Um buraco na sala de troféus

Como política e corrupção tiraram do Palmeiras o direito de disputar o Mundial da Fifa no início dos anos 2000

Diego Salgado, José Edgar de Matos e Leandro Miranda Do UOL, em São Paulo
Arte/UOL

O Mundial que o Palmeiras não pôde disputar

"O Palmeiras não tem Mundial". A frase que hoje é repetida na tentativa de irritar os palmeirenses parte da ideia de que o clube, ao contrário de seus rivais, nunca chegou ao topo do planeta. O torcedor alviverde que quiser rebater a provocação nem precisa, se quiser, lembrar de 1951. Não fosse um arranjo político e um caso de corrupção global no esporte, ele poderia ter tido a chance de brigar diretamente com o maior rival pelo título mundial. 

Sabe o Mundial de 2000, organizado no Brasil e vencido pelo Corinthians no Maracanã, depois de uma decisão nos pênaltis contra o Vasco? Não faltam argumentos para dizer que era o Palmeiras, e não o clube cruzmaltino, que devia estar na disputa representando a América do Sul.

Excluído da primeira edição do Mundial chancelado pela Fifa por um acordo político, o Palmeiras, como legítimo campeão da Libertadores de 1999, deveria ter ido à edição seguinte, marcada para a Espanha. Times escolhidos e viagem marcada, a torcida estava pronta para embarcar quando o escândalo da ISL, agência de marketing ligada à FIfa, cancelou o evento e ruiu com as expectativas alviverdes.

O Palmeiras, desde então, nunca mais teve a chance de se colocar na disputa pelo planeta de novo e atura há anos a chacota dos rivais. É na história desse Mundial em branco, que o clube nunca pôde disputar, que o UOL Esporte mergulha a seguir:

Jefferson Rudy/Folhapress Jefferson Rudy/Folhapress

O contexto político que tirou o Palmeiras do Mundial de 2000

Quando o Mundial de 2000 começou, era o Palmeiras, campeão em 1999, o atual detentor do título da Libertadores, e não o Vasco, vencedor em 1998. O clube alviverde deveria, em tese, ter disputado o Mundial que acabou consagrando o Corinthians. Com o Brasil definido como país-sede da competição, no entanto, era interessante para a promoção do evento ter um time de São Paulo e outro do Rio de Janeiro.

Membro do comitê organizador e então futuro presidente da Traffic, empresa de marketing esportivo que foi a principal detentora dos direitos de transmissão do torneio, Júlio Mariz reconheceu ao UOL Esporte que o arranjo com um paulista e um carioca era comercialmente vantajoso, já que as partidas deveriam acontecer no Morumbi e no Maracanã.

Em outra frente, Ricardo Teixeira alimentava aspirações de sediar a Copa do Mundo de 2006 no Brasil. Para isso, usar o Mundial de Clubes de 2000 como um laboratório era importante – reforçando a necessidade de ter representantes do Rio e de São Paulo, para mobilizar as torcidas e encher os estádios.

Assim, o contexto político conspirou para que a Conmebol assegurasse o Vasco no Mundial antes mesmo de o Palmeiras decidir a final da Libertadores de 1999 contra o Deportivo Cali. Em julho de 2000, o Brasil desistiu oficialmente da candidatura para a Copa de 2006, que acabou acontecendo na Alemanha.

Ormuzd Alves/Folhapress Ormuzd Alves/Folhapress

Palmeiras ou Deportivo Cali? Quem vai ao Mundial é o Vasco

O Mundial de 2000 estava em fase de definição de participantes quando Palmeiras e Deportivo Cali se preparavam para a final da Libertadores de 1999. Em vez de esperar, a Conmebol decidiu, dois dias antes da decisão, que o Vasco a representaria na competição para anunciar o representante sul-americano no Mundial de 2000. A decisão apressada resolvia dois problemas.

Se os colombianos vencessem a final, criariam um impasse e o Mundial corria o risco de ter apenas um representante do país. A escolha pelo Vasco, por outro lado, além de garantir dois times da casa ainda indicava uma equipe de cada sede. O maior prejudicado era o Palmeiras, que só teria a chance de disputar em 2001. A notícia irritou o clube nos bastidores, mas o presidente palmeirense Mustafá Contursi não lutou para ficar com a vaga. O então presidente alviverde era muito próximo de Eurico Miranda, o vice-presidente do Vasco. Eles eram também vices do Clube dos Treze e dois dos principais pontos de apoio do poder de Ricardo Teixeira no futebol do país.

A recusa em aguardar mais dois dias para definir o campeão da Libertadores de 1999 como representante foi oposta à postura de outras confederações. O representante da Concacaf (Necaxa) só foi definido em outubro de 1999; já o da África (Raja Casablanca) só saiu em dezembro, um mês antes de o torneio no Brasil começar. Já Ricardo Teixeira – que havia dito que o representante do país-sede seria uma decisão unilateral da CBF – indicou logo em seguida o Corinthians, com o argumento de que estava seguindo o padrão definido pela Conmebol ao convidar o campeão brasileiro do ano anterior, 1998. Coincidentemente, o Corinthians também venceria o título nacional em 1999.

Mundial de 2000: Alguns foram indicados com base em 1998...

  • Vasco

    Indicado em junho de 1999 pela Conmebol, por ser o campeão da Libertadores de 1998. Dois dias depois do anúncio, o Palmeiras jogou a final da Libertadores de 1999 contra o Deportivo Cali, da Colômbia.

    Imagem: Reprodução
  • Corinthians

    Indicado também em junho de 1999 pela CBF, como representante do país-sede, por ser o campeão brasileiro de 1998. A confederação argumentou que seguiu o critério da Conmebol e usou 1998 como o ano-base para indicar o time.

    Imagem: Reprodução
  • Real Madrid (Espanha)

    Indicado pela Fifa por ser o campeão do Mundial Interclubes de 1998, quando venceu o Vasco no Japão, em dezembro.

    Imagem: Reprodução
  • Al-Nassr (Arábia Saudita)

    Indicado pela confederação asiática por vencer a Supercopa da Ásia em dezembro de 1998. A equipe saudita não venceu o principal torneio do continente, a Copa da Ásia, mas sim a Recopa, e depois garantiu a vaga na Supercopa contra o Pohang Steelers, da Coreia do Sul.

    Imagem: Reprodução

...e outros com base em 1999

  • Manchester United (Inglaterra)

    Indicado pela Uefa após vencer a Liga dos Campeões da Europa em junho de 1999. Não queria jogar o Mundial, mas sofreu pressão da federação inglesa para viajar, já que o país queria sediar a Copa de 2006.

    Imagem: Reprodução
  • South Melbourne (Austrália)

    Indicado pela confederação da Oceania após vencer o Campeonato de Clubes da Oceania em setembro de 1999. O torneio foi criado especificamente para classificar um time ao Mundial de 2000.

    Imagem: Reprodução
  • Necaxa (México)

    Indicado pela Concacaf após vencer a Copa dos Campeões local em outubro de 1999.

    Imagem: Reprodução
  • Raja Casablanca (Marrocos)

    Indicado pela confederação africana após vencer a Liga dos Campeões da África em dezembro de 1999.

    Imagem: Reprodução

As explicações oficiais

Já havíamos indicado o Vasco anteriormente. A partir de agora, sempre o campeão sul-americano vai jogar o Mundial da Fifa dois anos depois. Não adianta qualquer recurso. Mantivemos o que já havia sido indicado

Néstor Benítez

Néstor Benítez, diretor de comunicação da Conmebol, em junho de 1999, após o Palmeiras conquistar a Libertadores

Tenho até outubro para definir o clube que representará o Brasil. Quero analisar com calma. Não haverá um torneio específico para isso. Antecipo que não será o campeão brasileiro ou o campeão da Copa do Brasil. O critério é da CBF

Ricardo Teixeira

Ricardo Teixeira, presidente da CBF, dias antes de definir o Corinthians como representante do país-sede

Daniel Kfouri/Folha Imagem Daniel Kfouri/Folha Imagem

Mustafá aposta em 2001, racha o clube e até Felipão reclama

Com Vasco e Corinthians definidos, o Palmeiras recebeu a promessa de jogar a edição seguinte do Mundial, que seria realizada na Espanha, e preferiu não brigar pelo direito de jogar em 2000. Mustafá adotou internamente, para os conselheiros do clube, o discurso de que, em 2001, a competição estaria mais consolidada, seria mais lucrativa e que o time teria mais chances de ser campeão.

A postura não foi bem recebida por muitos grupos e causou um "racha". No dia seguinte à conquista do Corinthians no Mundial de 2000, superando justamente o Vasco na final, o presidente foi abordado no estacionamento do clube por um conselheiro que o acusava de ser o responsável pela festa da torcida rival, que varou a madrugada. Mustafá respondeu como sempre. "Fique tranquilo, iremos para a Espanha". 

Técnico que comandaria o Palmeiras caso o time tivesse jogado o Mundial de 2000, Luiz Felipe Scolari foi outro que recebeu a notícia com revolta. Em entrevista ao Jornal da Tarde, logo após o cancelamento da edição de 2001, o treinador expôs alguns dos bastidores do acordo: "Me disseram que o Palmeiras iria abrir mão porque teria assegurado a participação em 2001", disse ele, falando duro contra a decisão:

Fui contra desde o início. Estou me sentindo roubado

Ao UOL Esporte, Mustafá disse que os participantes de 2000 "foram definidos antes de o Palmeiras jogar a final da Libertadores" e ressaltou que o clube "fez valer sua importância para 2001".

Fala, Felipão

Era um assunto interno, na época. Eles me disseram que o Palmeiras iria abrir mão porque teria assegurado a participação no Mundial de 2001. O Vasco ficaria com a nossa vaga porque interessava para a realização do campeonato ter um time do Rio de Janeiro. A desculpa que convenceu os dirigentes foi que, se ganhássemos o Mundial do Japão, em dezembro de 1999, só teríamos um mês para desfrutá-lo, já que o Mundial do Rio seria em janeiro de 2000. E além do mais, a Fifa garantia que estaríamos no de 2001 na Europa. Fui contrário desde o início. Não se abre mão de um direito adquirido em nome de nada. Mas fui voto vencido. E sou homem que respeita a hierarquia. Quem manda no clube já havia aceitado

Luiz Felipe Scolari

Luiz Felipe Scolari, ex-treinador do Palmeiras, em entrevista ao Jornal da Tarde, após o Mundial de 2001 ser cancelado

O Mundial que nunca aconteceu

Patrícia Santos Patrícia Santos

A "segunda chance" que foi à falência

O cancelamento do Mundial de 2001 atingiu o Palmeiras como uma bomba. O clube, que havia aberto mão de disputar uma vaga em 2000, ficou sem nenhum dos pássaros na mão. Para entender por que a segunda edição do torneio da Fifa não aconteceu, é preciso relembrar a história da ISL, agência de marketing parceira da Fifa, cuja falência levou à não-realização daquele campeonato.

A ISL foi pioneira no ramo das grandes empresas de marketing esportivo e uma das principais responsáveis por enriquecer a Fifa nos anos 1980 e 1990, explorando o mercado dos direitos de transmissão de eventos de futebol. Em 2001, porém, pediu falência. Estava com um rombo de mais de US$ 300 milhões de dólares após anos de fraudes e más administrações.

Durante o processo de falência da empresa, surgiram documentos que indicavam pagamentos milionários de propina a dirigentes da Fifa. Os nomes dos cartolas foram mantidos em sigilo por anos. Em 2010, a BBC denunciou que João Havelange, ex-presidente da Fifa, e Ricardo Teixeira, então presidente da CBF, estavam entre os envolvidos.

Sem poder contar com o aporte da ISL, a Fifa anunciou em maio de 2001 – apenas dois meses antes de a bola rolar – que o Mundial havia sido adiado para 2003. Só que essa edição também acabou cancelada. O torneio de clubes da Fifa só seria revivido em 2005, quando o São Paulo foi campeão em cima do Liverpool.

"Um dos maiores dribles que já tomamos", diz historiador

A ausência nos Mundiais de 2000 e 2001 é até hoje uma das pedras no sapato do palmeirense. O peso e a frustração de não ter esses títulos incomodam tanto que os torcedores e conselheiros da época consultados pela reportagem do UOL Esporte não quiseram nem ter seus nomes mencionados.

Uma exceção foi Jota Christianini, historiador do Palmeiras. "Considero esse um dos maiores dribles que tomamos na história. E veio de fora do campo", afirma ele.

O Palmeiras saiu da história sem jogar nenhuma das edições, mas com uma indenização da ordem de 750 mil dólares recebida da Fifa. "Não nos satisfez de jeito nenhum", diz Mustafá. "Se aquela competição tivesse sido realizada, também seria uma competição charmosa, e não teria essa polêmica de quem deveria jogar em 2000".

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