O peso da crise

Moeda cai, argentinos estocam compras e país reviveu saques a lojas. Oposição fala em fome, governo vê armação

Luciana Taddeo Colaboração para o UOL, de Buenos Aires
MARCOS BRINDICCI / Reuters

Em um ano, o peso perde mais da metade do valor frente ao dólar, os preços disparam, os argentinos empobrecem e voltam a estocar produtos em casa. E tudo isso são fatos comprováveis.

Assombrados pela expectativa de mais inflação, começam a receber vídeos de gente arrombando portas, quebrando vitrines e retirando produtos de lojas. Mas a veracidade, a motivação e a frequência desses fatos é difícil de comprovar.

Em meio a mais uma crise cambial, a Argentina reviveu, entre a última semana de agosto e a primeira de setembro, o fantasma dos saques ao comércio, que assustaram o país em 2001 e em 2012. Governo e oposição disputam os cálculos e a narrativa: a equipe do presidente Maurício Macri admite sete tentativas de saque, mas vê exagero e armação, já que algumas das imagens que circulam são antigas e os saques seriam organizados, via grupos online, por gente tentando se aproveitar da situação para lucrar.

Do outro lado, há os que veem nos saques o reflexo do desespero de quem já não consegue pagar por itens básicos.

Nessa guerra de versões alimentada pelas redes sociais, já há vítimas no mundo real. No início do mês, um garoto de 13 anos foi morto na província de Chaco, interior do país. A polícia diz que ele participava de uma tentativa de saque a um supermercado. A mãe diz que ele só passava pelo local.

Juan Mabromata/AFP Juan Mabromata/AFP

Argentinos perdem poder de compra

Com três filhos e à espera o quarto, Jenifer Machado, 25, abriu, há um ano, um refeitório que atende cerca de 60 crianças de baixa renda. Mas está cada vez mais difícil preparar as merendas.

Segundo ela, os preços da farinha de trigo e do macarrão praticamente dobraram. E as doações estão cada vez mais raras.

Acho que se continuar assim, os saques virão

Com essa desvalorização, a pobreza vai aumentar

Mauricio Macri

Mauricio Macri, no início do mês, ao anunciar a ampliação de um programa similar ao Bolsa Família no Brasil, iniciado na gestão 'kirchnerista'.

Questões sociais

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O preço da carne

De janeiro a julho (ou seja, antes mesmo da forte desvalorização de agosto), o aumento da cesta básica alimentar foi de 19,57%. Na comparação entre julho de 2017 e de 2018, o índice chegou 32,4%, superando a inflação interanual, de 31,2%.

Um dos principais alvos de reclamação é o preço da carne. René Porcelana, dono de um açougue em Buenos Aires, diz que os aumentos vieram apenas dois dias depois da disparada do dólar.

Para não perder clientes, ele tentou segurar o aumento: o fornecedor aumentou o frango em 25%, mas ele diz ter repassado “só” 12% ao consumidor. “Se não, as pessoas não consomem”, explica.

Os números da crise

  • 1 para 40 pesos

    O dólar se aproxima de 40 pesos argentinos diversas vezes no mês. Há um ano, estava na casa dos 17

  • 24%

    É o acúmulo da inflação até agosto na Argentina. Salários perderam 10% do valor em oito meses

  • 30%

    dos argentinos vivem abaixo da linha da pobreza segundo último dado disponível, de 2017

Agustin Marcarian/ Reuters Agustin Marcarian/ Reuters

Com medo das remarcações, muitos argentinos decidiram estocar produtos em casa.

“Havia muita incerteza e as pessoas sabiam que o que vinha não era nada bom”, relata Clara Gometz, de 61 anos, vendedora de brinquedos que também fez seu estoque.

Mas para alguns, armazenar não é uma opção. Estima-se que cerca de 30% dos argentinos vivam abaixo da linha da pobreza – gente que não consegue pagar nem o que vai consumir no dia.

“Não tem trabalho, a coisa está feia. Tudo aumentou e o dinheiro não é suficiente para comer”, diz Lourdes Miloc, de 20 anos.

Nesse contexto de empobrecimento, sete tentativas de saques foram registradas, segundo a ministra da Segurança, Patricia Bullrich.

Nem todos acreditam que os episódios sejam motivados pela fome.

“Há crise, mas não a ponto de saquear supermercados. Isso é planejado. As pessoas estão cansadas e não querem que esse tipo de coisa volte a acontecer”, opina o vendedor Claudio Simón, 57.

STR/AFP STR/AFP

Governo questiona os saques

Para o governo argentino, os saques não são espontâneos. São organizados em grupos de Whatsapp e não têm a alimentação como motivação final.

“O que estamos fazendo é desestimular [os saques] com presença das forças de segurança. Estamos encarando diferentes investigações sobre alguns instigadores ou organizadores destes atos”, disse ao UOL o chefe da Polícia Federal Argentina, Néstor Roncaglia.

Roncaglia diz ser “estranho” o fato de, em um dos episódios, imagens de uma câmera de segurança mostrarem participantes carregando itens como televisor e bebidas alcoólicas.

No interior do país, alguns supermercados ganharam reforço de equipes policiais.

Para Eduardo Donza, pesquisador do Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina (UCA), as tentativas de saque são pontuais. “Aconteceram em 10, 15 dias e não voltaram a se repetir”.

Entre boatos e fatos, na maior parte do país, a vida segue normalmente, e o clima não é de tensão. É de pessimismo.

A imagem ao lado mostra um episódio de saque ocorrido em 2012. Nas agências de notícia, não há imagens disponíveis de saques deste ano.

Questões econômicas

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Perspectivas

Para Donza, a desvalorização da moeda combinada com medidas de redução do déficit fiscal traz impactos como perda de postos de trabalho e diminuição de consumo por parte daqueles mais afetado com o fim dos subsídios.

Apesar de o panorama ser diferente da crise de 2001, o especialista alerta que o quadro é sério. “As medidas que o governo toma também são de emergência”, conclui.

Após a disparada do dólar, Macri anunciou a ampliação de produtos do programa Preços Cuidados: uma lista de 550 itens que não podem ser reajustados nos próximos 4 meses nos supermercados participantes.

Lançada em 2014, a medida tem impacto limitado. “Em supermercados grandes, de 525 artigos listados antes, encontravam-se apenas 60 ou 70”, lembra o representante legal da Associação Consumidores Livres, Héctor Polino.

Para o sociólogo Gabriel Puricelli, do Laboratório de Políticas Públicas da Argentina, a piora das situações econômica e social da Argentina são anteriores à crise cambial e as perspectivas não são animadoras.

A fase mais aguda em termos sociais do impacto da crise econômica vai ser sentida mais perto do fim do ano

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