Saco cheio e bolso vazio

Jogar futebol tem efeito colateral para mulheres: salários baixos, assédio e preconceito até da família

Brunno Carvalho e Felipe Pereira Do UOL, em São Paulo
Jorge Araujo/Folhapress

Como funciona

O UOL Esporte lança o primeiro Pesquisão do futebol feminino no Brasil. Um questionário online foi enviado às atletas dos 16 clubes que disputarão a Série A do Campeonato Brasileiro feminino. As respostas recebidas de 62 jogadoras dão um panorama da modalidade no país.

As perguntas se referem a temas ligados ao esporte e de como as mulheres são tratadas ao se tornarem jogadoras profissionais de futebol. O levantamento não tem caráter estatístico e os resultados apresentados se referem somente ao universo pesquisado. Cabe ressaltar que o sistema usado faz todas as respostas serem anônimas. 

AP Photo/Marcio Jose Sanchez AP Photo/Marcio Jose Sanchez

Assédio dentro do próprio futebol

As dependências dos clubes não são um local seguro para as mulheres que jogam a Série A do Campeonato Brasileiro. O UOL Esporte perguntou se elas já foram assediadas por algum profissional de futebol e 25,8% das entrevistadas responderam que sim.

Isto significa que, em cada partida que começa, pelo menos 5 atletas em campo já se sentiram ofendidas ou atacadas dentro do ambiente de trabalho.

A repetição da prática também é reveladora: somente três jogadoras que afirmaram ter sofrido assédio disseram ter sido vítima em uma única ocasião. As demais relataram que ataques aconteceram mais vezes.

Um detalhe que chamou atenção foi a abstenção a esta pergunta. No total, 62 atletas participaram do Pesquisão, mas o número de respostas a este item foi pequeno, 39 jogadoras - mesmo com o caráter anônimo do levantamento.

 

Arte/UOL
Moacyr Lopes Junior/Folhapress Moacyr Lopes Junior/Folhapress

Preconceito dentro de casa

Ser jogadora de futebol significa conviver com o preconceito por causa da profissão escolhida. No total, 68,3% das atletas pesquisadas disseram que sofrem com o problema no cotidiano. Os comentários desagradáveis são feitos inclusive por pessoas que frequentam a casa das esportistas.

Entre as repostas, chama atenção o número alto de atletas que declararam já ter sentido preconceito de familiares ou amigos: 38,4%.

Se em casa é difícil, com a torcida a situação é ainda pior. Quando estão nos estádios, 73,1% das jogadoras admitem que escutam os xingamentos do público.

Arte/UOL

A palavra que machuca

Palavrão faz parte da cultura dos estádios brasileiros e no futebol feminino não é diferente. A questão no feminino é que justamente o xingamento mais usado pelos torcedores é justamente o que as jogadoras que participaram do Pesquisão mais se entristecem ao ouvir: "Sapatão".

No total, 20,5% das participantes da pesquisa usaram o termo para responder qual xingamento mais costumam ouvir.

UOL Esporte também perguntou qual a ofensa mais machuca ou entristece as atletas. Novamente, a resposta foi “sapatão”. E o problema só piora com os outros termos da lista. Depois da homofobia, aparece o racismo: “preta filha da puta” e “entojo preto” são exemplos de xingamentos ouvidos nos estádios brasileiros. Outra ofensa bastante mencionada quando perguntado qual xingamento mais machuca é "vagabunda" e suas variações, como "puta".

O que elas ouvem?

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Zanone Fraissat/FOLHAPRESS Zanone Fraissat/FOLHAPRESS

Machismo no futebol repete machismo da sociedade

As mulheres entrevistadas admitem que sofrem com xingamentos e assédio no futebol, mas não consideram esse ambiente pior do que o restante da sociedade. Isso ficou claro quando responderam “não” para a pergunta: Acha o futebol mais machista do que a sociedade?

Para as atletas, o ambiente dos clubes é apenas uma extensão do que acontece na sociedade. Somente quatro participantes afirmaram que o futebol é pior. Em contrapartida, houve quem declarasse que a situação é ainda pior fora do ambiente esportivo.

Acho que na sociedade tem mais machistas. Hoje, já mudou o pensamento de alguns em relação ao futebol feminino

Participante do Pesquisão

PEDRO ERNESTO GUERRA AZEVEDO/Santos PEDRO ERNESTO GUERRA AZEVEDO/Santos

Salários baixos, contratos curtos

A realidade do futebol feminino está longe dos salários milionários e contratos de patrocínio das estrelas masculinas. Quando a conversa é sobre remuneração, três em cada quatro mulheres informaram que recebem até dois salários mínimos por mês, R$ 1,8 mil.

Nenhuma atleta da Séria A do Campeonato Brasileiro feminino que respondeu ao Pesquisão UOL recebe mais de R$ 5,2 mil. A duração do contrato é outra questão que incomoda as jogadoras, porque quase sempre eles são curtos.

Entre todas as atletas que responderam ao Pesquisão, 72% assinam contrato com duração de até um ano. Ou seja, elas não sabem se estarão empregadas no ano seguinte.

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Divulgação/Foz Cataratas Divulgação/Foz Cataratas

Treino em campo NÃO oficial

O Campeonato Brasileiro feminino conta com sete times que disputam o Brasileirão masculino: Flamengo, Santos, Corinthians, Ponte Preta, Grêmio, Sport e Vitória. Mesmo assim, para 90% das mulheres entrevistadas pelo Pesquisão, a estrutura dos clubes que defendem está abaixo das condições de trabalho oferecidas aos homens em suas equipes.

No momento de explicar essa diferença, os relatos falam em "abismo" entre o masculino e o feminino. Houve até atleta afirmando que não tem campo com dimensões oficiais para os treinamentos. Elas também mencionaram diferenças de salário, de investimento, da qualidade dos profissionais da comissão técnica e a menor exposição de mídia.

A estrutura é totalmente diferente. Não temos os salários astronômicos do masculino e, claro, não temos o reconhecimento nem a mídia que deveria.

Participante do Pesquisão

CHRISTIAN RIZZI/FOZ CATARATAS CHRISTIAN RIZZI/FOZ CATARATAS

Quem contrata as jogadoras brasileiras?

O Brasil é um exportador em potencial de jogadoras de futebol. Mais da metade das atletas da elite nacional que responderam ao questionário receberam proposta para jogar em clubes do exterior – 52,5% delas. As ofertas de emprego, porém, nem sempre são para ganhar em euros ou para jogar nos grandes centros do futebol mundial.

Entre as mulheres que afirmaram ter recebido proposta, 22,5% contaram que clubes de Israel tentaram a contratação. Há ainda destinos difíceis de imaginar, como a Islândia ou a Sérvia.

O maior interessado nas brasileiras, porém, são os Estados Unidos. O país, dono de três Copas do Mundo e quatro ouros olímpicos, é responsável por 45% das propostas recebidas pelas jogadoras. Algumas citaram convites para atuar no futebol universitário. A intenção é oferecer a chance de jogar em alto nível e, ao mesmo tempo, garantir um diploma.

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Alex Caparros/Getty Images Alex Caparros/Getty Images

Barcelona supera a seleção brasileira

A camisa azul e grená do Barcelona é o sonho de consumo de 53,3% das jogadoras que atuam na Série A do futebol brasileiro que participaram do Pesquisão. É o maior percentual em perguntas formuladas para esta reportagem. O sonho de jogar no time de Messi é muito maior do que defender a seleção do país, por exemplo. Só 10% das atletas falou em defender seu país.

A admiração pelo Barcelona também apareceu no momento de escolher qual estádio mais gostariam de atuar. O Camp Nou foi citado por 17,5% das atletas e ficou muito à frente de estádios tradicionais do Brasil.

O Estádio do Barcelona só não superou o palco mais tradicional e cultuado do futebol brasileiro: o Maracanã foi mencionado como estádio dos sonhos por metade das jogadoras.

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Michael Chow-USA TODAY Sports Michael Chow-USA TODAY Sports

Copa > Olimpíadas

Assim como ocorre no futebol masculino, as jogadoras valorizam mais a conquista da Copa do Mundo do que a medalha de ouro olímpica. No total, 71,2% das atletas entrevistadas afirmaram que preferem ser campeãs mundiais.

E cabe ressaltar que a regra permite que o futebol feminino conte com as equipes principais nas Olimpíadas. Ou seja, a competição é disputada com força máxima. Bem diferente da versão masculina dos Jogos Olímpicos, que aceita apenas três atletas com mais de 23 anos.

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Sergio Lima/Folhapress Sergio Lima/Folhapress

O que elas querem? PROFISSIONALIZAÇÃO

O UOL Esporte perguntou qual mudança as jogadoras fariam no futebol brasileiro. Com três em cada quatro jogadoras recebendo até dois salários mínimos, o fator remuneração é a uma das alterações mais pedidas pelas atletas que participaram da pesquisa. Elas desejam, ainda, contratação com carteira assinada.

Mas todas sabem que os valores recebidos têm relação com o poder de atração de patrocínios e um maior interesse do público, por isso, desejam uma maior exposição da mídia para o esporte. As realizações das mudanças solicitadas resultariam em outra palavra bastante mencionada neste item: a profissionalização.

Para elas, os passos para elevar o futebol feminino  um nível semelhante ao do masculino é preciso profissionalismo e organização.

Arte/UOL

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