Manto (muito) sagrado

Há 30 anos, comprar camisa do seu time era um desafio. De lá para cá, quase tudo mudou

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo
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Revista Placar, em 16 de dezembro de 1988

Camisa oficial era relíquia

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Um bom negócio

Os tempos em que jogadores e roupeiros eram responsáveis pelas vendas de camisas acabaram. Eles até ganham um número bem maior de produtos do que no passado, mas a maioria delas é destinada a presentear amigos e familiares, e não mais obter lucro.

“Era difícil o torcedor ter uma camisa do time. Tinha que ir lá no clube, era um processo muito chato. Como jogador, você só tinha direito a uma camisa por jogo: a do intervalo podia levar, mas a do segundo tempo ficava com os roupeiros. Se você quisesse levar para dar de presente ou trocar com algum adversário tinha que comprar e era descontado do salário”, relembra o ex-meia Geovani, que vestiu as cores do Vasco pelo período de 12 temporadas.

Na época da matéria de “Placar”, Geovani era dono da camisa mais vendida do Vasco: de sete itens que eram comercializados por mês, cinco eram do “Pequeno Príncipe”. Isso significa, em números consolidados, cerca de cem entre 140 camisas que terminavam nas mãos dos torcedores. A quantidade de camisas vendidas do clube aumentou em quase 600 vezes, e o modo de comercialização também.

Até o meio dos anos 80 os clubes não tinham ideia do que era licenciamento de produtos e franquias, não havia nem sequer marcas registradas. Na verdade, os clubes só passaram a aceitar essa evolução em relação a materiais esportivos porque ela representava uma nova fonte de faturamento. Mas tudo partiu das fornecedoras, não dos clubes.

João Henrique Areias, Ex-diretor de marketing do Flamengo e do Clube dos 13 na década de 80

O mercado é o grande responsável por isso, porque ele percebeu que as pessoas gostavam daquele tipo de roupa que era confortável e levava a marca do clube. Surgiu uma espécie de grife por esses produtos, desencadeou a criação das terceiras camisas, por exemplo. Passou a ser um mercado importante dentro do ambiente competitivo.

João Henrique Areias, Hoje atuante como professor e consultor de gestão e marketing esportivo

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Quando tudo começou a mudar

Na visão de especialistas em marketing esportivo ouvidos pelo UOL Esporte, o processo começou a mudar a partir da Copa União de 1987, primeiro evento esportivo brasileiro patrocinado pela iniciativa privada, e não mais pelo Governo, por meio da criação do Clube dos 13. Na época, a entidade encabeçada pelos clubes sentou-se à mesa com emissoras de televisão e empresas para poder bancar o Campeonato Brasileiro daquele ano, pois a CBF não tinha recursos em razão de grave crise financeira e institucional que vivia.

Um dos relatos sobre este momento histórico é de uma empresa que procurou o Clube dos 13 para obter liberação dos clubes e fabricar produtos de plástico e adesivos dos mascotes. A empresa ganharia sua parte e ainda repartiria royalties com os clubes. Ao consultar as diretorias, a entidade descobriu duas coisas: a maioria dos clubes não tinha marca registrada, então não havia como licenciar produtos, e muitos usavam personagens como mascotes, como Popeye (Flamengo), Pato Donald (Botafogo) e Super Homem (Bahia), mas sem os direitos de uso. O Clube dos 13 partiu do zero para viabilizar a iniciativa, encomendou desenhos do cartunista Ziraldo dos mascotes de cada clube e por fim conseguiu lançar os produtos no mercado.

 

Os clubes não tinham dinheiro e nem cabeça para investir.

João Henrique Areias

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Caixinha valiosa

Nos anos 80, as empresas de material esportivo faziam contratos anuais de fornecimento e enviavam remessas periódicas aos clubes. Em alguns clubes era enviada uma cota exclusiva para os jogadores – no Cruzeiro eram seis e no Atlético-MG eram dez camisas por ano, por exemplo. Era o único material oficial não destinado ao uso em partidas. Todo o restante das camisas usadas por torcedores, portanto, era fruto de pirataria.

Essa cota exclusiva aos jogadores por muitas vezes integrava uma “caixinha” organizada pelo elenco: material de jogo, principalmente essas camisas recebidas das empresas, eram reunidas e vendidas a quem se interessasse. Alguns clubes já tinham lojas oficiais em suas sedes, mas o contato direto era a maior fonte de negócio.

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Meu primeiro agasalho

“Não se vendia agasalho do Corinthians nessa época e resolvi ir direto ao clube para tentar comprar. Aí fala com um, fala com outro, e quem tinha agasalho para vender era o Aguinaldo, então preparador de goleiros. Ele falou um preço e uma data e fui no dia combinado. Ele estava trabalhando com Ronaldo, Yamada e Felício e quando acabou foi até o vestiário e me trouxe o agasalho dobrado e num saco plástico”, relembra Márcio Antônio da Silva, 44, professor de história e geografia.

O agasalho de Márcio foi emprestado e nunca devolvido, mas ele se lembra de todos os detalhes: era preto, mas branco do peito para cima. Havia um símbolo grande na frente e nas costas o logotipo da Topper, empresa que fornecia o material esportivo do clube, além de “S. C. Corinthians Paulista” escrito em arco, com fonte college.

O agasalho que Márcio se orgulhou por comprar nos anos 80 é fruto justamente desta caixinha dos funcionários, que ocorria pela escassez de produtos oficiais. Hoje em dia não é mais assim. A caixinha até se mantém, incentivada por funcionários mais humildes dentro dos clubes, mas os jogadores têm acesso a mais produtos.

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Vai camisa aí, Marciel?

O normal, segundo jogadores de três clubes da elite do Brasileirão ouvidos pela reportagem, é o jogador ficar com pelo menos duas camisas da partida em que está relacionado, independentemente se entrar em campo ou não - os que jogam podem levar até três em alguns casos. Assim, é possível trocar com adversários no intervalo ou no fim dos jogos, guardar ou presentear.

Foi isso que fez o volante e lateral-esquerdo Marciel em 2017. Ele atuou em apenas 12 partidas pelo Corinthians, mas foi guardando as camisas dos jogos aos quais foi relacionado e levou para sua terra natal, no Rio Grande do Sul, no fim do ano. O resultado foi um registro de oito amigos e familiares com nome e número do jogador em suas camisas do Corinthians. Em 2018, Marciel foi emprestado à Ponte Preta. A coleção dos amigos ganhará novos itens.

"Foi um momento muito especial para eles, por ganharem o presente, e principalmente para mim. É um tipo de homenagem ver meus amigos com uma camisa que tem meu nome e número. Isso significa mais que um uniforme de jogo, (camisas) têm uma representação bem maior no Brasil", diz o jogador.

Geovane Silva/Facebook/Reprodução Geovane Silva/Facebook/Reprodução

As antigas ainda têm seu valor

Apesar do valor exorbitante, hoje é muito mais acessível comprar uma camisa do seu time do coração. A quantidade em abundância dos novos modelos fez os artigos dos anos 80 e 70 se valorizarem ainda mais. O sentimento de saudosismo e paixão pelo símbolo do clube leva torcedores a uma verdadeira garimpagem para achar esses objetos antigos. 

Geovani, aquele citado no começo da reportagem como o que mais vendia camisas do Vasco, aproveitou esse fanatismo para fazer a alegria de alguns sortudos torcedores e, de quebra, conseguiu realizar um sonho do filho.

“Meu filho estava precisando comprar um carro em certo momento. Eu recebia muita proposta de colecionador para comprar minhas camisas antigas, que na verdade estavam guardadas, mofando, começando a dar traças. Então eu decidi vender boa parte dessa coleção, paguei o carro e ainda sobrou dinheiro. Foi um bom uso, não?”.

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