Parque Quilombo dos Palmares

O único parque temático dedicado à cultura afro-brasileira fica perto de Maceió e tem entrada gratuita

Lígia Hipólito Do BOL, Na Serra da Barriga (AL)
Beto Macário/UOL

Zumbi foi o mais conhecido rei de Palmares, maior comunidade quilombola das Américas, que resistiu ao sistema escravocrata durante quase 100 anos, tendo seu auge na segunda metade do século 17 - na região da então Capitania de Pernambuco. Mas o que pouca gente sabe é que o Quilombo dos Palmares foi instituído por uma mulher: Aqualtune, princesa do Congo escravizada no Brasil.

Não aceitando as correntes, ela liderou uma rebelião com um grupo de 40 pessoas, que caminhou rumo à Serra da Barriga, firmando o território de uma sociedade livre. Nascia, ali, um novo povoado contra engenhos e açoites: a Grande Federação Negra Palmarina.   

Essas e outras histórias compõem o roteiro de uma verdadeira aula viva: o passeio pelo Parque Memorial Quilombo dos Palmares, em União dos Palmares (AL).

Beto Macário/BOL

Sejam bem-vindos à Serra da Barriga!

O Parque Memorial Quilombo dos Palmares foi implantado em 2007 pelo Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, como resultado de uma luta de mais de 25 anos do Movimento Negro brasileiro. Está localizado a cerca de 77 km de Maceió, no alto da Serra da Barriga, região com 27,92 km² de extensão que abrigava o Quilombo dos Palmares e que foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1985.

Em 2017, a Serra da Barriga tornou-se também patrimônio cultural do Mercosul, em certificação concedida no dia 11 de novembro. De acordo com o Iphan, o título, além de reconhecer indivíduos e comunidades de matrizes africanas no continente americano, também representa uma reparação às perseguições e intolerância praticadas e reveladas por meio dos quilombos. 

A visita ao Parque Memorial conduz turistas e estudantes ao universo da República dos Palmares - o maior, mais duradouro e mais organizado quilombo das Américas. É uma espécie de maquete viva, com algumas réplicas em tamanho natural.

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As moradias expostas têm muita semelhança com ocas - construídas com paredes de pau a pique e cobertura vegetal. Isso porque os negros fugidos dos engenhos faziam morada nas matas, onde já viviam os nativos indígenas, e formavam os mocambos, como eram chamadas as comunidades quilombolas na época. O Quilombo dos Palmares, inclusive, era intitulado Mocambo dos Macacos. 

E que tal ouvir as vozes de Djavan, Lecy Brandão, Tony Tornado e Chica da Silva durante o trajeto histórico? As personalidades icônicas narram textos de instalações do parque, que têm versões em português, inglês, espanhol, italiano e trilha sonora da Orquestra dos Tambores de Alagoas.

Em ocasiões festivas como o Dia 20 de Novembro (Dia da Consciência Negra), o restaurante Kúuku-Wáana (banquete familiar) - dentro do parque - oferece pratos da culinária afro-brasileira com influência indígena, e o espaço Batucajé é palco de manifestações artístico-culturais.

Tour pelo único parque dedicado à cultura afro-brasileira no país

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Dandara é quem guia

Com poucos registros históricos, os relatos da época do levante de Palmares são preservados pela oralidade e repassados pelos guias locais, que contam como ocorreu a formação do quilombo, até seu processo de apogeu e derrubada. Thais Patrícia Paulino (Dandara) é uma dessas porta-vozes. De início, ela deseja boas-vindas com uma frase advinda dos idiomas africanos iorubá e quimbundo: "Oku Abo, Serra da Barriga! Oku Abo!".

A guia, que tem formação em turismo e é também graduada em Geografia pela Universidade Estadual de Alagoas, é conhecida como Dandara, que foi uma das maiores lideranças femininas do Quilombo dos Palmares. O apelido de Thais remete à época em que ela fazia parte de um grupo de dança chamado Afro Nação Dandara. 

"Desde criança sou apaixonada pela história palmarina. A primeira vez que eu subi aqui foi aos cinco anos de idade com as minhas irmãs (na época, o parque não existia). Aí, eu me apaixonei pelo espaço, gostei muito do passeio. Ficou gravado até hoje na minha memória. Foi quando eu comecei a buscar a minha própria história, pesquisei, estudei nos livros. Até chegar o momento de fazer o curso técnico de turismo pela Fundação Palmares. Hoje eu continuo lendo e buscando as histórias de Palmares. Iniciei o meu trabalho como guia em 2009. É um dos prazeres da minha vida trazer para cá estudantes, visitantes e pesquisadores para falar um pouco do que foi o Quilombo dos Palmares", explica Dandara, que faz parte de um grupo de guias particulares recomendados pelo Parque (veja nas dicas de turismo ao final como contratar um guia).

 

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Os reis Ganga Zumba e Zumbi

Estátua em pedra sabão é uma homenagem do escultor José Faustino aos dois reis de Palmares: Ganga Zumba (o maior na imagem) e Zumbi (o menor), retratado ainda criança.

Filho de Aqualtune, princesa congolesa que formou o quilombo grávida dele, Ganga assume o primeiro reinado, no século 17.

Já Zumbi nasceu em Palmares, mas foi sequestrado na infância e criado pelo Padre Antônio de Mello, que deu a ele o nome de Francisco.

Quando completou 18 anos, ele retornou ao quilombo e se rebatizou como Zumbi, que significa guerreiro, senhor da guerra. Mais adiante, Zumbi tornou-se o sucessor de  Ganga Zumba.

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Zumbi em Alagoas comandou...

Com vista exuberante para a Serra da Barriga, o espaço Atalaia de Toculo (atalaia significa ponto alto) mostra um dos locais escolhidos estrategicamente para Zumbi dos Palmares e outros guerreiros vigiarem o avanço das tropas inimigas na mata.

O Memorial da Serra da Barriga tem três pontos de atalaia; a todos os três é dado o nome dos filhos de Ganga Zumba: Acaiuba, Toculo e Acaiene. 

Havia também uma paliçada nos arredores do quilombo, feita de varas e barro, que se tornou impenetrável por quase cem anos. A fortaleza ainda era rodeada por fosso, contendo bichos ferozes e objetos pontiagudos.

A história que os livros não contam...

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Os professores

O Memorial é bastante visitado por grupos escolares. Foi o caso da turma dos professores Laudenor Pereira e José Correia da Silva, da Escola Municipal Osvaldo Benício Vaz Cavalcanti, de São Joaquim do Monte (PE). "A Serra da Barriga tem uma importância muito grande para a história do Brasil, principalmente, porque ela não é bem contada. O estudante que vê algo como isso aqui tem o gosto de ver um pouco da verdade em especial, os problemas e questões em torno dos negros, que foram explorados no nosso país. Aqui foi o principal quilombo do país", explica Laudenor.

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Uma aula fundamental

"Com a iniciativa do professor Laudenor, nós tivemos curiosidade de vir e conhecer um pouco mais sobre a história do Brasil. Antes de virmos aqui, não tínhamos conhecimento como temos agora. Por causa das exposições e das explicações, vamos ter mais interesse em aprendizado e mais curiosidade para aprender mais e mais. Em livros didáticos e internet, não tem muita coisa falando sobre isso que vimos aqui como deveria ser e como é merecido ter. Pois a história do Brasil passa, em parte, por tudo isso aqui", avalia Leonardo Carmargo, de 14 anos, após o passeio.

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Alunos transformados

"No começo do ano, estudamos sobre os negros africanos que vieram da África para o Brasil, e eu fiquei muito interessada pela história, pesquisei bastante porque nós não tínhamos recebido o livro ainda. Fiquei supercuriosa quando eu soube que eles fugiam dos engenhos para formar quilombos, e eu sabia que tinha um aqui próximo, que era em Alagoas. Eu queria muito vir aqui e eu tive essa oportunidade. Gostei muito, a experiência foi ótima. Quero guardar para a vida o que aprendi hoje", conta a estudante Gabriela Cavalcanti, de 14 anos, moradora de Pernambuco.

Guardiões do parque

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Mãe Neide

"Quem sobe a serra nunca mais é a mesma pessoa", diz Mãe Neide, com convicção e serenidade. Ialorixá e chefe de cozinha, ela faz parte da Comissão Gestora do Memorial e é reconhecida como Patrimônio Vivo do Estado de Alagoas dada a sua atuação na difusão da cultura afro-brasileira. "O alimento na Serra da Barriga foi implantado por algumas mulheres de axé, inclusive comigo. Como eu sou filha de quilombo também, em Arapiraca (AL), aprendi dentro do terreiro a cozinhar. Foi o sagrado junto com meus ancestrais que me puxaram para esta cultura. Aí, eu pensei que poderia transformar isso em benefício para o nosso povo, uma forma de resgate. A culinária que me levou a isso, como repassadora de saberes da minha ancestralidade. Porque, às vezes, você convive todos os dias com o alimento sagrado e não tem consciência disso. Então, o Baobá (restaurante de Mãe Neide na Serra da Barriga) é totalmente ligado à cultura afro-indígena". (Veja informações sobre restaurantes ao final da reportagem)

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Zé Vicente

"Coração da Terra/ Coração do Céu/ Coração da Gente/ Coração desse afro-continente/ Batucando no peito no Brasil". Nos versos do poeta e cantor cearense Zé Vicente, o quilombo mais importante das Américas vira música na canção chamada "Tambores de Palmares". "Minha ligação com a história do quilombo tem tudo a ver com a escolha que eu fiz como artista, de fazer do nosso povo e das nossas lutas o conteúdo de minha arte. Em 1995, eu vim aqui pela primeira vez e tinha um garotinho que era nosso guia e dizia: 'Meu tio me contou que Zumbi foi um homem que lutou pela nossa liberdade'. O pequeno relatou, na ocasião, que certa noite - quando o pai o obrigou a pegar um cavalo que estava amarrado ali perto - saiu um negro da mata que tinha um facho de luz e dizia: 'Não tenha medo!'. Então, esses conteúdos todos - míticos, sagrados e também revolucionários - são sobre a história de luta de um povo, são parte do meu canto", conta Zé, que visita o parque sempre que pode.

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Do apogeu à derrubada

 
Em seu período de maior resistência, na segunda metade do século 17, o Quilombo dos Palmares, que era formado por vários mocambos - sendo o principal o Mocambo dos Macacos -, chegou a ter cerca de 20 mil quilombolas, praticamente a população de uma cidade.

A Nação Palmarina, então liderada por Zumbi, crescia significativamente e se tornava uma ameaça ao sistema escravocrata. Com isso, o governo colonial organizou várias expedições de portugueses e holandeses para destruir Palmares, mas não obteve êxito.

No entanto, no dia 6 de fevereiro de 1694, o bandeirante Domingos Jorge Velho atacou o quilombo com canhões. Era o fim da liberdade no território de Palmares. Tudo foi destruído à base de fogo, sendo que os palmarinos só tinham lanças, flechas e algumas poucas armas de fogo que conseguiam saquear nas senzalas ou adquiriam em escambos. 


Durante o ataque, muitos quilombolas se atiraram da Atalaia Acaiene (foto acima), ponto mais alto da Serra da Barriga, a 500 metros de altitude. Dandara, importante liderança feminina, também teria se jogado do pico, preferindo a morte a ser escravizada novamente.
 

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Testemunhas vivas

A Lagoa dos Negros e a Gameleira Branca são os dois registros vivos da história de Palmares, que resistiram à derrubada e, hoje, constituem o espaço Aqualtune, considerado o mais sagrado do memorial.

Isso porque, durante o ataque de Domingos Jorge Velho, em 1694, a lagoa transformou-se em um verdadeiro mar de sangue, com vários quilombolas mortos. Já a "árvore sagrada", com idade estimada em mais de 300 anos, teria presenciado todas as batalhas. 

"É um espaço de repouso e reflexão. Muitos vêm para cá e refletem sobre toda a história de luta e resistência dos quilombolas", conta a guia Thais Patrícia Paulino (Dandara).

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Herói nacional

Zumbi, depois de muito guerrear, viu que não tinha saída e fugiu para tentar reconstruir Palmares em outro lugar. Após a destruição do Quilombo dos Palmares, os bandeirantes se organizaram e continuaram à procura do líder. Até que um dos amigos que fugiu com ele, Antônio Soares, foi pego e torturado até entregar seu companheiro - que estava na Serra Dois Irmãos, no município de Viçosa (AL). Zumbi, então, foi morto em uma emboscada na manhã do dia 20 de novembro de 1695. O corpo foi degolado, e sua cabeça foi levada para o governador Melo de Castro. Em Recife, foi exposta em praça pública, no Pátio do Carmo, para servir de ameaça a quem lutasse por um ideal de liberdade em tempos de escravidão. Somente 301 anos depois, em 1996, uma lei reconheceu Zumbi como herói nacional, imortalizando sua história, mais uma conquista do Movimento Negro do Brasil.

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Consciência Negra

Em 2011, outra iniciativa da militância negra possibilitou que o Dia 20 de Novembro entrasse para o calendário nacional, tornando-se, inclusive, feriado em algumas cidades. A data, marcada pela morte de Zumbi, foi instituída como o Dia da Consciência Negra. "É um dia reflexão [daí o termo consciência], para refletir sobre a importância da luta do grande guerreiro de Palmares", reforça a guia Dandara. Todos os anos, nessa época, o parque realiza uma série de eventos, ação direcionada ao público em geral, sem distinção, porque, como ocorre em relação a todo genocídio, é importante recordar e não repetir. No espaço Acotirene (foto acima), por exemplo, religiosos de matrizes africanas pedem a bênção aos orixás para que a data marque um ciclo de paz e avanços, rumo à igualdade racial, para além do novembro negro.

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Olorum kolofé axé! (Deus te abençõe e te dê força)

Dicas de turismo

Parque Memorial Quilombo dos Palmares

ENDEREÇO: Estrada do Matadouro, 15.025, União dos Palmares (AL)

ENTRADA: Gratuita

HORÁRIO DE FUNCIONAMENTO: De segunda a sábado, das 8h às 17h

COMO CHEGAR: O ideal para quem não mora na região é hospedar-se em Maceió (AL) e, de lá, preferencialmente alugar um carro, pois é possível ir e voltar no mesmo dia. São 76,4 quilômetros de estrada de Maceió ao Parque, e a viagem dura cerca de 1h20. Para quem sai de Maceió, a melhor estratégia para chegar ao município de União dos Palmares é seguir pela BR 316 até o município de Satuba e, de lá, prosseguir pela BR 104. Para quem chega de outros Estados de carro, o melhor trajeto é pela BR 104

DICA PARA QUEM VAI DE CARRO: se for alugar um carro, dê preferência a um veículo que tenha tração nas quatro rodas, pois a Serra da Barriga tem estrada de terra e ladrilhos na subida, mas é possível também subir com veículos mais simples

COMO CONTRATAR UM GUIA: É possível aproveitar o passeio sem um guia, mas a riqueza histórica acaba ficando limitada. As páginas no Facebook Guia de Turismo de União dos Palmares (AL) e Serra da Barriga: Raiz do Quilombo têm um grupo de guias à disposição, inclusive incluindo Thais Patrícia Paulino (Dandara), que conduziu a reportagem do BOL. Preços: R$ 50 para uma única pessoa; R$ 60 para uma dupla; R$ 100 para um trio; grupos com 8 pessoas ou mais pagam em média R$ 10 por pessoa. O transporte, nesse caso, fica por conta do contratante. Importante: é preciso combinar antes, pois não há guias à disposição no Parque

PACOTE POR AGÊNCIA: Outra opção para quem deseja um guia e, ao mesmo tempo, quer facilitar a viagem, é contratar uma agência de viagem. A Edvan Turismo tem um pacote com transporte e guia, saindo de Maceió (AL). O passeio inclui parada, mas a alimentação fica por conta do contratante. Preços: carro com quatro lugares - R$ 500; carro com seis lugares - R$ 700; van a partir de 15 lugares - R$ 1.200. Em todos os casos, o motorista também é guia. Para valores individuais e inclusão em grupos, consulte a agência. Telefone: (82) 3327-9993

HOSPEDAGEM EM UNIÃO DOS PALMARES: Para quem prefere se hospedar em União dos Palmares (AL), os hotéis mais bem avaliados são o Quilombo Park Hotel e o Hotel Santa Maria Madalena

EVITE DIAS CHUVOSOS: O ideal é ir em dias sem chuva, para pegar uma condição razoável para a subida da Serra

ONDE COMER:

- O restaurante Baobá é excelente opção de comida afro-brasileira e fica no caminho da Serra da Barriga. No entanto, é preciso agendar as refeições pelos telefones (82) 9948-9227 ou (82) 9670-6678. O preço médio é de R$ 55 por pessoa. Endereço: Sitio Brejo dos Vieiras | Serra da Barriga, União dos Palmares (AL)

- Outra opção é o Restaurante Aquarius, no centro da cidade de União dos Palmares, com pratos nordestinos e aperitivos. O preço médio é de R$ 30 por pessoa. Endereço: R. Dr. Antônio Arecipo, 330, União dos Palmares (AL). Horários: aberto de terça a domingo, das 11h às 23h  

- A Don Martin Pizzaria serve rodízio de pizzas e massas por preços bem acessíves - em média, R$ 20 por pessoa. Atendimento excelente. Endereço: Tv. do Hospital, 21, União dos Palmares (AL). Horários: aberto todos os dias, das 18h às 23h40

MAIS INFORMAÇÕES:

Site do Parque Memorial Quilombo dos Palmares: http://serradabarriga.palmares.gov.br/

Site da Fundação Cultural Palmares, responsável pelo Parque: http://www.palmares.gov.br/

Representação da Fundação Palmares em Alagoas - Telefone: (82) 3221-7549 / E-mail: scp.alagoas@palmares.gov.br

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