Sob nova direção

Comunismo mudou o futebol na URSS, afetando até o nome de times associados a exército, polícia e operários

Felipe Pereira Do UOL, em São Petersburgo (Rússia)
PAVEL REBROV/REUTERS

Você conhece o estádio em que a Copa do Mundo da Rússia começou, na quinta-feira, como Arena Luzhniki. Ele é uma espécie de Maracanã soviético, com capacidade inicial superior a 100 mil pessoas, reformas nas últimas décadas e uma conta enorme a ser paga pelo governo russo por sua reforma total para o Mundial. Mas quando ele foi inaugurado, seu nome era Estádio Central Lenin. E essa influência soviética não aconteceu apenas no batismo de estádios.

O futebol do país da Copa tem uma influência ENORME do regime comunista. Seu clube mais popular, o CSKA, é batizado em homenagem ao exército. O Dínamo de Moscou foi financiado pela polícia secreta antecessora à KGB. O Zenit de São Petersburgo chegou a ter torcedores conhecidos como Stalinets. Por lá, você encontra times ligados a sindicatos, departamentos de polícia, forças armadas...

Até mesmo quem não tem ligação com os soviéticos foi nomeado em referência a eles: a história de como o Spartak de Moscou, dono do outro estádio da capital russa que será usado no Mundial, recebeu seu nome é curiosíssima e merece a leitura. Neste especial, contamos mais algumas histórias:

Uma breve história do futebol na URSS

Como no Brasil, o futebol chegou à Rússia pelos ingleses. Antes da revolução bolchevista, em 1917, era um esporte da classe média urbana e de estrangeiros. Com o começo do regime comunista, virou arma de propaganda. Era usado como instrumento para elevar a força nacional e, mais do que isso, serviu para aproximar do público instituições da máquina estatal. A polícia secreta NKVD (antecessora da KGB), o Exército e os sindicatos, por exemplo, alegravam o público com seus times.

Com isso, os clubes que existiam naquela época passaram por transformações. Primeiro, funcionavam como pequenas empresas, algo permitido por Lenin. Nessa época, mantiveram seus nomes originais. Quando Josef Stalin assumiu, as coisas mudaram. Neste novo cenário, os braços do Estado que estavam identificados com o ideal comunista se apropriaram dos clubes. Símbolos e nomes dos times foram alterados para que ficasse evidente a influência governamental.

O futebol se tornou profissional no país em 1936 e foi seguido da criação da Liga Soviética. Restrita a Rússia no primeiro momento, foi expandida para outras 14 repúblicas. O futebol se tornava parte da política de estado via soft power – capacidade de influenciar outros países por meios culturais ou ideológicos. A revolução que mudou o curso da história também mudou os rumos do futebol.

Grigory Dukor/Reuters Grigory Dukor/Reuters

O exército vermelho do CSKA Moscou

Olhe o apelido dos jogadores do CSKA de Moscou: “os soldados”. Já é uma pista de qual instituição adotou o clube depois da revolução bolchevique. Mas é só abrir a sigla CSKA para colocar fim em qualquer dúvida: Clube Central de Esportes do Exército. Não foi a única equipe na esfera de influência do Exército, mas é a de maior destaque. O clube já foi fundado com veia militar: sua a origem é uma espécie de associação esportiva do Exército Russo.

Com a revolução, o clube virou o braço esportivo oficial do Exército Vermelho, o mesmo que expulsou Hitler da URSS. Esta filiação foi oficializada em 1928, quando o clube foi rebatizado como CDKA: Casa Central do Exército Vermelho. O nome atual foi adotado na década de 1960.

O time representa um dos lados do maior clássico da Rússia. O outro é o Spartak. O CSKA também foi o primeiro do país a vencer uma competição europeia: a Copa da Uefa na temporada 2004/05. O clube teve no elenco brasileiros que chegaram à seleção, como Jô, Vágner Love, Dudu Cearense e Daniel Carvalho.

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O insolente Spartak Moscou

O Spartak já nasceu diferente. Seu primeiro nome foi Krasnaya Presnya, em homenagem ao bairro em que operários que moravam em cortiços jogavam bola - numa época em que futebol era coisa de elite. A região tinha grande índice de criminalidade e contrastava com as outras equipes, com origem nas forças armadas e na polícia.

Depois da revolução russa, era o único clube sem ligação estatal. A mudança de nome ocorreu em 1935 e foi inspirada em Espártaco, líder de uma revolta de escravos contra o Império Romano. O simbolismo era gritante. Os torcedores se tornaram brigões de carteirinha com o comportamento rebelde sendo parte da identidade deles. A indisciplina era um contraponto a disciplina militar.

A rivalidade com o time do Exército Vermelho era inevitável. Mas os resultados do Spartak são menos expressivos do que os do CSKA. Não há um troféu do tamanho da Copa da UEFA. Dentro da Rússia, há temporadas de sucesso com 10 taças do campeonato nacional, o último em 2016/17. Ibson e Luiz Adriano são brasileiros que defenderam o clube.

Pavel Golovkin/AP Pavel Golovkin/AP

Dinamo, o primeiro de muitos

O Dínamo de Moscou nasceu em 1923, por iniciativa de dois operários ingleses que trabalhavam na indústria têxtil com o nome de Orekhovo. Foi o primeiro time a ser apropriado pelos comunistas. O chefe da polícia secreta, órgão que daria origem a KGB, rebatizou a equipe como Dínamo. O dinheiro que financiava o clube vinha dos cofres do Ministério do Interior, provando a influência do Estado.

O uso do futebol como estratégia se mostrou um sucesso com o surgimento de outros Dínamo em cidades-chave da União Soviética, como Kiev, na Ucrânia, Minsk, na Bielo-Rússia, e Tbilisi, na Geórgia. Entre as honras do clube está ser a casa de Lev Yashin, goleiro que atuou nas décadas de 1950, 60 e 70 e que muitos consideram o maior da história. Foi ele quem estabeleceu o padrão para a posição no futebol moderno.

Os títulos da equipe estão concentrados enquanto o comunismo predominava. A última taça é da Copa da União Soviética em 1984. Foi o primeiro time da Rússia a fazer uma final de competição europeia, mas perdeu a decisão da Recopa de 1972 para o Glasgow Rangers.

Jorge Lascar/Creative Commons Jorge Lascar/Creative Commons

Influência além das fronteiras

O CSKA de Kiev é mais um time ligado ao Exército. Mas o da Ucrânia - quem bancava o clube era o Ministério da Defesa ucraniano. A diferença para seu irmão de Moscou é que o aporte de dinheiro de origem militar soviética criou uma revolução na estrutura esportiva local. Foram construídos estádio, ginásio, piscina coberta, estrutura de equitação e área para esportes de tiros. Tudo administrado pelas Forças Armadas ucranianas sob o chapéu do clube.

A história também exemplifica o que ocorreu com estruturas russas depois do colapso da União Soviética. Quando os russos deixaram a Ucrânia e o time perdeu seu financiamento, passou por uma série de mudanças.

Primeiro, perdeu o status de clube principal para um time fundado na década de 90 - e passou anos jogando apenas em divisões menores e chamado de CSKA B. Hoje, esse novo clube foi rebatizado como Arsenal de Kiev e o CSKA de Kiev original voltou à elite do Campeonato Ucraniano.

AP Photo/Ivan Sekretarev AP Photo/Ivan Sekretarev

Os fortões do Lokomotiv

Atual campeão russo, o Lokomotiv de Moscou surgiu engajado. Fundado em 1923, seu primeiro nome era Clube da Revolução de Outubro, referência ao mês em que começou o levante comandado por Lenin. O nome atual foi adotado em 1936 e remete às origens do clube: no ano seguinte a sua fundação, os trabalhadores do setor ferroviário de maior força física e com algum talento para o futebol foram incorporados ao elenco. Até hoje, o proprietário do clube é a empresa ferroviária.

Rafael Marchante/Reuters Rafael Marchante/Reuters

Zenit e a resistência aos alemães

Outro time com origem operária é o Zenit, fundado por trabalhadores da companhia siderúrgica de São Petersburgo. O futebol chegou à Rússia pelos portos da cidade e a história do time está conectada com as agitações políticas locais. Nos primeiros anos, os integrantes da equipe tinham o apelido de Stalinets, uma referência a Josef Stalin. Durante a 2ª Guerra, muitos deles lutaram durante o cerco alemão à cidade, que então se chamava Leningrado.

Até a adoção de Zenit, em 1936, o clube teve vários nomes. O batismo definitivo está ligado à criação do campeonato nacional. Três anos depois, a fábrica que deu origem ao time foi anexada ao Exército - junto com sua estrutura esportiva.

O time teve sucesso nos últimos anos. Conquistou o Campeonato Russo três vezes nesta década e levantou as taças da Copa da Uefa na temporada 2007/08 e da Supercopa Europeia em 2008. O atacante brasileiro Hulk jogou quatro anos por lá.

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Dinamo Tbilisi e a politicagem

A história do Dinamo Tbilisi, único representante da Geórgia no Campeonato Soviético, mostra como a política pode prejudicar uma equipe. O clube tinha como homem forte Lavrentiy Beria, que foi chefe do serviço secreto soviético e era georgiano como Josef Stalin. Quando Stalin morreu, em 1953, o time tinha chances de título, mas...

Como todo bom líder soviético, Nikita Kruchev chegou ao poder destruindo a reputação do antecessor. Por isso, manobrou para o Dinamo Tbilisi ser prejudicado (e torcedores não creditarem o título a uma herança de Stalin). Naquela campanha, a equipe conseguiu uma vitória crucial fora de casa por 2 a 1 sobre o Torpedo Moscou (clube ligado ao sindicato automobilístico) porque um pênalti não foi anotado para o adversário.

Manobras políticas de bastidores fizeram a apelação dos donos da casa ser aprovada e a partida foi remarcada. No novo jogo, o Dinamo levou 4 a 1. Naquela época, a vitória valia dois pontos, exatamente a diferença de entre o clube da Geórgia e o campeão daquele ano, o Spartak, na tabela final de classificação. Se o resultado fosse mantido, haveria uma partida extra.

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