Olimpíada na Lama

Seis meses depois do término dos Jogos Olímpicos de 2016, Rio de Janeiro agoniza e sofre para pagar a conta

Aiuri Rebello, Guilherme Costa, Pedro Ivo Almeida e Rodrigo Mattos
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Como o plano de legado virou uma enorme lista de frustrações

Em 2008, o Rio de Janeiro e o Brasil começaram estudos para traçar o legado esportivo da Olimpíada-2016 e incluíram planos ambiciosos na candidatura carioca para o COI. Em 2017, todos os principais equipamentos olímpicos estão fechados, com destino incerto seis meses depois da realização dos Jogos. O período entre essas duas realidades, um total de oito anos, foi marcado por promessas, criação de comitês, grupos e autarquias, cobranças de órgãos de fiscalização, planos anunciados e destruídos.

Na candidatura do Rio-2016, estava descrito: “Os projetos mais importantes de legado são os programas e instalações do Centro Olímpico de Treinamento (COT)”, que aproveitaria as instalações do Parque Olímpico. Até o meio de 2015, apesar de três órgãos criados para estabelecer esse planejamento, sequer havia um plano no papel.

A partir daí, a prefeitura do Rio assumiu a responsabilidade, e... seus dois planos fracassaram. Então, no final de 2016, entregou o local ao governo federal que sequer sabe quanto vai gastar. A transformação da Arena de Handebol em escola, símbolo do legado, não tem prazo, nem dinheiro definido para ocorrer, diz a prefeitura. O que se vê são os equipamentos se deteriorando.

O COI, que se encantara com as promessas de legado na América do Sul, já está preocupado e procurou o Comitê Rio-2016 para descobrir o que está acontecendo no Parque Olímpico após as fotos do abandono terem se espalhado pela imprensa internacional.  Mas não haverá uma atuação de cobrança como na organização dos Jogos. E, sem pressão, autoridades públicas já disseram que não veem nada demais em deixar as instalações fechadas por um ano.

Abandonado, Parque Olímpico tem apenas um evento esportivo depois dos Jogos

Joia da coroa no projeto do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas, o Parque Olímpico da Barra da Tijuca hoje é o maior exemplo de erros e exageros cometidos no processo de preparação do local para receber o evento esportivo. Construído ao custo de R$ 3 bilhões, o aparato tem sinais claros de abandono e recebeu apenas um evento esportivo após o término dos Jogos.

O investimento em manutenção do Parque Olímpico é alto: são R$ 3,5 milhões de custo de energia em 2017, por exemplo, e o local tem demandas como a necessidade de o ar condicionado do Velódromo ficar ligado durante 24 horas por dia. No entanto, esse montante ainda não teve qualquer tipo de retorno, o que contrasta com o discurso oficial de todas as autoridades envolvidas nos Jogos. Na véspera da abertura da Rio-2016, por exemplo, o prefeito Eduardo Paes disse que um dos legados seria a “inexistência de elefantes brancos”.

O único evento esportivo do Parque até o momento foi um desafio de vôlei de praia realizado no Centro de Tênis. O aparato, que inicialmente seria entregue à CBT (Confederação Brasileira de Tênis), hoje está sem rumo. A entidade esportiva, envolvida em grave crise financeira, sofre para manter as contas em dia e tirou o pé na negociação.

O mesmo vale para outras arenas. As Cariocas 1, 2 e 3, que deveriam abrigar centros de treinamento, estão fechadas desde os Jogos. Os estádios que receberam handebol e natação, provisórios, ainda não têm sequer data para desmontagem. Ao menos duas confederações ouvidas pelo UOL Esporte disseram que tentaram realizar eventos no Parque, mas esbarraram na dificuldade de “sequer saber com quem conversar”. Enquanto isso, lixo, mato e abandono tomam conta do que deveria ser um dos maiores legados da Rio-2016.

"Crianças e adultos têm uma memória positiva sobre os Jogos"

Mario Andrada, Diretor-Executivo de Comunicação da Rio-2016, diz também que legado esportivo sempre foi considerado secundário

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Golfe, legado que funciona, é deficitário e vira problema

Entre as estruturas esportivas da Rio-2016, o campo de golfe é um caso raro de sucesso. O aparato funciona e está aberto ao público - o preço de uma partida de 18 buracos varia de R$ 250 a R$ 280. Contudo, isso não quer dizer que esteja longe de problemas. A Progolf, responsável pela área de 389 mil metros quadrados, cobra dívida de R$ 1,125 milhão por quatro meses de manutenção.

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Comitê organizador ainda tem dívida de mais de R$ 200 mi

A dívida também é um legado dos Jogos Olímpicos. O Comitê Organizador Rio-2016 tem déficit que atualmente supera R$ 200 milhões, com pelo menos 600 credores, e a expectativa é que não seja quitada antes de março. Em meio a isso, convive com protestos: em outubro, pessoas que haviam trabalhado com limpeza e manutenção de instalações olímpicas foram à porta do órgão para reclamar.

Julio Cesar Guimaraes/UOL Julio Cesar Guimaraes/UOL

Drama nos Jogos, Vila Olímpica vende menos de 10% das unidades

A delegação australiana causou polêmica quando exigiu adequações para poder ficar na Vila Olímpica da Rio-2016. Depois, o mercado também rejeitou o condomínio com 31 prédios. Apenas 20 apartamentos foram vendidos desde os Jogos - de um total de 3.064 unidades, a lista de comercializados não chega a 300. O preço de cada imóvel já caiu mais de R$ 200 mil.

Existe um período de adaptação entre o 'modo Jogos' e o 'modo legado'. Neste momento ainda ocorrem obras no Parque Olímpico e adaptações de passagem de um estágio para outro

Leonardo Picciani (PMDB), ministro do Esporte

Legado para crianças também fica pelo caminho

Uma das promessas do governo federal ao garantir a Olimpíada foi disseminar a prática esportiva e da atividade esportiva com o evento. Havia a ideia de aumentar o número de crianças em programas esportivos, e do uso de instalações para atendê-las. Nada disso aconteceu.

Pelo caderno de legados do governo federal, o objetivo era tornar universal no Rio de Janeiro o Segundo Tempo, programa em que crianças matriculadas em escolas praticam esportes. A meta era chegar a 1 milhão de crianças no Estado. Pesquisa do UOL Esporte mostrou que nos convênios ativos há apenas 166 mil delas atendidas no Rio de Janeiro.

Outro projeto era a utilização de vilas olímpicas da prefeitura carioca para que essas crianças e jovens. O equipamento da Gamboa, centro do Rio de Janeiro, tinha previsão de melhorias para se tornar uma referência. Mas suas atividades estão comprometidas por renegociação do contrato do município com a organização social que cuidava do local.

Pedro Ivo Almeida / UOL Esporte Pedro Ivo Almeida / UOL Esporte

Vila Autódromo: a disputa que não acaba

A área do Parque Olímpico da Barra da Tijuca está abandonada. Por lá, existem poucos homens da Guarda Municipal e sobra entulho espalhado. Um componente humano, no entanto, segue na região desde o período pré-olímpico: os moradores da Vila Autódromo. Luiza de Oliveira vive com o filho, o marido e um tio na única casa original que resta da comunidade. Dali, aguarda solução de um impasse na Justiça para ocupar uma das 20 construções da nova Vila – entregue dias antes dos Jogos.

A resiliente família questiona as condições da casa reservada no local, mas a preocupação vai além: a Vila construída para as pouco mais de 100 pessoas que não aceitaram as remoções promovidas pela prefeitura ainda é um esboço – “muito mal feito”, como ressalta Luiza – do projeto original.

No plano inicial de urbanização da prefeitura, assinado por Eduardo Paes (PMDB) em março de 2016, a nova Vila Autódromo teria associação de moradores, creche, escola [com a estrutura da Arena de Handebol], praça, centro cultural, área verde, quadra poliesportiva e um pequeno parque. “Não tem nada, e eu nem sei quando vai ter. O que tem é uma rua, que tivemos que fechar para servir como área de lazer para as crianças”, destaca Nidivaldo Oliveira, um dos líderes locais.

A obra deveria ser iniciada em meados de novembro, dois meses após o fim dos Jogos Paraolímpicos. “Fomos à prefeitura, e o máximo que conseguimos foi uma promessa de reunião com o [Marcelo] Crivella para depois do Carnaval. O tempo passa e não temos qualquer serviço básico”, completou Nidivaldo. Enquanto isso, as famílias que ocupavam a área contígua ao Parque Olímpico e não aceitaram abrir mão de seus imóveis seguem esperando.

As Olimpíadas acabaram, mas a nossa luta não. A verdade é que os homens do poder não ligam para pobre. Eles queriam limpar a área, não interessa como, a qual custo. Os Jogos passaram, o que ficou? Algumas famílias lutando por dignidade. Estamos brigando só pelo que é nosso. Não tem legado, não tem nada. Uma rotina estabelecida desde 2014: promessas, promessas, promessas, e nada concreto. Não temos a tal escola, o parque para as crianças, as quadras, nem a associação de moradores. E ninguém lembrará de nós"

Nidivaldo Oliveira, morador da Vila Autódromo

Pedro Ivo Almeida / UOL Esporte Pedro Ivo Almeida / UOL Esporte

Parque Radical de Deodoro fecha, e comerciantes sofrem

Não é preciso entrar no Parque Radical para notar que o legado não existe em Deodoro. Dentro da instalação, nenhuma atividade. Do lado de fora, nenhum movimento no comércio que seria beneficiado com o complexo construído na zona oeste da cidade. Em uma rápida caminhada pela rua Tenente Serafim é possível checar a realidade distante daquela prometida pelos governantes na época da inauguração do local: à direita, portões de acesso ao parque fechados; à esquerda, apenas dois dos quase 20 estabelecimentos permanecem em funcionamento.

“O povo já desistiu, não tem como se manter. Não tem público. Fecharam o parque no dia 18 de dezembro e não falaram mais nada. Prometeram eventos, movimento, até Réveillon, segundo o Eduardo Paes [prefeito à época], mas a verdade é que abandonaram tudo”, disse Shirlei dos Santos, que tem um ponto de comércio exatamente em frente à entrada do Parque.

Os números do não escondem a queda radical: as vendas recuaram quase 90% sem o funcionamento do parque, que deveria ser um dos legados do Parque Olímpico construído no local. “Quem aguenta? Ainda estou aqui porque tem minha casa junto”, comentou a comerciante.

Cheguei a fazer R$ 2 mil, R$ 2,5 mil aqui em semana de movimento. Hoje está difícil de vender R$ 300. A gente acreditou, se preparou, montou uma estrutura. Do nada vieram aqui e fecharam o Parque. É assim que eles iriam movimentar o comércio da região?

Shirlei dos Santos, comerciante de Deodoro

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As contas estão no escuro, seis meses depois

Os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro foram realizados em agosto de 2016, mas até hoje, seis meses depois, nem o governo e nem os brasileiros sabem ao certo o valor da conta. A APO (Autoridade Pública Olímpica), espécie de agência do governo criada para ajudar a organizar os preparativos para o megaevento, ainda não finalizou a matriz de responsabilidades. É nesse documento que serão consolidados todos os gastos do poder público federal, estadual, municipal e investimentos privados. De acordo com o Ministério do Esporte, por meio de sua assessoria de imprensa, a conta deve ser fechada em cerca de duas semanas. Enquanto isso, o que temos são previsões e balanços parciais.

Quando a primeira versão da matriz foi lançada, ainda em 2014 e sem todos os orçamentos, já previa-se gastar R$ 5,6 bilhões com as instalações olímpicas. Na última revisão apresentada, já em meio aos jogos em agosto de 2016, o custo estimado havia subido para R$ 8 bilhões. Somados custos operacionais e outros agregados que não estão na matriz, como as obras do legado de mobilidade urbana, o valor pode chegar a mais de R$ 40 bilhões.

O valor diz respeito apenas às instalações esportivas e de infraestrutura necessária para elas, como obras viárias e na rede elétrica. Incluem O Parque e a Vila Olímpica e o campo de golfe da Barra, Complexo de Deodoro, arena de vôlei na praia de Copacabana, o centro olímpico montado no RioCentro e mais algumas instalações provisórias. Segundo o governo, cerca de 60% dos investimentos seriam da iniciativa privada. Nos balanços parciais da matriz, esse número está próximo dos 50%. Os valores não incluem os gastos operacionais como combustível, luz, hospedagem, alimentação, diárias e outros que também foram feitos e não estão na consolidação final das contas.

O balanço oficial dos Jogos Panamericanos do Rio de Janeiro, em 2007, foi divulgado quatro anos e meio depois. Custou cerca de R$ 3 bilhões, pouco mais do triplo do orçamento original. Seu legado incluiu um velódromo de R$ 14 milhões que teve de ser demolido pois não atendia aos padrões olímpicos e não poderia ser aproveitado em 2016. Deixou também para a cidade o estádio Nilton Santos, mais conhecido como Engenhão, que teve de ser interditado em 2013 por risco de desabamento das estruturas da cobertura. Foi reaberto em 2015 após uma reforma de R$ 100 milhões – Mais R$ 50 milhões foram gastos para receber as provas de atletismo da Olimpíada. A construção havia custado R$ 380 milhões.

Governo não tem um plano completo sobre o legado

Em dezembro, depois que reportagens na imprensa nacional mostraram o estado de abandono que o Parque Olímpico da Barra se encontrava, o Ministério do Esporte anunciou várias providências. Com isso, escancarou que, pelo menos até então, não havia um planejamento sólido para o chamado legado olímpico.

O ministro Leonardo Picciani assinou três acordo de cooperação: com o COB (Comitê Olímpíco Brasileiro), com o CPB (Comitê Paralímpico Brasileiro) e com a CBC (Confederação Brasileira de Clubes). Neles, o governo e as entidades se comprometem a elaborar um estudo para decidir como usar as instalações esportivas. Outro acordo de cooperação foi assinado com as Forças Armadas para decidir o que fazer com o Complexo Olímpico de Deodoro. Ou seja, não há nenhum plano concreto de utilização para os espaços até hoje. O Ministério do Esporte assumiu a responsabilidade pelo velódromo, Centro Olímpico de Tênis e Arenas Cariocas 1 e 2. O restante das instalações fica a cargo da Prefeitura, que também não anunciou um calendário de atividades para os espaços.

Enquanto isso, a pasta do Esporte afirma que separou R$ 45 milhões para gastar com o Parque Olímpico da Barra em 2017. Em Deodoro, o custo anual de manutenção das instalações está estimado em R$ 36 milhões anuais. Por outro lado, sem dinheiro, o governo cortou na semana passada R$ 13,3 milhões do Ministério do Esporte, inclusive da verba para manutenção de equipamentos esportivos. De acordo com a assessoria do ministério, o dinheiro não será retirado dos projetos olímpicos e sim das emendas parlamentares dos deputados federais.

Sobre calendários e próximas competições a serem sediadas no Parque Olímpico da Barra, o Ministério do Esporte afirma que haverá no velódromo, no mês de maio, o Campeonato Estadual de Ciclismo de Pista do Rio de Janeiro. “Possivelmente teremos futsal, vôlei de quadra, na arena do tênis, e outros esportes de areia, como beach soccer, beach tennis, beach rugby, além do vôlei de praia”, afirmou o ministro na assinatura dos acordos.

Reprodução/Globonews Reprodução/Globonews

Eike: "herói da Olimpíada" hoje está preso

Dia 5 de agosto de 2016, estádio do Maracanã, Rio de Janeiro. Todo mundo que “é alguém” no Brasil apareceu para ver e ser visto. Entre jornalistas, celebridades, músicos, atores, políticos, empresários e atletas, o público fazia festa na bela e surpreendente cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos Rio-2016. Em meio ao oba-oba oficial, porém, uma ausência chamou a atenção: Eike Batista não estava lá. Logo ele, que em 2009 havia emprestado seu jatinho particular para o então governador carioca e hoje detento Sérgio Cabral (PMDB-RJ) ir a Copenhague, na Dinamarca, ouvir a confirmação do Rio como sede. Chegou a doar R$ 22 milhões de suas empresas para a campanha, estimada em R$ 128 milhões. Foi um dos principais garotos-propaganda da candidatura brasileira a sede do megaevento esportivo internacional.

Mais que isso, o empresário tinha interesses milionários nos jogos. Naquela época, ainda bilionário, havia comprado o histórico Hotel da Glória e a concessão da marina de mesmo nome ainda em 2009. Negócios nos quais desembolsou cerca de R$ 120 milhões. No hotel, pretendia hospedar os turistas da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016. Na marina, que recebeu as competições olímpicas de vela, pretendia construir lojas, restaurantes e casas de shows além de revitalizar a orla.

Nada saiu como o esperado para ele. A partir de 2013 seu império empresarial começou a ruir em meio a falta de resultados para os investidores, falências e prejuízos múltiplos. Neste mesmo ano desfez-se da Marina e, em 2014, do hotel parcialmente demolido. Em 2013 ainda montou um time de vôlei com jogadores da seleção olímpica mas, em meio à ruína, atrasou salário de jogadores e abandonou a equipe antes do fim daquela temporada. A pá de cal nos projetos olímpicos o empresário foi em 2015, quando ele vendeu para a sócia Odebrecht os 5% de participação que tinha na concessão do Maracanã.

Sete anos depois, o antes bilionário mais rico do país passou a ser personagem de uma trama político-criminal. Não apareceu na abertura ou no encerramento, não carregou a tocha da Rio-2016 e foi preso no fim de janeiro, meses depois da Rio-2016, ao voltar de viagem a Nova York (Estados Unidos). Terminou enviado ao Complexo Penitenciário de Bangu, onde está atualmente de maneira preventiva, aguardando julgamento.

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