A Marcha do Retorno

Após seis semanas, protestos em Gaza chegam a última sexta-feira com mais de 3.000 feridos e 52 mortos

Yasser Qudih/Xinhua

Desde 30 de março, sobretudo às sextas-feiras, entre 10 mil e 30 mil palestinos vão à fronteira da Faixa de Gaza com Israel protestar. A cada manifestação, o noticiário internacional é tomado por fotos e balanços de mortos e feridos. Até esta sexta-feira (11), o saldo é de ao menos 52 mortos e mais de 3.000 feridos, segundo o ministério da saúde de Gaza.

Batizada de Grande Marcha do Retorno, a série de manifestações reivindica o retorno de 5 milhões de palestinos e seus descendentes, deslocados desde a criação do Estado judaico, que este ano completa 70 anos. Israel já celebrou o aniversário, que neste ano caiu em 18 de abril (há diferenças devido ao calendário judaico). Para os palestinos, a data é 15 de maio, próxima terça-feira, dia em que vão relembrar a "Nakba" - palavra em árabe que se traduz por "grande catástrofe".

Até lá, a região vive a expectativa do recrudescimento dos confrontos durante as manifestações. 

Ibraheem Abu Mustafa/Reuters Ibraheem Abu Mustafa/Reuters

Por que em Gaza?

Manifestações têm ocorrido também em cidades da Cisjordânia, como Nablus, Al-Bireh, Ramallah e Hebron. Mas as de Gaza tomaram proporções maiores.

Gaza é uma faixa de terra a oeste de Israel, habitada por 2 milhões de palestinos. Lá, 70% são refugiados e seus descendentes, gente que teve que sair de suas vilas para dar lugar ao estado de Israel. Desde 2007, Gaza é controlado pelo grupo político extremista Hamas e suas fronteiras são completamente bloqueadas pelo exército israelense: ninguém entra, ninguém sai. 

Entre Gaza e Israel, há duas cercas paralelas separando os territórios, uma feita de arame farpado cru e outra com sensores para detectar quem tenta infiltrar o espaço entre as barreiras. Além disso, Israel impôs uma faixa, antes das cercas, em que ninguém pode pisar. Segundo a Human Rights Watch, as barricadas tiram cerca de 17% do território de Gaza, incluindo terras férteis.

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O bloqueio somado à má administração do Hamas fazem de Gaza uma prisão a céu aberto. Faltam energia, água tratada e empregos, entre outras carências. A agricultura e a pesca, importantes atividades econômicas locais, colapsaram devido ao cerco.

Esses fatores tornam a realidade dos palestinos de Gaza ainda mais crítica que a dos palestinos que vivem na Cisjordânia, governada pela Autoridade Palestina.

Os protestos são organizados pelo Hamas e outras organizações e mobilizam homens, mulheres e crianças. Em parte, as manifestações têm cara de uma grande festa. Famílias organizam piqueniques, outros tocam músicas e dançam. Tendas foram erguidas próximas à fronteira no início e permanecem ali desde então, para dar suporte aos manifestantes.

Ibraheem Abu Mustafa/Reuters Ibraheem Abu Mustafa/Reuters

Hoje estamos mandando uma mensagem de que nossa luta é sem armas e vamos esperar para ver se o mundo recebe a mensagem e pressiona Israel a parar com os crimes contra nosso povo. Se o mundo falhar em fazer isso, seremos obrigados a usar as armas.

Mahmoud al-Zahar, líder do Hamas, em coletiva de imprensa

Xinhua/Stringer Xinhua/Stringer

Por que tantos palestinos morreram?

O número de mortos faz dos protestos os mais sangrentos desde 2014, quando uma guerra estourou em Gaza após o sequestro de três adolescentes israelenses pelo Hamas.

Há seis sextas-feiras (esta é a sétima), os manifestantes caminham em direção à fronteira, fortemente militarizada. Apesar do clima pacífico da maior parte dos manifestantes, grupos menores queimam pneus e lançam coquetéis molotov contra as tropas israelenses. Não há registro de soldados de Israel mortos ou feridos.

“Acho que hoje vou cruzar a cerca, mesmo que atirem em mim ou me cortem no meio”, disse o manifestante Bilal Abu Zaher, 26, ao jornal The New York Times, na segunda sexta-feira de protestos. Zaher compareceu de muletas e disse ser deficiente desde que sua casa foi atingida por bombardeios israelenses em 2008.

As forças de Israel respondem aos manifestantes com gás de pimenta, balas de borracha e munições reais - o que levou às mortes de palestinos. A Força de Defesa Israelense (IDF, na sigla em inglês) diz que todos os manifestantes mortos até agora agiam de forma violenta e, em sua maioria, eram integrantes do Hamas ou de outros grupos militantes. Dois deles estariam armados com AK-47 e granadas.

Um vídeo divulgado pela IDF no dia 30 de março mostra supostamente três palestinos tentando passar pela cerca. A IDF respondeu com tiros. No domingo (6), outros dois palestinos foram mortos por tentarem danificar a barreira de segurança, segundo Israel. 

Um vídeo do primeiro dia de protestos mostra palestinos que corriam em direção contrária à fronteira serem atacados a tiros:

Israel acusa o Hamas de editar e fabricar vídeos. Mas já no início das movimentações para a Grande Marcha, o general israelense Gadi Eizenkot adiantou que não toleraria danos à fronteira. “Se vidas estiverem em risco, há permissão para abrir fogo”, disse ao jornal israelense Yedioth Ahronoth.

“Não há paz, não há empregos, não há unidade e não há futuro, então que diferença faz morrer?”, perguntou retoricamente Ahmed, um manifestante palestino à Reuters. “Se vamos morrer, que não seja em vão.”

Na guerra de narrativas, outra imagem que rodou o mundo mostra soldados israelenses comemorando após acertar um tiro em um palestino. O Exército de Israel confirmou a autenticidade das gravações.

Entre os mortos dos protestos, até agora, estão dois jornalistas, cinco menores de idade e um deficiente. 

Said Khatib/AFP Said Khatib/AFP

Dia da Terra: o mais sangrento

O primeiro dia de protestos, 30 de março, foi o mais violento: 23 palestinos morreram e 1.400 pessoas ficaram feridas. A data era simbólica. Os palestinos celebravam O Dia da Terra, lembrando quando, em 1976, milhares de palestinos também foram às ruas protestar contra um plano de expropriação massiva do governo israelense. 

Seis árabes foram mortos na ocasião, em confronto com as forças israelenses. Quarenta e dois anos mais tarde, a história não só se repete, mas se agrava.

O que diz a comunidade internacional

Grupos de defesa dos direitos humanos condenaram o uso da força por parte de Israel, considerado por eles desproporcional.

“Soldados atiraram de trás da cerca (...) contra indivíduos que estavam distantes, em alguns casos em retirada, e não avançando, ou avançando sem representar ameaça iminente”, argumentou ao Washington Post Omar Shakir, diretor da Human Rights Watch.

Shakir foi expulso de Israel em 7 de maio, quando o governo israelense revogou seu visto de trabalho no país, com o argumento de que o diretor da HRW apoia o movimento de boicote ao estado judeu. 

O Kuwait tentou duas vezes pedir uma investigação dos incidentes na ONU, mas os esforços no Conselho de Segurança foram tolhidos pelos Estados Unidos.

“Acreditamos que o Conselho de Segurança segue ignorando sua responsabilidade e encorajando o lado israelense a manter o ataque violento contra nosso povo”, disse Riyad H. Mansour, embaixador da Palestina na ONU.

Elizabeth Throssell, porta-voz do escritório de direitos humanos da ONU em Genebra, explicou ao jornal The New York Times que a lei internacional apenas permite o uso de força letal como último recurso face a uma ameaça de morte ou que possa causar danos graves.

“A tentativa de se aproximar de uma cerca de arame farpado por si só definitivamente não chega a ser uma ameaça à vida que justifique o uso de munição.”

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