A Venezuela é aqui

Fugindo da miséria, refugiados reconstroem suas vidas sob as árvores da praça Simón Bolívar, em Boa Vista

Talita Marchao e Paulo Camilo Do UOL, em Boa Vista

No encontro entre as avenidas Venezuela e Brasil, a praça Simón Bolívar virou refúgio de venezuelanos que chegam a Boa Vista fugindo da crise e da fome. A rotatória que homenageia o libertador da América espanhola tornou-se o lar de cerca de mil pessoas que ali vivem acampadas, sem organização, sem comida, sem teto.

UOL esteve na praça para contar como os venezuelanos tentam reconstruir suas vidas. Cada um se vira como pode para comer, tomar banho, arrumar trabalho e proteger-se da chuva em uma cidade amazônica.

Nas conversas, a tônica é a mesma: "Não me dê comida, me dê trabalho". A busca por formas de ganhar dinheiro ocupa a maior parte do dia, com a preocupação de garantir a sobrevivência dos que estão no Brasil, e também enviar dinheiro para a família que ficou no país vizinho, devastado pela miséria.

Praça Simón Bolívar

Venezuelanos deixam bolivarianismo de Maduro para trás e buscam abrigo com herói nacional

A 200 metros da rodoviária de Boa Vista, capital de Roraima, a primeira imagem que se tem da praça Simón Bolívar é de caos e insegurança. Barracas espalhadas no meio de uma grande rotatória, pessoas vagando, sujeira. No começo da noite de uma quarta-feira, um carro de polícia permanece poucos minutos e logo vai embora.

Zulimar Hernández, 40, chama a atenção ao passar com as duas filhas pequenas. As três, de cabelos molhados, aguardavam para atravessar a avenida em meio aos carros e caminhões rumo à praça mal iluminada, que fica cada vez mais escura. Não há faixa de pedestres no local, apesar da travessia perigosa. 

As pequenas, de 3 e 6 anos, e a mãe tomaram banho no posto de gasolina, que cobra R$ 2 pela ducha. Após uma breve conversa, elas aceitam apresentar o lugar em que vivem há 20 dias, quando deixaram uma fazenda nos arredores por problemas com o patrão.

Já na praça, o lugar é mais seguro do que aparenta: o caos da praça Simón Bolívar é um lar para centenas de pessoas desabrigadas.

Elas mostram os poucos pertences que possuem e como improvisam a moradia ali: em uma barraca de camping pequena, dormem as meninas e um irmão de 20 anos. Zulimar e o marido, Jésus, e outro filho, de 28 anos, passam as noites sobre caixas de papelão ao relento ou em redes amarradas nas muitas árvores da praça. Elas têm ainda uma cadeira quebrada de plástico e colchonetes.

Edmar Barros/Futura Press/Estadão Conteúdo Edmar Barros/Futura Press/Estadão Conteúdo

A escolha da praça para viver não se deu por acaso: a praça está ao lado da rodoviária, onde chegam os ônibus que vêm de Pacaraima (RR), na fronteira com a Venezuela, e a 500 metros da Polícia Federal, onde os venezuelanos pedem refúgio e residência para permanecer no Brasil.

A Prefeitura de Boa Vista estima que 40 mil venezuelanos vivam na cidade atualmente. No entanto, no centro da cidade, a 2,5 km dali, quase não se vê venezuelanos em busca de trabalho ou lavando os vidros dos carros. A maior parte procura empregos nas ruas e nos semáforos perto da entrada da capital.

Edmar Barros/Futura Press/Estadão Conteúdo Edmar Barros/Futura Press/Estadão Conteúdo

"Não me dê comida, dê trabalho"

Nas conversas com os venezuelanos da praça há uma narrativa em comum: buscam emprego para bancar despesas, sair das ruas e para ajudar os que ficaram para trás na Venezuela.

Entre os muitos relatos, todos contam de patrões que pagam menos que o justo e de calotes. Ainda assim, qualquer trabalho vale para assegurar a própria sobrevivência e a da família.

Pela cidade, há placas de papelão pedindo emprego como pintor, pedreiro, carpinteiro e padeiro. Mas a maior parte só pede trabalho --pouco importa a função.

Paulo Camilo/UOL

A vida sem teto

Há pertences amontoados encostados nas árvores, roupas coloridas estendidas e pequenas fogueiras improvisadas, mas ninguém consegue cozinhar ali: vivem das doações de refeições feitas por ONGs e grupos que promovem distribuição de comida, produtos de higiene pessoal e até mesmo de barracas.

"Não há como cozinhar. Para comer, é preciso esperar que a ajuda chegue, com a comida para as crianças. Além disso, logo chega a estação de chuvas", preocupa-se Zulimar --a estação de fortes chuvas atinge Boa Vista a partir de abril.

Para quem está na rua, ir ao banheiro, no posto ou na rodoviária, custa R$ 1 ou R$ 2. As marmitas são vendidas na região por R$ 10. O pouco dinheiro é gasto com a sobrevivência cotidiana.

Os homens saem para procurar trabalho. Algumas pessoas precisam ficar na praça para cuidar das coisas. Não podemos abandonar tudo, isso é uma área toda aberta."

Belzis González, de Monagas (Venezuela)

Mauro Pimentel/AFP Photo Mauro Pimentel/AFP Photo

"Tudo aqui é doação. As igrejas estão tentando nos ajudar porque o governo não nos ajuda na parte da comida", diz Belzis González, 44, que está na praça com o marido, o filho de 23 anos e um amigo desde o fim de janeiro

Segundo ela, a opção mais barata para o banho depois que a rodoviária começou a cobrar pelo uso do banheiro, em fevereiro, é "buscar galões de água e improvisar o banho na praça mesmo, principalmente para as crianças".

Quando chove, e as chuvas têm sido cada vez mais fortes com a chegada da temporada úmida, todos correm para a cobertura do posto de gasolina, deixando os pertences para trás. 

Belzis e sua família tentaram vir de Pacaraima até Boa Vista andando pelos mais de 200 km que separam as cidades. "Caminhamos dois dias. Já com bolhas e os pés inchados, paramos, e uns senhores nos deixaram ficar ali porque viram a nossa situação. Nesta mesma noite, graças a Deus, passou um senhor e nos trouxe até [a capital]."

A situação está muito crítica lá. O salário que ganhamos serve apenas para comprar um frango e arroz. Mais nada. E nos outros 29 dias, o que comemos?"

Encontrar alimento e emprego não são as únicas dificuldades de quem vive na praça. Durante as entrevistas, pedidos de ajuda se misturavam com a história das vidas. Uns pediam informações sobre a condição de vida em outras regiões do Brasil, outros perguntavam quando a reportagem iria até a fronteira para tentar uma carona e levar medicamentos aos familiares que os encontrariam na área que divide os dois países. 

Fábio Gonçalvez/Fotoarena/Estadão Conteúdo

A busca pelo emprego

Exploração do trabalho e golpes

A maioria aqui consegue trabalhos para o dia, mas ninguém ganha o suficiente para alugar uma casa. Os patrões pagam muito menos do que o trabalho vale. Está difícil porque brasileiro não tem confiança no venezuelano.

Belzis González

Belzis González, cabeleireira

Em uma fazenda, querem pagar R$ 20, R$ 30 o dia. No meu caso, fui trabalhar com o patrão em uma fazenda. Ele nos ofereceu R$ 1.700. Depois, me deu uns R$ 550 e depois disse que não tinha mais dinheiro para pagar.

Zulimar Hernández

Zulimar Hernández, mãe de 4 filhos

Aqui trabalho descarregando carretas no posto na frente da praça e assim ganho a vida. O trabalho é duro, mas o que ganho aqui dá para comer e mandar algo para a Venezuela, que está passando um momento muito difícil.

José Roniel Falcón

José Roniel Falcón, advogado

O MPT (Ministério Público do Trabalho) realiza investigações para apurar a exploração de mão de obra venezuelana em Roraima e deve acompanhar o processo de interiorização para outros Estados brasileiros. Dos que chegam em Boa Vista, muitos pretendem seguir para Manaus, Belém, São Paulo.

Além da discriminação laboral, os abusos e agressões tornaram-se comuns para os venezuelanos em Boa Vista. Iniciada em fevereiro, uma campanha do MPT também tenta combater a xenofobia em Roraima.

Entendo e compreendo que há brasileiros que estão incomodados com a gente, porque há pessoas que não vieram para trabalhar. Estes vieram com más intenções. Mas tem gente aqui que não pode pagar pelo que os outros fazem. Por causa de um ou outro, pagamos todos."

Zulimar Hernández, de Anzoátegui

Sou publicitário e trabalhei em campanhas do governo. Falo inglês, português e até japonês. Digo para as pessoas: 'Não me dê comida, me dê um trabalho'. Com um emprego, vou poder me desenvolver. Mas um outro problema que temos aqui é a aparência. As pessoas precisam se preocupar com isso. É importante tomar banho, trocar de roupa e fazer a barba para conseguir um trabalho. A aparência fala por si mesma. Se vou barbado, todo sujo, como vou ser contratado? Eu não sou um indigente ou um pilantra, como os brasileiros chamam quem vem para se aproveitar da bondade dos outros

Jonmar Díaz Carvajal

Jonmar Díaz Carvajal, publicitário

Paulo Camilo/UOL Paulo Camilo/UOL

O desespero e a desordem quando a comida chega

O grupo que vive na praça não tem liderança ou qualquer tipo de organização interna. Sempre que encosta algum carro com doações de alimento, o local se transforma em um cenário de desespero, com uma grande correria, filas e tumultos.

É fácil saber quando chega algum grupo de distribuição de comida: todos correm na tentativa de chegar primeiro e garantir a refeição. 

Mas o esforço é em vão. Em meio ao caos, as marmitas desaparecem em poucos minutos. Os que ficam sem, brigam e alguns se desesperam.

Nós trazemos 300 marmitas no começo da noite, quando a praça está mais cheia. Este número é distante do necessário para alimentar a todos"

Manuel Honório Vieira, funcionário público

Manuel Honório Vieira, 53, a família e mais um grupo de amigos arrecadam comida e dinheiro para preparar as marmitas distribuídas uma vez por semana, às sextas-feiras.

Seu grupo vai em dois carros com as marmitas colocadas em isopor. Toda a comida desaparece em questão de minutos, e muitos ficam na fila sem acreditar que perderam mais uma oportunidade de se alimentar. Alguns se revoltam, outros deixam o local em silêncio, e esperarão pela próxima oportunidade de comer.

"Saímos da Venezuela para entrar na Venezuela outra vez. O que acontece na praça hoje é a maior representação do que deixamos para trás: caos, desordem, fome, sujeira. Mas chegamos aqui e precisamos cortar o cordão umbilical", define Jonmar Díaz, de 34 anos.

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