Orgulho e preconceito

A história de como as mulheres da Rússia conquistaram o espaço, mas não escaparam do machismo soviético

Felipe Pereira Do UOL, em São Petersburgo (Rússia)
Divulgação

A Rússia é o centro do mundo do futebol por um mês. Tudo que acontecer por lá vai repercutir em outros países, despertar paixões, raivas e rivalidades. A disputa era outra, mas há 55 anos foi a mesma coisa: em 16 de junho de 1963, a então URSS (União Soviética) marcava mais um gol sobre os Estados Unidos na corrida espacial: colocava a primeira mulher no espaço.

Não há como negar que foi um feito. Mas a façanha envolveu dor, superação e PRECONCEITO. Nesta reportagem especial, você vai conhecer duas Valentinas. Mulheres de fibra, mas com temperamentos opostos. Uma extremamente qualificada, superou todas as rivais nos testes para ir ao espaço. Outra, que entrou em órbita.

Porque nem sempre basta ser melhor para vencer. Seja no futebol, ou na corrida espacial.

Colocando as Valentinas a prova

Uma das Valentinas tinha o sobrenome Ponomaryova. Ela engenheira de formação e se tornou cientista. O currículo era respeitável, mas ela era uma mulher independente, de personalidade forte e feminista.

A rival se chamava Valentina Tereshkova e tinha origem no campo. Frequentou a escola até os 16 anos. Não aceitou ficar sem estudar e terminou os estudos por correspondência. Era do tipo "quem quer arranja um jeito".

Para poderem sonhar com o espaço, as duas Valentinas tiveram meses de um treinamento. A parte teórica tinha aulas de engenharia espacial. Mas o complicado, mesmo, foram as exigências físicas.

Eram horas em centrífugas que chegavam a produzir força de 8G. Intercaladas por corridas exaustivas. A capacidade de concentração era avaliada em testes em caças MIG-15 supersônicos. Neles, era preciso repetir frases decoradas em solo. Houve ainda avaliações de personalidade, testes de reação ao isolamento e exames clínicos.

A Valentina que não voou

O sucesso da missão feminina não dependia de capacidade técnica dos cosmonautas. Porque, se dependesse, não havia dúvida sobre qual Valentina deveria ser a escolhida. Ponomaryova era mais instruída, como o diploma de engenharia dava a entender. Foi a melhor entre as cinco mulheres classificadas para o programa espacial soviético. Mais que isso: superou muitos homens que passavam pelo mesmo processo.

Só que seu gênio não agradava aos superiores. Os responsáveis pelo programa espacial reclamavam que, certa vez, ela entrou no alojamento dos cosmonautas homens. Os burocratas soviéticos não gostavam nem mesmo da forma que ela se vestia. Queriam ver sua cosmonauta com roupas mais femininas.

Anos depois da decisão de NÃO mandar Ponomaryova para o espaço, ela contou que Sergei Korolev, engenheiro-chefe do programa espacial soviético, sempre teve uma atitude negativa em relação a mulheres cosmonautas. Segundo ela, o chefe via uma missão feminina como um mal necessário para provar a superioridade soviética sobre os EUA.

E, se as pessoas do dia a dia tinham reservas ao comportamento independente da candidata, pior era a avaliação do Politburo, o comitê central do Partido Comunista: eles estavam preocupados muito mais com o rosto da cosmonauta e com os valores da mulher soviética (que seria uma nova e potente arma de propaganda) que ela carregava.

A personalidade perdeu

Além do treinamento técnico, as Valentinas foram submetidas a uma entrevista. E foi ela que definiu tudo. As perguntas não tinham nada a ver com o que estava sendo ensinado na Cidade das Estrelas, o nome do centro de treinamento do programa espacial soviético, que até hoje fica em uma cidadezinha a 40 km de Moscou. Quando Ponomaryova começou a falar, logo ficou claro que ela estava distante do ideal soviético de vida a serviço da nação. A outra Valentina, a Tereshkova, falou o que os chefões queriam ouvir.

Ponomaryova não escondeu a decepção quando soube que não voaria. Ela tinha certeza que iria ao espaço. O plano era fazer uma missão conjunta: a Vostok 5 partiria em 14 de junho e a Vostok 6 decolaria dois dias depois. Ambas comandadas pelas Valentinas. Mas o Partido Comunista não permitiu uma missão 100% feminina. Ainda descartou sua melhor cosmonauta por falta de apego ao regime.

Na véspera do lançamento, as cinco mulheres selecionadas para o programa espacial foram autorizadas a se sentar no posto de comando da nave por alguns minutos. Ponomaryova recusou. Durante o voo de Tereshkova, ela conversou com o engenheiro-chefe do programa espacial soviético na base de lançamento. Ouviu um conselho. “Não fique triste que não vai voar hoje. Voos mais importantes e mais complexos virão”. Não vieram: uma mulher só voltou ao espaço em em agosto de 1982. Também era soviética, mas não se chamava Valentina: a eleita foi Svetlana Savitskaya.

A Valentina que foi ao espaço

Ainda que as planilhas mostrassem desempenhos diferentes, os soviéticos tinham duas cosmonautas com qualificação suficiente para cumprir a missão. O qualificação suficiente da frase anterior está em destaque por um motivo: a verdade é que a nave, que levava somente uma pessoa, viajava sozinha. A tarefa dos cosmonauta, fosse homem ou mulhere, era esperar a reentrada na atmosfera para se ejetar e controlar a descida de paraquedas. Sendo assim, escolheram a Valentina que venderia melhor as qualidades do regime.

Tereshkova era filha de um motorista de trator que trabalhava em fazenda coletiva. Quando ela estava com dois anos, o pai foi morto lutando pelo país na 2ª Guerra Mundial. A mãe era funcionária em uma indústria têxtil e foi acompanhada da filha na linha de produção quando Valentina completou 16 anos.

A garota ainda se inscreveria na juventude comunista e, em seguida, entraria para o Partido Comunista. Os burocratas tinham o produto dos sonhos: uma mulher engajada e filha de proletários. Eles provariam que na URSS mesmo alguém de origem humilde podia chegar ao espaço.

O voo conturbado da escolhida

Ao assumir a cadeira na nave, Tereshkova se martirizou porque esqueceu a escova de dentes. A missão estava prevista para durar 24 horas. Mas logo o bafo virou a menor das preocupações: um erro no sistema de orientação da nave chamou a atenção.

A cada órbita, a nave se afastava da atmosfera ao invés de se aproximar. A morte foi evitada porque a equipe de terra conseguiu reprogramar o sistema após 48 horas. Tereshkova ficou dois dias, 23 horas e 12 minutos no espaço. Era mais que a soma de todas as missões americanas naquela época e três vezes mais tempo no espaço do que o previsto.

Num livro de memórias, ela escreveu que duvidava que sobreviveria. Durante o voo, teve nâuseas, vômitos e quase não comeu. Desidratada e exausta, Tereshkova acreditava que não teria forças para nadar até a borda na descida - a cápsula foi em direção a um lago. Se safou da água aproveitando uma corrente forte de vento.

William Anders/Nasa William Anders/Nasa

Contatos imediatos no Cazaquistão

Ela pousou na região de Altai, no Cazaquistão. Em entrevista ao Museu de Ciência de Londres, em 2015 a cosmonauta se divertiu ao contar como foi a descida.

"Os campos são inacabáveis, pode se ver longe no horizonte. As pessoas me viram e se aproximaram. Foram na direção das cordas. Eu disse: ‘Deixe as cordas’. Tinha uma pistola e saquei. Carregava uma arma porque podia descer numa área com animais selvagens. As mulheres que estavam lá falaram: ‘Deixa disso! Queremos saber se você está com fome'. Eu aceitei leite e ofereci comida espacial. Tinha que retribuir.”

Mesmo experimentada com o paraquedas, a queda de Tereshkova foi brusca. O vento que ajudou a fugir do lago atrapalhou o pouso. A cosmonauta bateu o nariz no capacete e ele ficou roxo. As primeiras apresentações públicas foram a base de muita maquiagem.

Bronca da mãe na frente do líder soviético

O feito rendeu a Tereshkova  as duas maiores condecorações da URSS: Herói da União Soviética e Ordem de Lenin. Mas ela passou por um constrangimento em frente ao líder do regime soviético da época, Nikita Kruchev.

“Uma manhã, eu disse tchau para minha mãe. Não pude contar a ela ou a qualquer amigo para onde estava indo. Havia assinado um contrato de confidencialidade. Não contei que fui selecionada [para o programa espacial em 1962]. Eu voei e ninguém, nem minha mãe, sabia.

A vizinha chegou lá em casa e disse: ‘Elena, sua filha está no espaço’. Ela respondeu que a vizinha deveria estar sonhando porque eu era paraquedista. Quando estava no treinamento, mandei 10 cartas e perguntei aos meus amigos o que escrever. Minha mãe leu as cartas descrevendo como estavam sendo meus treinamentos de paraquedismo.

Não havia TV na nossa casa. A vizinha disse: ‘Venha aqui e veja Valentina no espaço’. Foi assim que ela descobriu. Quando nos encontramos em Moscou, Kruchev começou a falar e eu ouvi minha mãe ralhar: ‘Ela me enganou. ME ENGANOU’. Kruchev quis saber como e ouviu a história do paraquedismo. Ele pediu para me perdoar porque no final pousei usando um paraquedas".

Quinn Rooney/Getty Images Quinn Rooney/Getty Images

Por onde andam as Valentinas

Valentina Ponomoryova seguiu no programa espacial até sua dissolução em 1969. Abandonado o sonho de ir ao espaço, continuou carreira como cientista e contribuiu com os avanços soviéticos na área espacial. Sua vida foi sem holofotes e muitos russos não sabem de sua existência. Como decidiu que não dá mais entrevistas por causa dos 84 anos, nada leva a crer que ganhará algum tipo de reconhecimento.

Valentina Tereshkova é uma heroína nacional até os dias de hoje. É convidada de honra para palestras mundo afora e seu nome aparece nos livros russos de história. Ela ocupou postos importantes na administração estatal, foi eleita deputada em 2011 e fizeram até matrioska (aquela boneca tradicional russa) em sua homenagem. Um exemplo de seu tamanho é que foi porta-bandeira do símbolo olímpico nas Olimpíadas de Inverno em Sochi.

A história das duas Valentinas se cruzou porque os soviéticos queriam saber como se comportaria o organismo feminino no espaço. Havia dúvidas se suportaria. Recentemente, a Nasa fez uma pesquisa sobre qual a equipe ideal em uma missão a marte. Chegou a conclusão que deve ser formada por mulheres. Elas consomem menos calorias e suportam melhor o isolamento.

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