Dublê de piloto na F1

Repórter descobre, na pele, como é participar de um resgate de acidente em um GP Fórmula 1 no Brasil

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Entre meus amigos de escola, nove entre dez garotos queriam ser jogadores de futebol -- e eu era o décimo. Apesar da falta de habilidade com a bola, o motivo era uma outra paixão: eu queria ser piloto de Fórmula 1 e, um dia, controlar o carro na chuva e fazer aquelas “flying laps - de voltas rápidas no treino de competição” no último minuto, tal como Ayrton Senna. Essas memórias vieram à tona quando recebi o convite para ser o “piloto” em uma simulação de atendimento da equipe médica do Hospital Leforte antes do Grande Prêmio do Brasil.
Um doce flashback da infância.

Logo no início da semana de GP, fui para Interlagos encarnar o papel que nenhum piloto deseja: vítima de um grave acidente. Eu seria retirado do cockpit, levado para o Centro Médico onde receberia o primeiro atendimento e, depois, removido para o Hospital Leforte -- o hospital oficial do evento a partir deste ano. A proposta era de sentir na pele o que um piloto experimenta -- claro, apenas em relação ao resgate e a remoção -- quando sofre um acidente.

Meu acidente seria grave

As equipes que estarão a postos em Interlagos iniciam os treinamentos de extração e remoção de vítimas pouco mais de duas semanas antes das primeiras atividades em pista, repetindo exaustivamente os procedimentos várias vezes ao dia -- incluindo algumas simulações na pista, como a que eu participei.

O ápice da preparação acontece na quinta-feira antes da prova, quando é feita uma simulação oficial que é avaliada pela Federação Internacional de Automóvel (FIA). No entanto, nenhum dos médicos com quem conversei mostrou qualquer preocupação, já que há muitos anos o time comandado por Dino Altmann, médico-chefe do Grande Prêmio do Brasil há 27 anos, vem sendo considerado um dos três melhores entre todas as etapas da temporada.

Pouco antes do horário marcado, às 12h da segunda-feira dia 6 de novembro de 2017, Altmann me chama de canto e explica que o meu “acidente” simulado seria grave e eu ficaria inconsciente. Ou seja, durante todo o procedimento, eu não deveria responder ou interagir com os médicos e paramédicos. O meu diagnóstico: traumatismo craniano, lesão na coluna cervical, perfuração no tórax e uma fratura exposta no tornozelo direito. Este último ferimento, por sinal, foi habilmente imitado pela equipe de enfermagem com micropore, esmalte e maquiagem. E ficou assustadoramente realista! Serviria como um teste, para checar a rapidez de como o problema seria identificado.

Com direito a macacão, capacete e Hans (suporte de cabeça e pescoço, do inglês Head and Neck Support), fui então para o local da minha “panca”, como os pilotos se referem aos acidentes, na pequena reta entre a Curva do Lago e o Laranjinha -- que são curvas do circuito.

O médico que me ajuda a prender o HANS no capacete explica que os pilotos podem ser submetidos a impactos de mais de 100 vezes a força da gravidade (100G) -- e que, ao lado do carro, há luzes especiais que se acendem quando o choque é superior à 15G, um sinal de alerta à equipe médica.

Eu me ajeito no cockpit (claustrofóbicos passariam maus bocados) e, enquanto espero, tento imaginar o que passa na cabeça de um piloto que sofre um acidente de verdade e não consegue sair do carro sozinho.

A hora de sair do carro

Antes que eu pudesse concluir essas dúvidas, os médicos chegam. Como eu deveria simular um acidentado inconsciente, fico de olhos fechados e com o corpo inerte. Então, concentro-me no tato e na audição para identificar o que está sendo feito. Todo o procedimento é muito rápido, com muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo e,aproximadamente dois minutos depois, eu já estava fora do cockpit. Os dois médicos e os quatro paramédicos que participam da ação têm funções predeterminadas e funcionam com grande sincronia.

A primeira medida é fazer contato verbal e visual, a cargo de um dos médicos, que assim faz a avaliação sobre o estado de saúde do piloto, eu, no caso. Como não respondo -- já que se trata de uma simulação de acidente grave--, ele anuncia para a equipe que estou inconsciente

Nesse meio tempo, o segundo médico já toma conta da minha cabeça, para evitar danos ao pescoço ou coluna cervical. Volante e proteção lateral são retirados e, quando me dou conta, já estou sem o cinto. O capacete é retirado -- sempre com alguém apoiando minha cabeça -- e então o colar cervical é colocado.

Sempre que possível o piloto é retirado com o banco. Nele são fixados ganchos para auxiliar na hora de me levantar. Aparentemente todo mundo participa de alguma forma. Quando começo a subir, ouço: “vamos fazer o J”, referindo-se a um cuidadoso giro no eixo para a retirada das minhas pernas.

banco é retirado logo que sou colocado sobre a prancha e a parte superior do macacão é aberta, ao mesmo tempo em que minhas mãos são atadas. A prancha está sobre uma maca moldável, equipamento exigido pelas normas da FIA. Duas pessoas a ajustam em torno de minhas pernas e pescoço, enquanto outra retira o ar. O vácuo faz com que ela endureça, moldada ao corpo, e a imobilização fica completa com o aperto das cintas. Não conseguiria me mexer nem se quisesse.

Leforte Leforte

Equipes a postos

Fico sabendo, depois, que eu fui submetido ao procedimento padrão de extração do carro, quando o médico detecta que o piloto está relativamente estável e adota o máximo cuidado para preservar a coluna cervical e o pescoço. Mas há casos em que, ao se verificar que o estado do paciente é crítico, é feita a remoção rápida, cuja prioridade é a retirada imediata para a adoção de procedimentos de estabilização e preservação da vida do acidentado. Tudo depende da avaliação do médico. Há casos, ainda, em que o procedimento de retirada é mais demorado, como quando alguma parte do corpo do piloto fica presa e uma retirada apressada pode provocar hemorragias fatais.

Durante qualquer atividade em pista, as equipes médicas ficam a postos, divididas em dois carros de intervenção (com dois médicos a bordo de um modelo de alta performance, para o deslocamento rápido) e dois carros com equipes de extração (com quatro paramédicos). Há também o medical car da FIA, que leva o médico oficial da categoria e um traumatologista da equipe do Leforte, além de quatro ambulâncias (fora da pista, no entanto, há outras quatro: uma posicionada nos boxes, outra no kartódromo, junto às arquibancadas da reta oposta, e mais duas no centro médico), sem contar o helicóptero UTI de resgate aeromédico.

Altmann, o médico-chefe do GP Brasil, acompanha tudo o que acontece por meio de diversos monitores que cobrem toda a extensão do traçado, com a direção de prova. Quando um acidente ocorre, dependendo do ponto da pista, ele já sabe qual equipe de resgate acionar -- mas só o faz após autorização do diretor de prova, que avalia a segurança da pista e pode adotar medidas que vão desde as bandeiras amarelas, liberação do safety car ou até mesmo a interrupção da corrida. Afinal, é essencial que o atendimento seja feito com total segurança.

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Um longo trajeto

Assim que sou acomodado na ambulância, os enfermeiros já colocam a máscara de oxigênio e o monitor cardíaco. Em todas essas viaturas, e também no helicóptero, há um desfibrilador, medicamentos, instrumentos para pequenas intervenções e até equipamentos necessários para fazer pequenas cirurgias.

Totalmente imobilizado, volto a me imaginar naquela situação real e concluo que, nessa situação, só conseguiria pensar na minha família. O trajeto de pouco mais de 200 metros (o acesso para o centro médico da pista é ali ao lado), vencido em poucos minutos, certamente pareceria longo e demorado.

Retirado da ambulância, sou levado para a sala de pronto-atendimento. Novamente, um grupo bem organizado e com funções definidas entra em ação, ao comando do médico-chefe. Acessos são puncionados em cada um dos meus braços, a fratura na perna direita é identificada, o macacão cortado e uma tala colocada, além de um dreno inserido no meu tórax. Por fim, como apresento dificuldades respiratórias, sou entubado.

O Centro Médico montado pelo Leforte no Autódromo de Interlagos tem 400 metros quadrados e, além de dois leitos de atendimento de emergência e um terceiro exclusivo para o atendimento de pacientes com queimaduras, também conta com uma UTI completa com dois leitos.

Há ainda sala para avaliação oftalmológica completa, sala com equipamentos para diagnósticos por imagem e laboratório de análises clínicas, além de um banco de sangue e farmácia. Possui uma ampla área de descanso, onde boa parte dos profissionais permanece a maior parte do tempo. Em função da segurança, eles só entram na área de atendimento quando convocados pelo chefe do Centro Médico. No total, são 30 médicos mobilizados, das mais variadas especialidades, além de outros 120 profissionais, como paramédicos, enfermeiros e auxiliares técnicos e farmacêuticos.

Transferência para a unidade de referência

Depois que sou considerado estabilizado, a equipe anuncia que eu preciso ser transferido imediatamente para a unidade de referência -- afinal, lembra da enorme lista de lesões no meu diagnóstico? Serei, então, removido para a unidade da Liberdade do Leforte, onde, nos dias de evento, há uma estrutura exclusiva que inclui reserva de sala de emergência, centro cirúrgico e leito de UTI -- mesma estrutura que estará montada também na unidade Morumbi.

Minha remoção será feita com ambulância. Durante o evento, as transferências de pacientes são feitas prioritariamente por helicóptero, que é mais rápido, levando menos de dez minutos para chegar a qualquer uma das duas unidades do Leforte. Mas o hospital precisa, também, estar preparado para fazer a remoção terrestre, já que há situações de mau tempo, o que é bem comum em Interlagos, em que as aeronaves não podem levantar voo. Lá chegando, é feita uma nova avaliação clínica na sala de emergência e de lá sou transferido para a UTI, onde sou ligado a um monitor cardíaco e a um respirador.

Depois do último fio conectado, então, minha missão estava cumprida. Não me resta dúvida de que todo o time sob a direção de Altmann está muito bem preparado para o GP. Mas, apesar do esforço, preparação e planejamento, eles esperam que não seja preciso entrar em ação -- e que toda a emoção fique restrita às perseguições e ultrapassagens entre os pilotos dentro da pista. Mas, se alguém precisar, eles certamente estarão lá.

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