Se o brasileiro ganha, em média, R$ 1.268 por mês (renda per capita do país em 2017, segundo o IBGE), um jogador de um dos quatro grandes clubes de São Paulo fatura R$ 250 mil. Famosos e ricos, eles estão mergulhados em uma intensa rotina de viagens e concentrações, dispostos a pagar (caro) para "solucionadores" de problemas, vendedores de todos os tipos que oferecem conselhos, comodidade e confiança. Com isso, movimentam uma economia bem particular, que quase nada tem a ver com futebol. 

Quem entra nesse mercado respira "boleiragem". É preciso se vestir e falar como jogador para estar em um meio que se apoia na confiança. Profissionais com atuações diversas só prosperam se os atletas passam seu contato adiante, e não são raras as vezes em que eles mesmos vão aos CTs dos clubes para um papo mais direto. O esforço vale a pena: quem trabalha com os atletas tira cerca de 70% de sua renda só deste setor. 

Foi nesse universo que o UOL Esporte mergulhou nas últimas semanas, entrevistando e acompanhando o trabalho de quem se sustenta oferecendo facilidades aos boleiros. Confira, nesta reportagem especial, como funciona o "mercado por trás da bola".

Que casa agradaria um boleiro?

Corretor "especializado" mostra uma mansão e conta preferências dos jogadores

Boca a boca faz boleiros indicarem serviço até para os rivais

O "modus operandi" é padrão. Se o profissional interessado faz negócio com um atleta, espera que ele passe a sugestão adiante. Logo, se tudo der certo, seu nome estará rodando pelas concentrações. Foi assim, por exemplo, que Rogério Santos, dono da empresa Four Lines, passou a auxiliar boleiros a atuarem no mercado financeiro. O trabalho começou com Denis, há três anos, com um planejamento detalhado das economias e uma definição da estratégia de atuação. O ex-goleiro são-paulino, então, indicou o trabalho ao corintiano Walter, que ainda apresentaria o serviço a Cássio e Vilson, seus companheiros de clube. 

O próximo passo é dado nas redes sociais, responsáveis pela consolidação da marca e a expansão dos negócios para além da bola. Natural de Itu, Bruno Pacheco conheceu o corintiano Clayson por meio de um amigo da cidade. Ele vende produtos eletrônicos como celulares, fones de ouvido e caixas de som portáteis, itens fundamentais para quem vive em busca de lazer dentro de concentrações intermináveis. Por meio do atacante, chegou a outros alvinegros como o zagueiro Pedro Henrique e o lateral direito Fagner. As fotos marcadas pelos jogadores no Instagram ajudaram Bruno a impulsionar as vendas para fora do ambiente dos clubes, que é onde ele obtém lucro com o negócio.

Já Domenico D'Amico, o Dom, que se auto-denomina "motorista das estrelas", conseguiu clientes no Palmeiras e no São Paulo depois de decidir largar o trabalho no aplicativo Uber. Apresentado por um amigo, ele chegou até o zagueiro Juninho, seu primeiro cliente da bola. Hoje, com 30 mil seguidores na rede social, ele se mostra influente entre os boleiros: Petros, Arboleda, Denílson, Michel Bastos, Mayke e Raphael Veiga, entre outros, já foram transportados por ele.

A prateleira de serviços

  • Corretor de imóveis

    Especialista em conseguir residências próximas aos CTs dos clubes. O trabalho se torna mais forte na época da janela de transferências, em janeiro e julho, quando os jogadores precisam adequar as suas vidas ao dia a dia do novo trabalho. Além dos serviços comuns aos profissionais da área, ele ajuda também a resolver as pendências burocráticas.

  • Motorista e outras coisas

    Uma carona providencial aqui, outra ali. Em constante deslocamento pela cidade, jogadores preferem recorrer a um profissional para ganhar tempo. Em alguns casos, o serviço é constante, com pagamentos semanais. Em outros, são isolados, com repasses a cada trabalho. Esse profissional ainda ajuda os boleiros em outros afazeres do cotidiano.

  • Frentista faz-tudo

    No posto de gasolina próximo aos CTs do São Paulo e do Palmeiras, um frentista ajuda os jogadores a manter os seus veículos em dia. Figura carimbada nos clubes mesmo em dias de concentração, ele retira os possantes dos estacionamentos e leva para o posto para que seja feito o serviço de limpeza, abastecimento e o que mais for necessário para deixar as máquinas prontas para o uso.

  • Vai um celular aí?

    Não é novidade para ninguém que os jogadores gostam de equipamentos eletrônicos. Nas concentrações, celulares, caixas de som e fones de ouvidos ajudam a passar o tempo longe da família. Diante dessa brecha surgida nos últimos anos, o mercado dos produtos cresceu muito entre os atletas do futebol paulista. O serviço incluí ainda uma entrega rápida e em mãos nos CTs dos clubes.

  • De olho no dinheiro

    A preocupação com o futuro fez alguns jogadores procurarem ajuda de profissionais ligados ao mercado financeiro. Com salários altos, os atletas são instruídos a fazer determinadas aplicações, de acordo com seus planos e ambições. O tratamento é vip, com reuniões e contatos constantes, além de um planejamento detalhado a médio prazo.

  • Vendedor de carros

    Tem de conhecer o gosto dos boleiros. Esse profissional sabe tudo sobre SUVs e carros esportivos, os preferidos dos boleiros. Oferece test drive, entrega o veículo em qualquer lugar do país e busca os modelos mais desejados. Além de negociar, ele ajuda a agilizar a documentação do automóvel, a agendar ou fazer a revisão e ainda resolver todas as questões burocráticas.

Começa como vendedor, termina como braço direito

Hoje, depois de alguns meses, ser motorista é apenas 10% do meu trabalho com eles 

A frase de Dom, o "motorista das estrelas", mostra bem como a relação vendedor-consumidor se torna intensa à medida que o tempo passa. Os serviços realizados, que foram o pontapé inicial para o surgimento do vínculo, ficam quase em segundo plano. Com a convivência, confiança e os laços mais fortes, os profissionais ganham importância no cotidiano dos jogadores e viram uma espécie de braço direito, com contato diário e até com serviços feitos para familiares. 

Eles pagam contas, compram passagens aéreas e correm a cidade levando os jogadores de um lado para o outro. A exigência peculiar de serviços, quase a de um secretário, tem a ver com o estilo de vida dos boleiros, que muitas vezes não conhecem a cidade e buscam discrição em meio à rotina repleta de compromissos. Sem paciência ou tempo para resolverem questões quase burocráticas, aproveitam a facilidade de quem está disposto a solucionar isso por eles. 

Em troca, não é raro que a relação evolua para a amizade, com convivência em churrascos, idas a estádios e até momentos mais pesados. Dom, por exemplo, chegou a visitar o atacante palmeirense Deyverson no hospital após uma cirurgia no pé direito no começo deste ano. 

Bermuda, chinelo e "boleiragem"

Não fosse pelo (pouco) preparo físico, a maioria das pessoas que integra o mercado paralelo do futebol poderia ser confundida com um jogador profissional. Boné, camisa apertada de grife, bermuda e tênis importado formam o "uniforme" desses profissionais.

Antes, eu trabalhava de terno e os jogadores brincavam que eu parecia um pastor

Quem ri da mudança acima é Neto, corretor de imóveis famoso entre os atletas que acabou por abandonar a roupa social. Andar entre boleiros garante aos vendedores roupas de patrocinadores, interessados em expor suas marcas nas redes sociais, ou presentes dos amigos/clientes. Há quem tenha recebido um par de tênis de R$ 5 mil de um palmeirense, por exemplo.

Como a intenção é estar mais próximo dos clientes, o linguajar e o vocabulário também são fundamentais para que a "resenha" flua do modo correto. Os locais para os encontros são informais - padarias, churrascarias e até piscinas podem virar um balcão de negócios. O bom profissional desse mercado paralelo do futebol precisa estar pronto para atuar em qualquer situação, de uma partida de futevôlei ao caminho até um programa de televisão.

Clubes abrem as portas para os vendedores

Venda concluída, carona agendada, conversa marcada. Qual é o próximo passo? O encontro entre vendedor e cliente. Parte dessa relação comercial, em muitos casos, acontece dentro dos centros de treinamentos dos clubes. 

As fotos no Instagram não deixam dúvidas. Autorizados pelos próprios atletas, os vendedores são autorizados a ultrapassar os muros altos dos CTs, onde encontram os jogadores parceiros e reforçam a prospecção de novos negócios com o restante dos elencos. Não é uma exclusividade deles, diga-se. Amigos, familiares e empresários também têm, por tradição, acesso livre a determinadas áreas dos locais de trabalho, sempre com aval dos atletas, como conta Danilo Corcini, que vende carros para os jogadores: 

Não chego como clandestino, quando entro no CT, já está avisado na portaria. Tenho amizade com segurança, quase acertei de vender carro para um

Em geral, os encontros se dão nos estacionamentos ou áreas comuns. Dificilmente os profissionais têm acesso a partes restritas dos CTs, como academia, departamento médico ou hotel. Consultados pela reportagem, os clubes fazem questão de ressaltar que não têm qualquer relação com a transação comercial entre vendedor e atleta, e apenas autoriza a presença dos profissionais a pedido dos jogadores. 

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