A falsa cura de Gaúcho

Mulher do ex-atacante e amigo Renato Gaúcho contam como ele morreu, após ser declarado curado do câncer

Aiuri Rebello Do UOL, em São Paulo
Carlos Chicarino/Estadão Conteúdo

O exílio no fim da carreira e o drama do câncer

Em depoimento ao UOL, a atriz Inês Ghalvão conta como foram os últimos anos de Luís Carlos Tóffoli, o Gaúcho, atacante ídolo das torcidas do Flamengo e do Palmeiras nos anos 1980 e 1990, desde a aposentadoria dos gramados até morte por câncer de próstata em março deste ano, depois de ter sido declarado curado por um médico com um tratamento supostamente revolucionário. Leia abaixo:

"Quando o Gaúcho parou de jogar quis sair do Rio de Janeiro. Achou que ia ser bom viver um pouco fora de onde viveu os melhores momentos da carreira. Como ele amava o Pantanal, tinha escolinha de futebol em Campo Grande, fomos para lá. Depois de uns anos nos mudamos para Goiânia, nós tínhamos uma fazenda no interior de Goiás.

Foi nessa época que descobrimos o câncer. Em 2008 se não me engano. No começo foi um baque, mas nos primeiros anos deu tudo certo. Assim que recebeu o diagnóstico ele fez uma radioterapia e depois entrou no tratamento de controle hormonal. Estava tudo bem e assim íamos tocando nossa vida."

Por que Gaúcho não aceitava tratamento convencional

Acervo pessoal/Inês Ghalvão Acervo pessoal/Inês Ghalvão

"Reclamava que estava sempre muito cansado", lembra Inês

"Ele dizia que o tratamento incomodava muito. Reclamava que estava sempre muito cansado, sem vigor físico... isso para ele era um drama. O Gaúcho sempre foi um atleta, e mesmo depois de parar jogar tinha uma vida muito ativa fisicamente. Com o tratamento ele engordou bastante, começou a desenvolver diabetes... e essa situação toda incomodava muito, deixava ele chateado demais.Vivia dizendo que não queria continuar daquele jeito, que precisava achar um jeito de se curar."

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Perda de apetite sexual e outros efeitos colaterais

O médico Robson Moura, presidente da Sociedade Brasileira de Cancerologia, explica que existem efeitos colaterais no tratamento hormonal, e que por isso muitas vezes há uma resistência para aceitá-lo por parte dos pacientes. Perda de apetite sexual, aumento de peso, crescimento das mamas, diabetes e falta de força física estão entre os principais problemas. "isso tudo mexe coma cabeça de um homem né", diz Moura. "Ainda mais de um atleta, alguém que foi vigoroso e saudável."

Promessa de cura no Paraguai surge como milagre

"Na época ele estava com uns 48 anos, morreu aos 52. Quando descobrimos o câncer ele tinha 45. Eu dizia para ele: você está vivo cara, vamos agradecer aos céus! Mas ele não se conformava. Dizia, ?eu vou me curar, você vai ver só." Aí veio uma médica que a gente conhecia lá em Goiânia, com o papo desse médico no Paraguai... Quando a gente está desesperado, não questiona tanto as coisas.

Ela dizia que o cara tinha a cura do câncer. Quando ouviu a história, o Gaúcho ficou muito animado. Fazia anos que não via ele empolgado daquele jeito. Fez contado com o médico em Ciudad Del Leste e começou a organizar a ida para lá.

O Gaúcho ficava louco com todo mundo que falava contra a ideia de ir fazer o tratamento no Paraguai. As pessoas começaram a falar para eu não deixar, tentei convencer ele a não ir, mas não adiantou. Ele estava decidido e a única coisa que eu podia fazer era ir junto, não podia deixar ele sozinho.

Pegamos as meninas e fomos de carro até lá. Já na chegada achei estranho: era uma clínica geriátrica, dizia a placa. Um prédio baixinho de escritórios, dentro de um condomínio residencial, não me inspirou confiança. Não parecia algo de primeiro mundo, revolucionário. Mas como ele estava empolgado, não falei nada. Entramos e não havia outros pacientes."

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Antes de se consagrar no Flamengo, Gaúcho foi ídolo no Palmeiras

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Melhor amigo, Renato Gaúcho não se conforma

O técnico Renato Gaúcho ficou muito amigo de Gaúcho quando jogaram juntos no Flamengo, na década de 1990. Desde então, a amizade só cresceu a ponto de Gaúcho considerar Renato seu melhor amigo, mesmo após a aposentadoria dos gramados. "Nunca vi o Gaúcho triste, era um cara sempre alegre, para cima", lembra o treinador do Grêmio, com saudades do amigo.

"Foi a distância que soube do câncer dele, conversávamos sempre", diz. "Quando ele disse que ia fazer o tratamento no Paraguai, e depois quando já estava fazendo, eu dizia para ele: Gaúcho, tem alguma coisa errada com essa história meu irmão! Se esse cara tivesse a cura do câncer ele era o rei do mundo, estava em Nova Iorque, não estaria escondido no Paraguai!"

Renato Gaúcho lembra que Gaúcho ficava bravo com quem falasse mal ou colocasse dúvidas no tratamento paraguaio. "Ele ficava bravo comigo e eu fiquei puto com ele. Depois de um tempo nem falei mais nada. Fiquei louco com essa história, me deixou mal. O Gaúcho era teimoso demais."

 Roberto Filho/Fotoarena Roberto Filho/Fotoarena

"Você está curado!"

"Quando conhecemos o médico, doutor Décio, perguntei para ele: doutor, se você tem a cura do câncer, por que está escondido aqui? Ele dizia que era perseguido pela máfia da indústria farmacêutica. "Você vai sair daqui completamente curado, mais magro e mais saudável", disse para o Gaúcho. Falei para o meu marido que não era possível, mas ele não escutava mais nada.

Tiravam células-tronco da coluna e reinjetavam horas depois, colocavam ele dentro da câmara hiperbárica, inocularam umas bactérias que deixavam ele doente... O Gaúcho sofria demais, passava por tudo sem anestesia.

Quanto mais ele passava mal, mais o médico dizia que era sinal de que estava funcionando. Ele colocou como condição do tratamento que o Gaúcho parecesse o tratamento convencional de terapia hormonal e refizesse a reposição de testosterona, caso contrário não iria curá-lo. O Gaúcho obedeceu. Tudo custou uns R$ 130 mil, mas o médico devolveu depois.

Depois de três meses, o médico disse que o Gaúcho estava curado. Ele ficou feliz como uma criança! Os olhos dele brilhavam! Até então ele estava se segurando para comemorar. Foi uma festa. Eu estava com o pé atrás, tinha achado aquela cura muito estranha, mas fiquei quieta. Afinal, que direito eu tinha de impedir ele de fazer o que quisesse? "Estou curado!", ficava repetindo.

O Gaúcho continuou tomando a testosterona e estava se sentindo ótimo. Voltou a fazer exercícios, emagreceu, ganhou tônus muscular. Parecia realmente que tinha acontecido um milagre. Quando ele dizia que estava curado, as pessoas ficavam felizes, comemoravam com ele, mas eu sentia que os amigos ficavam com um pé atrás. O Renato Gaúcho mesmo nunca acreditou nesse tratamento. Mas estávamos felizes, ele estava se sentindo ótimo, parecia saudável e tudo ia bem."

Atuação heróica no gol do Palmeiras marcou toda a carreira

Eu quero é jogar e correr atrás dessa bola dentro de campo. Para mim, o futebol é a coisa mais importante do mundo, é a razão da minha vida, e estou feliz de ajudar da forma que for, seja no ataque ou no gol

Gaúcho

Gaúcho, então atacante Palmeiras, em declaração a jornalistas depois de substituir o goleiro Zetti, defender dois pênaltis e marcar um contra o Flamengo no Brasileirão de 1988.

Em busca do tempo perdido: a decepção e a luta pela vida

"Depois de uns meses começou tudo de novo... Ele voltou a sentir uma dor estranha no quadril. Dizia que devia estar pegando peso errado na academia. Algumas semanas depois começou a ter as suadeiras noturnas, e aí já sabíamos o que estava acontecendo. Esse sempre foi o principal sintoma do câncer na próstata dele.

Insisti até o Gaúcho fazer um exame completo. Ele já estava sentindo e não queria ir, tadinho. O câncer dele não só estava vivo, como tinha desenvolvido metástase óssea. Os médicos explicaram que ter parado com o tratamento hormonal e, além disso, ter feito a reposição de testosterona, alimentou o câncer dele até se alastrar pelo corpo.

O médico do Paraguai tentou me convencer que o Gaúcho já tinha chegado lá com metástase, e que ele tinha conseguido prolongar a vida dele. Era mentira, óbvio. Antes de irmos o oncologista dele dizia que daquilo ele não ia morrer, era apenas uma doença crônica. Depois de fazer muita pressão, ele devolveu nosso dinheiro para que ficássemos quietos. Ficou com medo por que nós dois éramos conhecidos, mas para o Gaúcho não fazia mais diferença.

Voltamos a viver no Rio no final de 2014. De lá até a morte, acho que foi o período mais feliz na vida do Gaúcho desde que ele deixou de jogar. Nos primeiros meses, ao longo de 2015, ele reagiu e os tumores chegaram a regredir. Mas aí veio a metástase para o fígado, e daí para a frente foi tudo muito rápido."

A opinião dos especialistas

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Tratamentos com células-tronco ainda não estão disponíveis

"Qualquer tratamento experimental é feito em instituição científica, onde a pessoa é avisada de todos os riscos e possibilidades. Nesse caso, e só nesse caso, pode haver uma interrupção do tratamento convencional", alerta o médico Auro Del Giglio, coordenador da oncologia do HCor, em São Paulo. Ele afirma que não existe nenhum tratamento comercial com células-tronco aprovado e reconhecido no mundo. Para não cair em armadilhas com esse tema, ele alerta que o paciente e a família devem avaliar se o tratamento experimental é realizado por alguma instituição reconhecida, e se o profissional que está comandando a atividade é conhecido e renomado.

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"Reposição hormonal é loucura", diz presidente da SBC

"Fazer a reposição hormonal para alguém com câncer na próstata é loucura", diz o presidente da Sociedade Brasileira de Cancerologia, Robson Moura. "É a mesma coisa que jogar gasolina na fogueira", avalia o especialista. Moura diz que, a princípio, tudo que interfira no tratamento convencional é negativo, mas ele não vê problema em as pessoas usarem tratamentos complementares. "Um paciente uma vez sumiu e reapareceu 60 dias depois com o melanoma muito avançado. Me disse que tinha ido fazer um tratamento alternativo com ervas... Não vejo problema em tratamentos paralelos, mas desde que não interfira com o que está em andamento", diz.

Mulher lamenta saudade; médico e clínica não comentam caso

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"Não fosse o tratamento no Paraguai, ele estaria aqui hoje"

"O Gaúcho estaria aqui com a gente hoje não fosse o tratamento que ele fez no Paraguai. Infelizmente ele tinha essa coisa dentro dele, essa necessidade de viver plenamente. Ele não aceitava viver sem a testosterona, sentia sua hombridade ofendida. O Gaúcho era pai de gêmeas de 11 anos, de um filho de 22 e outro de 28. Ele era muito presente na vida de todos e essa energia toda está fazendo falta, deixou um vazio. Aquele cara manipulou o desespero do Gaúcho. Eu sinto muita pena do que aconteceu com ele e me cobro demais. Algumas vezes acho que poderia ter feito mais, ter brigado com ele, tentado impedir. Mas a verdade é que ele ia fazer de qualquer forma, com ou sem meu apoio, então a única coisa que eu podia fazer era ficar com ele. O Gaúcho sempre fazia o que ele queria no final."

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Médico não atende e diz que não fala com "imprensa leiga"

Desde novembro, quando o programa Fantástico veiculou uma reportagem denunciando a clínica GeroBasso, no Paraguai, o médico responsável, Décio Basso, recusa-se a atender ligações e pedidos de esclarecimentos. No site da clínica, divulgou uma nota onde diz que "continua com a mesma posição de não falar com a mídia leiga, parcial e superficial". Em outro texto, Basso explica por que elegeu o Paraguai para montar a clínica: a liberdade de atuação para praticar a medicina que julga necessária. Em 2001, Décio Basso foi condenado a 22 anos de prisão no Brasil, por mandar sequestrar a filha de um médico que investigava denúncias contra ele no conselho de medicina. Ficou sete anos na cadeia, perdeu a licença para praticar medicina no Brasil e mudou-se para o Paraguai.

Renato Gaúcho: "Tentei ajudar mas já era tarde demais"

"Depois de tudo, quando eles voltaram a morar no Rio, O Gaúcho abriu para mim o que estava acontecendo: que ele estava muito doente, não tinha sido curado coisa nenhuma, e que estava morrendo", lembra o amigo Renato Gaúcho. "Fiquei arrasado. Pô, o cara era meu irmão! Falei com o médico do Fluminense que era meu amigo e ele me indicou um dos maiores especialistas do Brasil, em São Paulo."

O técnico do Grêmio conta que ele e Inês convenceram Gaúcho a voltar a se tratar. Ele já tinha desistido. "O médico me disse: Renato, como que deixaram essa situação chegar nesse ponto? Se ele tivesse vindo antes a gente conseguia tratar e manter ele vivo por muito tempo, mas agora é tarde demais. Chorei para caralho nesse dia."

"O Gaúcho era meu irmão, a gente conversava muito, jogava futevôlei todo dia junto em Ipanema. Mesmo no fim, ele nunca deixou de ser o Gaúcho. Estava reagindo legal. De vez em quando fraquejava, e mais pro fim começou a ficar desanimado, dizer que ia largar... Teve um dia que levei ele até o mar, demos um mergulho e conversamos muito... Aí ele decidiu continuar", lembra o amigo. 

"O Gaúcho era um cara show de bola. Jogava muito e era gente finíssima. Baita parceiro, sinto muita a falta dele."

Reprodução/Site Flamengo Reprodução/Site Flamengo

A última partida de futevôlei e o final ao lado da mulher

"Ele jogou futevôlei até uma semana antes de morrer. No domingo estávamos na praia e lá meio da tarde ele pediu para ir embora. Estranhei por que ele tinha jogado só três partidas. Na terça foi internado. No sábado morreu.

Fiquei o tempo todo ao lado dele. No hospital, o Gaúcho não queria mais dormir. Estava com medo de não acordar mais. Uma hora não estava mais conseguindo respirar e os médicos explicaram que iam tirar ele do quarto e colocar na UTI entubado.

Ele concordou, mas só se eu fosse junto. Não queria ficar sozinho, sentia que estava morrendo. Mesmo sedado, pediu para eu não ir embora. Disse que nunca ia deixá-lo, que ele era o amor da minha vida. Larguei tudo, minha carreira inteira, para criar uma família com ele. Tivemos quatro filhos incríveis. Faria tudo de novo.

Antes de entrar em coma, ele me escreveu um bilhete que vou guardar para sempre: "Te amo, me desculpa tá?"  Dei um beijo na cabeça e ele dormiu. Ficamos de mãos dadas até o fim, e no dia seguinte o Gaúcho morreu."

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