
Toda semana dezenas de eventos de MMA acontecem no Brasil. Não há uma organização centralizada por federações unificadas, como acontece com outras artes marciais. É impossível saber quantos são ao certo. Existem diversas entidades concorrentes entre si. Elas chancelam eventos de MMA, cada uma com suas próprias regras e exigências.
Nessa miríade de eventos e organizações, existe de tudo. Alguns torneios são sofisticados e transmitidos por canais de TV; outros parecem mais circos mambembes. A maioria não tem médicos no local e não exige exame de sangue aos atletas. Além do UFC, raríssimos são os que pedem exame antidoping. Em alguns, não há nem ambulância para emergências.
Em geral, pagam pouco. Muitos lutadores sobem no octógono sem nem sequer saber quanto vão ganhar: o valor depende de quantos ingressos conseguirem vender. Mesmo assim, os eventos acontecem. Alguns recebem dinheiro público. Outros são frequentados por famílias e crianças.
Há anos, o Congresso nacional discute uma regulamentação para o MMA. Enquanto isso não acontece, o esporte vive em um limbo, alheio às leis brasileiras. Durante mais de um mês, o UOL Esporte entrevistou promotores, lutadores, técnicos e jornalistas especializados e começa a publicar uma série de reportagens sobre o mundo das lutas fora dos holofotes do UFC.
Na primeira reportagem, conversamos com os promotores que tentam, a sua maneira, colocar um pouco de ordem nesse caos.
No último dia 21 de outubro, Marcelo Brigadeiro, dono de um dos eventos mais importantes do Brasil, escreveu uma mensagem a seus 5 mil seguidores no Facebook. “Rapaziada deixa eu explicar uma coisa”, começou ele. “O ASPERA FC é MEU evento, portanto eu faço com o mesmo o que eu quiser.”
E em seguida: “Se eu quiser fazer lutas de MMA, muay thai, boxe, karatê, sambo, luta marajoara, boxe de anão do Zimbábue ou qualquer outra porra dentro do meu cage eu faço e pronto! Se me der na telha e eu quiser fazer jogo de purinha [sic], basquete ou briga de facão eu faço também. Não adianta Federação disso ou daquilo vir falar, a resposta será sempre a mesma: VAI TOMAR NO CU!”
A mensagem foi escrita depois que uma federação tentou vetar um evento que Brigadeiro queria organizar: uma luta de boxe dentro de um cage de MMA. “Eu não aceito que ninguém venha dizer como eu devo fazer as coisas”, explicou ele depois. “O dinheiro é meu, o evento é meu, a igreja é minha, tem que rezar pela minha cartilha.”
Ele admitiu que no começo do Aspera FC, casava lutas desequilibradas para beneficiar os atletas de sua equipe. “Hoje estamos no Esporte Interativo e não dá mais para fazer isso.” Brigadeiro diz que a falta de dinheiro e o amadorismo do MMA nacional são os problemas que o impedem de crescer.
“Tem muita briguinha de ego por aqui”, afirmou ele, antes de criticar duramente Wallid Ismail, o presidente de outro dos grandes eventos nacionais, o Jungle Fight. “É um ser desprezível, asqueroso, que humilha os atletas que lutam no Jungle, que está em decadência total.”
O amazonense Wallid Ismail expressou, obviamente, uma opinião diferente a respeito do Jungle Fight, torneio que comanda há 13 anos. “Aquele covarde [Marcelo Brigadeiro] diz que aquela merda do Aspera é o maior do Brasil. Olha os números e vê se o Jungle não é o maior”, disse ele. “Os caras falam mil abobrinhas!"
Em seguida enviou por e-mail à reportagem os números de audiência de seu torneio, transmitido pela Band. Depois telefonou e repetiu os mesmos números em viva voz. Alguns dias depois fez outra ligação só para ter certeza. “Desculpa ficar te incomodando”, disse ele. “Mas acho importante você entender os números. Você não concorda que somos maiores? Compare com os outros.”
Realmente, o Jungle Fight tem índices de audiência melhores. Wallid tem passado boa parte de seus dias fazendo lobby junto ao Congresso para articular a regulamentação do MMA. Quer criar uma comissão que seja mais rígida e exija melhores condições aos eventos Brasil afora, mas que não seja tão regida quanto a CABMMA, que chancela o UFC no Brasil.
Quando falamos da existência de eventos que não contam nem com médico nem com ambulâncias, ele foi enfático. “Um evento desse o dono tem que ir preso. Sem médico não dá, tem que ter no mínimo dois. Se não tiver condição de arcar com os custos, se não consegue fazer um evento seguro, então não faça.”
O lutador Marco Rodrigues “Babuíno” dos Santos, de 40 anos, conta que criou o Gold Fight para que os lutadores de sua academia tivessem onde competir. “Na época que comecei, os eventos maiores não abriam as portas para atletas jovens, então criei um evento para revelar talentos”, afirma ele. “Hoje trazemos atletas de todo o país para lutar, é um dos maiores eventos do Brasil.”
O paulista tenta diferenciar seu evento com a mistura de apresentações musicais e lutas no octógono. Em uma das edições recentes, houve um show do rapper Gabriel, o Pensador. Em relação a outros eventos de MMA, o promotor cultiva um discurso de paz e amor. “Os organizadores e as outras equipes e academias são nossos parceiros de trabalho, lutamos sempre uns com os outros nos eventos por aí e somos profissionais”, afirma.
“Quem tem coragem de organizar um evento no Brasil hoje é herói”, diz ele. “É muito caro, as empresas não se interessam em investir e se não dá público, rola um prejuízo difícil de pagar.” Babuíno diz que um evento como o Gold Fight, que está em sua oitava edição, não sai por menos de R$ 140 mil.
A maioria dos eventos de MMA de pequeno e médio porte no Brasil não conta com um médico de plantão no local das lutas. O mais comum é haver apenas uma ambulância e socorristas. O motivo é o custo, considerado proibitivo pelos organizadores. A diária de um médico fica entre R$ 200 e R$ 1000, dependendo do porte do evento.
Em um dos torneios a que fomos, na região metropolitana de São Paulo, houve três nocautes técnicos na noite. Um dos nocauteados ficou desmaiado por vários minutos e teve de ser socorrido pelo cutman, que não é médico. Quando o lutador recobrou a consciência, ficou mais meia hora recebendo oxigênio e não chegou a ir ao hospital.
Outro atleta ficou com o rosto completamente ensanguentado. A socorrista, muito nervosa, ia e voltava da ambulância à plateia para fazer curativos. Não havia ambulatório por perto. “Isso aqui não tá legal, mas não sou médica, como que vou avaliar se ele está bem ou não?”, reclamava ela.
Com muita insistência, conseguiu convencer o atleta a ir para a ambulância e ser encaminhado para o hospital público próximo do local. A ambulância não voltou mais, mesmo faltando duas lutas para acabar o evento. No último combate, nem a socorrista estava mais presente.
Em outro torneio, apenas um socorrista e uma enfermeira foram chamados para cuidar dos atletas. "Acho errado eles não terem contratado um médico", disse o socorrista. Quando o ombro de um dos lutadores deslocou no meio de uma luta, quem o colocou no lugar foi um dos juízes.
"No caso de uma lesão, a única pessoa autorizada a fazer um diagnóstico é o médico", afirma Artur Acha, médico que atende lutadores em eventos de MMA. "Um enfermeiro não pode fazer esse atendimento sob risco de incorrer no crime de exercício ilegal da profissão."
O presidente da CABMMA (Comissão Atlética Brasileira de Mixed Martial Arts), Rafael Favetti, evita criticar entidades rivais, mas afirma que “a CAB é diferente”. É a única que exige antidoping, além de uma ampla gama de exames mais precisos, como eletrocardiogramas e raio-x de tórax.
A CAB exige dos eventos que chancela uma equipe da Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem e pelo menos quatro médicos no local, além de ambulatório e duas ambulâncias tipo UTI móvel. Na prática, raríssimos eventos conseguem atender a esses padrões. O UFC, o maior torneio do mundo, é um deles.
As outras franquias param, no máximo, no exame de sangue para hepatites e HIV. Nenhuma faz antidoping. De acordo com organizadores, não haveria eventos no Brasil caso os padrões da CABMMA fossem obrigatórios. “Entendemos que estes custos são um investimento e não uma despesa”, diz Favetti. “Não ganhamos nenhum dinheiro com isso. Um atleta profissional deveria ter estes exames prontos sem mesmo ter uma luta marcada.”
Favetti, no entanto, afirma que não vê como negativo o modelo descentralizado e livre da organização do MMA brasileiro. “Quem organiza campeonatos são empresas privadas. Cabe ao fã escolher qual campeonato seguir. É um modelo calcado na representatividade, calcado na livre escolha do fã em seguir aquele campeonato que mais lhe agrada”, afirma ele. “Esse movimento de se organizar um campeonato fora do sistema tradicional é disruptivo e super interessante.”
Isso é algo muito difícil de controlar para o UFC, mas a comissão tem tido uma forte presença no Brasil em termos de regulamentação. Nós sempre vamos apoiar todo tipo de regulamentação. É perigoso quando um evento de MMA não-regulamentado, seja amador, profissional ou pirata, coloca os atletas em risco. O UFC sempre dá todo apoio ao desenvolvimento de regulamentações que ajude a saúde e a situação de lutadores. Sempre estamos juntos de comissões e federações que ajudam o cenário do MMA.
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Em 2013 o então deputado federal Acelino Popó de Freitas criou uma subcomissão na Câmara para elaborar uma lei que regulamentasse a prática e os eventos de MMA no Brasil. A ideia era ouvir lutadores, organizadores, juízes, médicos e juristas para chegar a um arcabouço legal que definisse algumas regras básicas, estrutura e exigências mínimas para a realização de eventos.
De lá para cá quatro anos se passaram. Popó não se reelegeu deputado, a subcomissão foi instaurada ou prorrogada quase uma dezena de vezes e até agora, nada de concreto aconteceu. O MMA não é considerado oficialmente um esporte no Brasil, ao contrário de outras artes marciais como jiu-jitsu, judô ou boxe.
A atividade é desenvolvida em um limbo jurídico entre o esporte e o entretenimento, e seus praticantes não possuem nenhum direito ou amparo legal.
“Nossa ideia não é interferir nas regras da luta, que já existem e são mais ou menos as mesmas em todo o mundo”, diz o deputado federal Fábio Mitidieri (PSD-SE), atual presidente da subcomissão. “O que queremos é criar as regras mínimas para a realização destes torneios: presença de ambulância e médicos, exames de sangue e outros, intervalo mínimo entre as lutas de um atleta.” Não há prazo nem previsão para a conclusão dos trabalhos.