"Intrusas" no gramado

Como o ambiente machista ataca mulheres que trabalham com esporte

Bruno Freitas, Laís Montagnana e Leandro Carneiro Do UOL, em São Paulo
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Faltam mulheres. Sobram clichês e preconceitos

As mulheres já chegaram à presidência da República, ao comando da principal corte de Justiça e à direção da maior companhia aérea nacional. Mas, no país do futebol, o jornalismo esportivo parece ser a última fronteira de afirmação da competência feminina. É quase um território à parte, em que a cultura tipicamente masculina revela indisfarçável sensação de incômodo com a presença do sexo oposto. 

Na TV fechada, apenas 13% dos profissionais que aparecem na frente da tela são mulheres, quase todas elas na reportagem. As incursões femininas na narração chegam ao público ainda com caráter meio experimental, sem nenhuma pessoa de fato neste cargo. Já entre as comentaristas contratadas, o mercado só conta com três profissionais do gênero. Muito além da figura quase decorativa da "leitora de e-mails de internautas", aquela que consegue oportunidade de emitir opinião em programas de debate às vezes parece ofender a cabeça do torcedor médio – e mesmo a de colegas de profissão ou a de personagens do mundo do futebol. Nenhuma das famosas "mesas redondas" esportivas conta com a presença de mais de uma comentarista ao mesmo tempo.

As profissionais femininas precisam de força para provar a todo instante que têm competência para falar de futebol – no nível de um homem, ou melhor do que eles, por que não? Mas, no debate da TV, elas são tratadas como "musas" ou como "café com leite", quando a discussão entra em um patamar de profundidade de esquemas táticos, lei do impedimento e afins. Já no dia a dia, entre gracejos de jogadores e ameaças nas redes sociais, as jornalistas que expõem seus rostos e comentários na tela confrontam uma enraizada cultura machista. Para aquelas que empunham microfones em estádios, ouvir xingamentos é um triste padrão.

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Quando estão em campo, é xingamento e desrespeito

"Eu sempre trabalhei com um lado só do fone de ouvido nas transmissões, por uma questão técnica fico com um ouvido na transmissão e outro no ambiente do estádio. Porém, de uns tempos para cá parei, coloco o retorno nos dois ouvidos, no último volume. Não sei mais o que falam e se falam".

A frase dita por Ana Thais Matos, comentarista do SporTV e que atua como repórter de rádio em campo, mostra o que elas precisam encarar dentro do gramado. 

A postura de isolamento adotada por Ana Thais para manter a concentração é comum. Ignorar é quase sempre a opção escolhida por elas, mas existem casos em que elas deixam o trabalho para depois, como na hora de gravar a matéria. "Quando é gravado, prefiro esperar falarem para fazer meu trabalho tranquila. Tem horas que não tem jeito, você precisa ignorar aquilo e seguir em frente", disse Isabela Labate, da Band.

 

Elas mesmas contam

  • Saí chorando do estádio

    Tive problema muito sério com a torcida da Portuguesa, a única vez que, em 17 anos de carreira, saí chorando de estádio. Foi um grau a mais de desrespeito e fui direto para a delegacia fazer um BO (Boletim de Ocorrência) na ocasião. Esses torcedores tiveram de se entender com a Justiça. Foi a única vez que eu realmente cansei de ouvir esse tipo de agressão e tomei atitude. Não me arrependo nem um pouco - Joana de Assis (repórter de Sportv/Globo)

    Imagem: Reprodução/Twitter
  • Temi torcedores

    Os xingamentos não são a coisa mais comum, em geral o problema são as cantadas e os comentários grotescos e sexuais. Mas já aconteceu de ouvir de "puta" pra baixo, especialmente nos estádios em que há maior proximidade com torcedores. Em geral, me calo. Já respondi uma vez, no Moisés Lucarelli. Cheguei a temer que os torcedores arrebentassem a grade para me agredir - Mayra Siqueira (repórter da Rádio Globo/CBN e comentarista do SporTV)

    Imagem: Reprodução/Instagram
  • Meu coração disparou

    Eu não fico próxima a essas pessoas, apenas passava por eles. Teve uma vez que eu fiquei muito nervosa. O sujeito gritou meu nome e disse que ia me encontrar na rua e me estuprar. Não por acreditar que ele faria isso, mas fiquei uns 30 minutos pensando que eu estava no meio de alguns animais. Minha pressão subiu, meu coração disparou, mas fiz a transmissão normalmente - Ana Thais Matos (repórter da Rádio Globo/CBN e comentarista do SporTV)

    Imagem: Reprodução/Twitter
  • Falam mesmo

    Passamos sempre (por ofensas), toda vez que a gente faz uma matéria que não agrada torcedor ou até quando conta coisas boas. Aí é o torcedor do outro time vem te agredir. Na arquibancada, falam mesmo, sobretudo quando faz algo que não agrada. Eu, geralmente, faço matérias que desagradam os torcedores. Então, vem com mais peso - Gabriela Moreira (repórter da ESPN)

    Imagem: Reprodução / Twitter

As ofensas anônimas ou não nas redes sociais são ainda piores

A rotina de assédio e de serem postas à prova

O problema não vem apenas das arquibancadas. Superar cantadas e comentários ofensivos no próprio meio, de treinadores, jogadores, dirigentes e até de colegas de profissão, é recorrente. Em entrevistas, são perguntadas sobre futebol, como se o esporte fosse exclusivo para homens. Algumas jornalistas dos casos relatados preferiram não se expor e pediram anonimato.

Veja depoimentos

  • Pedido de telefone na coletiva

    Um atacante com passagem pela seleção brasileira chegou a pedir para um funcionário do marketing do clube entrar em contato com uma repórter para pedir o seu telefone, logo após o término de uma coletiva. "É muito constrangedor, no dia, até chorei de raiva", relata a jornalista.

  • O jeito que ele olha

    Um famoso técnico de futebol já se acostumou a soltar pérolas machistas em coletivas e programas de televisão. Ele já até questionou a presença de mulheres como fisioterapeutas. "Toca na minha virilha para ver como vou ficar". As jornalistas ainda reclamam da "forma nojenta" de como ele as olha.

  • Proposta indecente

    Outro treinador, quando trabalhava no Flamengo, chegou a fazer uma proposta para uma jornalista que reclamou do ar condicionado em uma sala de imprensa. "Se quiser, eu posso te esquentar", disparou o entrevistado.

  • "Apesar de você ser bonita"

    Em uma entrevista coletiva, um treinador discordou da opinião de uma jornalista antes de responder a questão. Com a resposta, veio o comentário sobre os atributos físicos dela: "Vou discordar de você apesar de você ser muito bonita".

Quando constrangimento é ao vivo na TV

Programa e quadros em que a mulher tem uma função específica

  • Bolsa Redonda: "o que é segundo pau"

    Exibido entre 2013 e 2014 dentro do Esporte Espetacular, o quadro capitaneado por Fernanda Gentil prometia uma visão feminina sobre futebol. Discussão sobre atributos físicos de jogadores ou "coisas fofas" do esporte dominavam a pauta. Cabia à escritora Thalita Rebouças o papel de desinformada, alienada a respeito de termos básicos como "gol fora" ou "jogador de base". Em um episódio, o Bolsa Redonda usou um infográfico visual para explicar o que significa "segundo pau"

    Imagem: Reprodução/Instagram
  • Extraordinários: Maitê é a humorista

    No programa do Sportv, Maitê Proença surge mais como uma adição humorística. A atriz já fez um strip-tease para celebrar a volta do Botafogo à primeira divisão e comparou famosas fotos de Pelé e Maradona pelados. Por outro lado, a integrante da atração também gravou um boletim mais sério junto com o repórter Mauro Naves, comentando o noticiário da seleção

    Imagem: Reprodução/Sportv
  • Arena SBT: a musa do programa

    O SBT até cogitou fazer um investimento na área esportiva nas noites de sábado, mas ficou só quatro meses no ar. Os homens sempre estavam vestidos com terno enquanto o figurino de Livia Andrade nunca mudava: roupa curta. As outras mulheres que participavam da atração, inclusive as repórteres, usavam mini saias e tinham o lado sensual explorado até quando o assunto era um quiz com convidados, como Vampeta.

    Imagem: Reprodução

Necessidade de provar conhecimento

Recebi centenas de mensagens de mulheres que se sentiram representadas, que tiveram testados os conhecimentos, por exemplo, como forma de provar que dominavam o tema, do tipo: 'fala então a escalação de 79'

Bibiana Bolson

Bibiana Bolson, repórter do Esporte Interativo

A gente fala de preconceito e ofensas nas redes sociais, mas isso acontece entre colegas, sente isso de um colega para gente. Acontece dentro dos clubes com jogadores. A gente está sempre sendo colocada à prova

Monique Danello

Monique Danello, repórter do Esporte Interativo

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

O preconceito escancarado contra uma das pioneiras entre as comentaristas

Uma das primeiras mulheres a conquistar espaço na televisão foi Soninha Francine, que trabalhará na gestão de João Dória na prefeitura de São Paulo. Pouco depois, Mily Lacombe conseguiu chegar ao posto de comentarista e relembra que teve de encarar preconceito de companheiros no SporTV.

“Lembrei de uma coisa que aconteceu assim que cheguei ao SporTV. Fui chamada de lado e essa pessoa falou:

Não concordo com sua vinda para cáNão acho que precise de mulher no programa. Acho que você é invenção da diretoria. Queria te dizer claramente que sou contra. 

Aquilo foi um choque para mim porque era um machismo na minha cara, dito olho no olho, o que é menos pior que machismo subliminar. Depois essa pessoa acabou se tornando minha amiga e conviveu comigo. Acho que hoje, talvez, essa pessoa veja a mulher comentando futebol de outro jeito. Porque mostrei que tinha conhecimento”, falou.

“Nesse dia, eu baixei a cabeça, não falei nada. Eu falei "está bom", não falei absolutamente nada. Sabia que só ia virar esse jogo no dia a dia, mostrando algum conhecimento. Quando ela é colocada na cara, é difícil ter reação. Eu não tive nenhuma reação. É constrangedor, um pouco humilhante. No fundo te dá mais ganas de sair disso, de virar o jogo. Se a princípio te leva para lugar de pequenez, depois te agiganta”, completou.

No exterior, as histórias são iguais

  • Fique fora do vestiário

    Após ser excluída da cobertura do título do New York Yankees em 1977 (1h45 do lado de fora do vestiário), Melissa Ludtke escreveu uma carta para a liga de beisebol. Recebeu como resposta que "as mulheres não pertencem ao vestiário da liga". Então, incentivada pelos editores, a repórter da revista "Sports Illustrated" processou a Major League Baseball (MLB). A jovem de então 26 anos acabou superexposta na mídia, mas sua luta resultou no acesso irrestrito para profissionais femininas

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  • "Estupro mental"

    Em 1990, Lisa Olson entrevistava atletas do New England Patriots no vestiário quando foi assediada por um grupo. A repórter do "Boston Herald" foi humilhada verbalmente por jogadores seminus, em constrangimento de contexto sexual. A jornalista descreveu o episódio como um "estupro mental" e processou o time da NFL. Após receber ameaças anônimas de torcedores, acabou se mudando para a Austrália

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  • Sexy demais?

    "Esse vestiário é nosso", gritaram jogadores do New York Jets para Inés Sainz, após atingirem a jornalista mexicana com algumas boladas. Atletas e membros da comissão técnica supostamente alegaram que a repórter da TV Azteca estava vestida de forma inapropriada para o local. Sainz se defendeu nas redes sociais e ganhou apoio da Associação de Mulheres em Meios de Comunicação de Esporte

    Imagem: Reprodução
  • Ditadura dos cabelos

    Charissa Thompson enfureceu alguns espectadores da Fox Sports americana ao trocar a cor dos cabelos: de loira para morena. A repórter afirmou que queria se livrar do "estigma de Barbie" e ser levada a sério, mas se arrependeu e voltou aos tons mais claros. Após as duas mudanças estéticas, a jornalista foi alvo do noticiário sensacionalista do país e recebeu uma série de mensagens de ódio e preconceito na internet

    Imagem: Reprodução
  • Ironia na coletiva

    Incomodado com uma questão feita pela jornalista Marcela Brachetti sobre a fase do seu time, Marcelo Gallardo, técnico do River Plate, encerrou abruptamente uma entrevista coletiva: "sempre me faz essas perguntas.. feliz dia das mulheres, boa noite". O episódio com a repórter da "Rádio del Pueblo" aconteceu justamente no Dia Internacional da Mulher

    Imagem: Reprodução/Twitter

Perspectiva de mudança

  • Gabriela Moreira

    Sociedade pensa dessa forma, claro que vão achar que sou culpada por ser xingada. Vão achar que sou culpada por ter provocado a ira de torcedores, por ter sido insultada, vai demorar muito a mudar. Não vejo na minha geração, quem sabe em uma ou duas gerações isso mude

    Imagem: Reprodução/Twitter
  • Milly Lacombe

    Machismo está aí. Você não tira, todos nós bebemos machismo na mamadeira, difícil tirar isso de uma geração para outra, ou duas ou de três. Vai acabar aos poucos, mas vai acabar. Enquanto for a sociedade for patriarcal, vai ser difícil

    Imagem: Arquivo pessoal
  • Joanna de Assis

    Não sei se isso um dia vai mudar, sou positiva em relação a isso, acho que as pessoas vão melhorar sempre. Mas não vejo em futuro próximo, acho que não estarei viva para isso. É um estrago de muito tempo

    Imagem: Divulgação
  • Ana Thais Matos

    Não vai mudar nunca. O futebol é microcosmo da sociedade. Isso é o reflexo da falta de educação do país. Não dá pra exigir algo que a pessoa não tem

    Imagem: Reprodução/Twitter

O que pensam os coletivos feministas sobre essa situação

Jaron Johns Jaron Johns

Ser mulher no futebol é heroísmo

O futebol é dominado pelos homens. Feito sobre homens, por homens, para homens. Ser uma mulher neste meio é um ato de heroísmo. Existem excelentes repórteres mulheres abrindo caminhos neste universo, mas ainda precisam superar barreiras enormes, como machismo, falta de oportunidade, assédio sexual, objetificação. Uma repórter mulher neste meio é tão raro que a mera presença delas já se torna um ato político. É uma indústria dominada por homens, que gera muito dinheiro e poder, e da qual os homens que fazem parte hoje não vão abrir mão tão facilmente. Temos mulheres qualificadas? Com certeza. Elas conseguem ser promovidas e lançadas a estas posições? Não. O SporTV anunciou recentemente que terá uma narradora mulher e foi altamente celebrada por isso. Existe uma demanda, existe um desejo de outras mulheres e também de homens de ouvir a voz feminina no futebol. Mas é uma mudança cultural que leva tempo para ser transformada. Acho que é uma barreira enorme para as mulheres que querem trabalhar no meio. A Gabriela Moreira certa vez escreveu sobre isso em suas redes sociais, sobre como o assédio e as ofensas minam nossa energia, nossa autoconfiança e nos tiram do jogo. Trabalhar com alguém(s) gritando impropérios atrás de você é desafiador e certamente compromete o resultado do trabalho. Não se estabelece uma relação de igualdade. O que há é desrespeito. E a forma mais escancarada de machismo - Maíra Liguori (Think Olga)

Acervo Pessoal Acervo Pessoal

Nenhum comentário a respeito do corpo interessa

Acho que o papel da mulher na cobertura de futebol deveria ser exatamente o mesmo do homem. Ambos têm a mesma capacidade de produzir matérias, de analisar jogos, de trazer histórias interessantes. Mas o que acontece, na realidade, é que a mulher já é subestimada logo no início quando quer 'entrar nesse mundo'. Ela já é vista como alguém que não sabe tanto quanto um homem ou que vai ter mais dificuldades para trabalhar ali. A questão é que existe um preconceito dos veículos quanto a contratar mulheres e confiar nelas para produzir o mesmo que um homem produziria, e também do público, que muitas vezes vê com descrédito mulheres que trabalham com futebol, acham que elas não sabem tanto quanto os homens ou que não têm propriedade para falar. E acho que, principalmente as emissoras de TV, ainda não foram 'ousadas' o suficiente para desafiar essa visão retrógrada de parte do público e colocar a mulher ali, com o mesmo status do homem, para narrar, para comentar, para analisar o jogo. É importante mencionar que nenhum comentário a respeito da forma física das mulheres enquanto elas estão trabalhando pode ser considerado elogio. Qualquer comentário, seja ele um xingamento ou um "gostosa", é assédio e é ofensivo. Já imaginou estar no seu local de trabalho, obviamente trabalhando, e o tempo todo ouvir gente atrás falando do seu corpo, da sua forma física, te pedindo em casamento? São sempre comentários tentando depreciar a mulher - Renata Mendonça (Dibradoras)

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