Racismo é um problema, sim

Jogadores brasileiros contam como sofreram com racismo e xenofobia no futebol europeu

Carlos Padeiro Especial para o UOL, em São Paulo
Alex Caparros/Getty Images

Precisamos falar sobre racismo nos campos de futebol

Uma banana aparece no meio de um campo de futebol. Em outro, torcedores imitam macacos na arquibancada. Racismo e xenofobia estão presentes no futebol, principalmente para jogadores estrangeiros defendendo clubes europeus. E não há uma ação efetiva por parte das autoridades para eliminar esse mal.

A partir de agora, você vai conhecer algumas histórias de brasileiros importantes que sofreram no ambiente opressor dos estádios de futebol no Velho Continente. Algumas ficaram famosas, geraram discussão. Outras passaram longe de câmeras ou microfones e seus personagens sofreram em silêncio.

Os relatos são parte da tese de doutorado “Dentro e fora de outros gramados: histórias orais de vida de futebolistas brasileiros negros no continente europeu”, de Marcel Diego Tonini, pesquisador de história da Universidade de São Paulo (USP). Ele dedicou quase dez anos para estudar a discriminação no futebol. Como ele, achamos que histórias de discriminação no futebol, seja por cor ou nacionalidade, precisam ser conhecidas e debatidas.

O dia em que Ewerthon convenceu Eto'o a encarar o racismo

Genya Savilov/EuroFootball/Getty Images Genya Savilov/EuroFootball/Getty Images

"Eu tenho dó da criança que nasce negra na Ucrânia"

A gente visitou uma creche em um lugar humilde, como sempre. Todas as crianças eram loiras, exceto uma menininha. Ela era um pouquinho mais morena e tinha o cabelo crespo. Provavelmente era filha de um imigrante africano que foi para lá.

Nosso time tinha um atacante que se chamava Bangoura e era de Guiné. As crianças começaram a chamar a menininha de Bangoura. Tem necessidade isso? Não tem.

Esse racismo está inserido e falta a orientação de que existem outras culturas, outras etnias, outras pessoas em volta...

Muitas vezes, na Europa, falta um pouco disso. O mundo precisa saber que existem outras raças em outros países. Eu tenho dó de uma criança que nasce negra na Ucrânia. Não precisa nem nascer negra, mas que nasça com os traços negros.

Betão, zagueiro formado no Corinthians, sobre relato dos tempos em que jogou no Dynamo de Kiev, da Ucrânia, entre 2008 e 2015

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"Vai falar alemão quando Schumacher falar italiano"

Em um supermercado, minha esposa chamou uma funcionária e, em inglês, fez uma pergunta sobre um produto. A mulher virou e falou em alemão: “Ué, se você não fala a nossa língua, o que é que você está fazendo aqui no nosso país?”.

Eu escutei. Com educação, falei em alemão: “Desculpa, eu não entendi o que a senhora falou para a minha esposa”. Quando me olhou e percebeu quem era a pessoa que estava conversando com ela, pediu milhares de desculpas. Mas aí pesa o fato de eu ser uma pessoa conhecida, de ter um nome que eles respeitavam. Quando é uma pessoa comum, é complicado.

Pensei rápido e usei o Schumacher como exemplo. Pela Ferrari, ele não dava entrevista em italiano. Falava em alemão. Os italianos não exigiam que ele falasse italiano, nem o proibiram de conceder entrevista em alemão. Então, retruquei a funcionária: “A minha esposa só falará alemão quando o Schumacher falar italiano”. A minha resposta acabou com a conversa, porque tomei como exemplo um ídolo do país dela falando a língua nativa no país dos outros.

Amoroso, atacante campeão da Libertadores com o São Paulo, sobre a época em que defendia o Borussia Dortmund, entre 2001 e 2004

Paul Gilham/Getty Images Paul Gilham/Getty Images

"Eu adiava o banho até que todos tivessem saído"

Dois companheiros gostavam demais de me ouvir falar francês porque eu falava errado. Às vezes, esperavam eu ir ao vestiário para tomar banho. Assim que eu ia para o chuveiro, os dois iam logo em seguida e começavam a fazer perguntas só para ficarem dando risada.

Às vezes, eu fazia hora para ir tomar banho, porque eu já sabia que eles iriam me perturbar. Às vezes, ficava aguardando, inventava que tinha alguma coisa ou ia para a musculação, torcendo para eles irem embora. Tinha dia que funcionava, mas tinha dia que não funcionava. Eu chegava ao vestiário e, às vezes, não tinha ninguém. Ficava aliviado. Quando ia para o banho, chegavam os dois e começavam a conversar só para dar risada.

Eles acabaram se tornando meus dois amigos franceses. Eu levava tudo na brincadeira. Eles começavam a dar risada, e eu também dava junto com eles. Sabia que era brincadeira deles, que não tinha maldade. É lógico que a gente sabe quando tem maldade e quando não tem.

Cláudio Caçapa, zagueiro formado no Atlético-MG, sobre a época em que jogou no Lyon, entre 2001 e 2007

"A Roma é só para os brancos"

Grazia Neri/ALLSPORT Grazia Neri/ALLSPORT

"Ele chutava a bola em mim só porque eu era o novato"

No treino do Milan, o Albertini me viu passando e começou a chutar a bola em mim. Ele chutava a bola e eu olhava para ele. Olhei para o Serginho e ele continuou a chutar a bola em mim. Pensei: “Pô, qual que é desse cara?”. Eu olhava e não entendia. Na terceira vez, virei e chutei a bola nele. Aí ele fez um sinal de “Ah, tá legal, beleza!”

Fui conversar com o Serginho, brasileiro que estava há mais tempo no clube. E ele me disse que o Albertini estava me testando. Aí eu entendi: se você não se impõe, o cara vai pensar: “Ah, com esse aí...” E aí você já consegue, de certa forma, ganhar o respeito deles. E eles já começam a te tratar diferente. O italiano tem uma maneira de pensar que é diferente do que a gente pensa aqui no Brasil.

Roque Júnior, zagueiro da seleção campeã da Copa de 2002, sobre sua chegada ao Milan (ficou até 2007)

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A fúria por sons de macacos na Holanda

Era um jogo na Holanda, contra o PSV. No intervalo, o Henry chegou muito agitado. Eu ainda não falava inglês direito e perguntei ao [também brasileiro] Edu o que estava acontecendo. Ele falou que o Henry estava bravo porque a torcida estava fazendo som de macaco.

Eu estava tão ligado no jogo que nem percebi isso. Eu não estava preocupado se estavam me chamando de macaco, ou se estavam imitando o som de macaco. Para mim era indiferente, meu foco era o jogo. Se eu sofrer algum preconceito direto assim, não sei qual será minha reação. Acima de tudo, vou procurar ter sabedoria para lidar com a situação. A gente sabe que essas situações ainda existem, não só na Europa, mas também aqui no Brasil e em várias partes do mundo.

Gilberto Silva, pentacampeão com a seleção brasileira, sobre a época em jogava no Arsenal, entre 2002 e 2009

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"Júnior, negro sujo"

Lá na Itália, uma vez a torcida da Juventus botou uma faixa assim: “Junior, negro sujo! Sporco negro!”. Eu nem vi a faixa, para dizer a verdade. Só vim saber depois do final do jogo.

Um cara disse “Pô, você não viu a faixa? Tinha uma faixa lá na torcida da Juventus te xingando de negro sujo”. E eu respondi: “Vivo num país em que a miscigenação é total. Isso aí não me preocupa por nada”.

Não me senti mal por causa disso, não! Pelo contrário, ganhamos o jogo ainda. Que engraçado! Primeira vez depois de tantos anos que o Torino ganhava da Juventus. Então, teve um sabor melhor ainda. Brinquei: “Pô! Tomara que volte essa faixa! Que deu sorte, hein?!”.

Tem que tomar por esse lado. Foi a única que vivi isso na pele, mas superficialmente. Depois é que eu fui ver no jornal a faixa. Achava que isso jamais poderia acontecer.

Júnior Capacete, ídolo do Flamengo, sobre sua passagem pelo futebol da Itália, entre 1984 e 1987

1920: a origem de macaquitos

No Campeonato Sul-Americano de 1920 – torneio que hoje equivale à Copa América –, a seleção brasileira viajou ao Chile sem jogadores negros. Após o torneio, a delegação fez escala em Buenos Aires para um amistoso beneficente contra a Argentina. Foi quando o jornal local “Crítica” publicou uma crônica intitulada “Monos em Buenos Aires: um saludo a los ‘ilustres huespedes’” (Macacos em Buenos Aires: uma saudação aos ilustres hóspedes, em tradução livre).

O jornal usa o termo “macaquitos”, um hibridismo de macaqu (de macaquinho, em português) e ito (de monito, em espanhol). Acompanha o texto uma caricatura com macacos vestindo o uniforme da seleção brasileira. A delegação nacional foi à redação do jornal para interpelar os responsáveis, e sete jogadores se recusaram a entrar em campo.

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Ao animalizar, desumanizar e reduzir os brasileiros a um estereótipo, a caricatura não só reflete o racismo de quem a desenhou e de quem a usou como ilustração do texto, mas também encoraja o comportamento racista de outros. Feito em 1920, esse desenho introduziu um estigma acerca dos brasileiros, enquanto "macaquitos", que foi reproduzido ao longo do tempo no universo do futebol e fora dele

Marcel Tonini, historiador da USP e autor de "Dentro e fora de outros gramados: histórias orais de vida de futebolistas brasileiros negros no continente europeu"

Stuart Franklin/Getty Images Stuart Franklin/Getty Images

"É preciso ser sempre melhor que os europeus"

 O jogador brasileiro, quando se transfere para um time europeu, chega com a obrigação de ser o melhor do time. Pesam a tradição do futebol pentacampeão mundial de revelar craques e os altos salários pagos.

Essa responsabilidade chega acompanhada da inveja dos atletas locais e causa situações de boicote. O exemplo é do meia Paulo Sergio, campeão do mundo em 1994, que enfrentou a oposição dos companheiros quando foi para o Bayer Leverkusen, da Alemanha, em 1993. “Lembro que tinha um deles que, quando chegava perto de mim, virava e tocava a bola para outro. Não fazia isso porque era negro ou alguma coisa desse tipo, mas por se estrangeiro e estar ocupando o espaço deles”.

Na Ucrânia, Betão diz que ouviu de um treinador russo que os brasileiros que lá atuam têm a obrigação de serem melhores do que os locais porque têm salários mais altos. “Eles acham que todo brasileiro tem que ser igual ao Pelé, ao Ronaldinho. Tem que ter magia nas pernas”.

 O zagueiro acredita que ter aprendido o idioma local contribuiu para que fosse mais respeitado. A partir daí, percebeu como os jogadores locais questionavam, em comentários entre eles, os estrangeiros. “Depois que eu aprendi a falar russo, escutava comentários maldosos. Eles dizem: ‘pagou não sei quantos milhões e o cara não chuta uma bola no gol. Deixa ele fazer sozinho, então’. Começam a tirar sarro. Dão um passe mais forte para ver se a gente vai ter um bom domínio”. 

Discriminação também no Brasil

Quase todos os jogadores entrevistados na pesquisa da USP relataram casos de racismo ocorridos no futebol europeu. Muitos também falaram sobre o problema da discriminação no Brasil.

 Betão diz que ouviu expressões como “favelado” e “volta para o Carandiru” em partidas que foi disputar na região Sul do país – Carandiru era o nome popular da Casa de Detenção de São Paulo, que chegou a ser considerada o maior presídio da América Latina.

 “O preconceito existe no Brasil, e muito ainda. Falo por mim mesmo, principalmente quando joguei no Sul. Não é que só tenha lá, em São Paulo também já me xingaram de macaco. Existe até numa intensidade maior do que na Ucrânia, porque lá eu sentia o preconceito na maneira de olhar; aqui no Brasil já é mais na maneira de falar”, comenta o zagueiro de 33 anos, atualmente no Avaí.

"Fui comprar um carro de chinelo e bermuda. Ninguém me atendeu"

Lalo de Almeida/Folha Imagem Lalo de Almeida/Folha Imagem

"Minha mãe era tratada como escrava"

Eu nasci no dia 16 de junho de 1949 na favela da Cachoeira, Rio de Janeiro. Minha mãe foi doméstica durante muitos anos. A família que a trouxe para o Rio ainda pequena era de Três Corações. Ela era, mais ou menos, uma pequena escrava. Era analfabeta e nunca teve o direito de aprender a ler nem a escrever, o que era um absurdo! Uma coisa realmente animal. Eu não tinha noção disso, eu era muito garoto, mas aquilo me marcou.

Todas as vezes que eu ia visitar minha mãe, que trabalhava para uma família mineira tradicional em Copacabana, o porteiro dizia: “Entrada de negro e dos empregados é pela porta dos fundos”.

Eu reagia: “Vou entrar pela porta dos fundos porra nenhuma!”. Eu nem tinha noção do que era preconceito, exclusão, discriminação em relação a pele, entendeu? E isso já começou a ficar dentro de mim.

Paulo Cézar Caju, ex-jogador da seleção brasileira, sobre sua infância no RIo

REUTERS/Darren Staples REUTERS/Darren Staples

É possível acabar com o preconceito?

Nas histórias de 16 brasileiros negros que atuaram na Europa, o pesquisador Marcel Tonini ouviu uma série de reações contra o racismo. Alguns usaram a dedicação total ao trabalho para obter o reconhecimento europeu pelo suor. Outro grupo resistiu com dribles, gols e títulos e se “impôs pelo talento”, como diz Paulo Cézar Caju. Teve gente até usando ironia e ridicularizando o ato racista - Gilberto Silva, por exemplo, encarava os torcedores preconceituosos e mostrava a língua, ria e beijava a pele. Era a demonstração do orgulho de ser negro.

Falta, porém, uma união entre futebolistas negros em geral, não apenas brasileiros, para aprofundar a discussão, traçar objetivos coletivos e conclamar a opinião pública e as instituições competentes na luta antirracista, a fim de propor e exigir novas medidas e maneiras de enfrentamento.

 “O futebol pode ocupar um papel social importante na tentativa de dar um basta no racismo e ensinar novos valores. É preciso pensar de que maneira os jogadores podem contribuir diante desse problema. Eles têm visibilidade, têm espaço para atuar coletivamente. A partir do momento que eles tomarem uma posição, podem transformar a sociedade, porque são exemplos para muita gente”, diz o historiador da USP.

Tonini planeja transformar sua pesquisa em um livro. Enquanto isso, a tese (de 478 páginas) está disponível na biblioteca da USP. Clique aqui para acessar o trabalho na íntegra.

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