Adriana Zehbrauskas/The New York Times

Muitos bebês também apresentam uma longa lista de sintomas variados, levando especialistas a rebatizarem sua condição de "síndrome congênita do zika". Eles têm convulsões, problemas respiratórios, dificuldade para engolir, fraqueza e enrijecimento dos músculos e juntas, o que os impede até mesmo de levantarem suas cabeças, pés tortos, problemas de visão e audição, e irritabilidade feroz.

Apesar das crianças ainda serem pequenas o bastante para serem carregadas e alimentadas, no final muitas poderão ser incapazes de caminhar, frequentar escolas comuns ou viver por conta própria como adultos.

Esses bebês, a maioria deles ou todos eles, viverão vidas longas, é possível mantê-los vivos por muito tempo, mas precisarão da assistência de alguém 24 horas por dia. As consequências para a sociedade são imensas."

Ernesto Marques, especialista em doenças infecciosas da Fiocruz no Recife

Estas são as histórias de duas famílias: um casal perseverando com determinação, apesar dos frequentes problemas médicos de seu bebê, e recém-casados cujo relacionamento não suportou as pressões dos cuidados com seu bebê inválido.

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Sophia Valentina

"Risco grave de aspiração", dizia o pedaço de papel perto da cama onde Vera Lúcia da Silva estava envolvendo Sophia em um casaco de lã com capuz cor-de-rosa para a caminhada no meio da noite até a van.

Um médico explicou o que significava o relatório médico. "Ela vai sufocar", disse Vera Lúcia da Silva, torcendo os dedos com ansiedade. "A comida irá para os pulmões dela."

Sophia sofre de disfagia séria, uma dificuldade de engolir que aflige os bebês mais velhos da zika, cujos cérebros não conseguem coordenar as habilidades para comer. Os médicos aconselharam adicionar um espessante à comida dela, mas se não for bem-sucedida, ela precisará ser alimentada por uma sonda pelo nariz.

Peço a Deus para que ela não tenha que usar a sonda de alimentação."

Vera Lúcia da Silva, 32 

O marido dela, Ronaldo, 34, tentou tranquilizá-la. "Deus nunca nos daria 100 quilos se pudéssemos apenas carregar 50 quilos", ele disse. Mas o peso continua aumentando.

Após outra viagem na madrugada até o Recife e horas de espera, Sophia foi colocada em uma maca na clínica da Fundação Altino Ventura.

Cinco terapeutas a examinaram. Uma sacudiu um chocalho amarelo perto do ouvido dela. Outra removeu os minúsculos óculos de Sophia, acenou um pompom prateado brilhante e piscou uma lanterna, mas os olhos dela mal pareciam capazes de reagir aos estímulos.

"Sophia é uma criança com capacidade visual, auditiva e motora muito comprometida", concluiu Kyrla Mela, uma fisioterapeuta. "Ela não tem controle da cabeça, ela não rola, não senta."

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Após o nascimento de seu primeiro filho, Richarlisson, Vera Lúcia da Silva, uma ex-professora, tentou por cinco anos outra gravidez, perdendo uma por aborto espontâneo. Aos três meses da gravidez de Sophia, perto do poço de um vizinho, um mosquito a picou no braço. Ela teve diarreia e ficou com manchas vermelhas no braço, barriga e rosto.

Um médico disse que poderia ser chikungunya, uma doença transmissível por mosquito que não é transmitida ao feto. A zika, transmitida pelo mesmo mosquito, era mal conhecida no Brasil na ocasião.

As coisas pareciam bem até um exame de ultrassom no sexto mês. "Sua filha tem microcefalia", disse um médico para Vera Lúcia da Silva. 

Vera Lúcia da Silva entrou em desespero. Mesmo assim, duas semanas depois, quando um médico disse, "Se você não quiser uma criança com microcefalia, você não é obrigada a tê-la", ela rejeitou o aborto. "Não, mesmo com microcefalia, eu vou amá-la da forma como ela vier", ela disse.

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Daniel, 16 meses

Os bancos estavam repletos de mães da zika do lado de fora da Associação de Assistência à Criança Deficiente no Recife, quando Jaqueline Vieira chegou, embalando seu filho Daniel, cuja cabeça era pequena demais para seu corpo, com seus dedos fechados em punhos.

Óculos azuis estavam presos à sua cabeça e botas imobilizadoras azuis com desenhos do Mickey Mouse em suas pernas.

Ela e outras mães conversavam. Uma disse que por um breve momento não conseguiu encontrar seu bebê naquela manhã, depois notou que ele rolou e caiu da cama. "Isso é bom", outra disse. "Ele se moveu. Quem dera meu bebê fosse assim."

Desde o nascimento de Daniel há 16 meses, Jaqueline se separou de seu marido, perdeu seu auxílio mensal do governo, deixou um emprego e se vira com outras ajudas do governo.

A própria concepção de Daniel foi contra as probabilidades. Jaqueline desenvolveu câncer uterino quando seu outro filho era pequeno.

Enquanto passava por quimioterapia, ela começou a namorar Dalton Douglas de Oliveira, cinco anos mais novo que ela, que frequentava sua igreja evangélica. Eles apressaram o casamento para que a igreja não descobrisse o sexo antes do casamento.

Um mês após o casamento, ela soube que estava grávida de três meses. "Foi a maior alegria da minha vida", ela disse. Seu marido também ficou empolgado. "Queríamos ter um filho nosso", ele disse.

No quinto mês de gravidez, Jaqueline ficou perturbada quando um médico disse que um ultrassom mostrou hidrocefalia, um cérebro cheio de líquido, e que o bebê poderia morrer, ela lembrou.

Mas no sétimo mês, outro médico discordou, dizendo: "Olhe, seu filho é especial, ele tem um pequeno problema, mas o que ele tem é microcefalia", disse Jaqueline. "Foram boas notícias."

Mas o alívio dela evaporou após o nascimento de Daniel.

Eu achei que tinha sido punição de Deus por ter engravidado quando não deveria."

Os cuidados com uma criança doente estressaram o relacionamento do casal. Dalton disse que sua esposa não lhe pedia ajuda e reconheceu que estava irado demais com ela para oferecer. "Meu problema era com ela, não com o bebê", ele disse.

Aos dois meses, Daniel despertou com dificuldade de respirar. No hospital, Jaqueline lembrou, os médicos suspeitaram que mofo ou poeira em casa estava irritando os pulmões dele, e recomendaram melhorar a qualidade do ar da casa ou se mudarem.

Dalton achou que sua esposa estava exagerando. As coisas explodiram depois disso. Jaqueline deu entrevistas à televisão alegando que seu marido "não dá atenção ao menino", ela disse, reconhecendo que a publicidade gerou doações do exterior.

Após disputas em torno da pensão alimentícia, ele parou de pagar. E quando ele a ignorou na rua, ela disse às pessoas que ele estava na verdade evitando a doença de Daniel.

Jaqueline, uma ex-funcionária da padaria do supermercado que recebia auxílio-doença do governo por câncer, teve dificuldade em pagar pelo medicamento anticonvulsões de Daniel, Sabril, cerca de R$ 300 por mês. Para ajudá-la, um grupo de policiais começou a comprá-lo e ela e outras mães às vezes compartilham comprimidos.

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Quando as convulsões de Daniel pioraram, Vieira passou a dar mais Sabril para Daniel, até que os comprimidos acabaram.

Desesperada, ela telefonou para o ex-marido em sua empresa de gesso, exigindo a pensão não paga. "Se eu tivesse, já teria lhe dado", ele disse.

Pegando emprestado o cartão de crédito da mãe, ele visitou cinco farmácias até encontrar o Sabril.

Logo depois, o governo suspendeu o auxílio-doença de Vieira, concluindo que ela já podia trabalhar. Mas ela se sentia incapaz e agora recebe seguro-desemprego e se inscreverá para os benefícios do governo para zika.

Dalton, 21 anos, retomou o pagamento da pensão alimentícia e aumentou o valor. Jaqueline agora permite que ele veja Daniel.

"Ainda rezo a Deus para que ele possa ser uma criança perfeita e com saúde", ele disse. "Continuo pedindo, pedindo, pedindo."

Como uma bebê inspira médicos e cientistas na luta contra o zika

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