Irmãos de luvas

Ex-goleiro do São Paulo escreve ao melhor amigo, que morreu em um acidente de carro aos 19 anos

Bruno Landgraf* Especial para o UOL, em São Lourenço da Serra (SP)

Pensa no Rogério Ceni de boné, peruca e óculos escuros. À noite. Se disfarçando no meio da multidão para não ser reconhecido a caminho do show do U2 no Morumbi. Eu e você muito sérios, tentando não parecer desconectados daquela cena insólita, mas querendo gargalhar por dentro. De repente é essa imagem que me surge quando eu penso em você e nas coisas que vivemos juntos. O Rogério Ceni, nosso ídolo de infância. De boné, peruca e óculos escuros.

A gente se acostumou a crescer na sombra dele. Eu era o terceiro goleiro do São Paulo; você, o quarto. Naquele dia, encontramos o Rogério e o Lugano conversando depois do treino e eles nos convidaram para o show do U2. A gente nunca foi muito de U2, mas era de graça e era no Morumbi. “Eu levo vocês, mas depois vocês dão um jeito de voltar, tá?”, disse o Rogério.

Você diria não ao Rogério?

Entramos no carro, fomos à casa dele e encontramos sua esposa. Ele se disfarçou de gente comum, venceu a multidão incólume e foi até o camarote das estrelas do time. Como nós éramos só os goleiros reservas, avisaram que teríamos que nos separar porque nossos ingressos eram de arquibancada.

O Rogério não se conformou e mandou a gente voltar. “Hoje vocês ficam com a gente”, e nos puxou para o camarote. Algumas pessoas têm uma imagem errada do cara. Mas eu e você sabemos como ele sempre nos tratou durante os anos em que crescemos debaixo de seus braços.

Antes de conhecermos o maior jogador da história do São Paulo, éramos apenas moleques que não gostavam de estudar e sonhavam em ser jogador de futebol.

Eu comecei fazendo judô, gostava de estar me movimentando. Fazer esporte era mais fácil que estudar.

Eu lembro de algumas imagens. Saía de São Lourenço da Serra pra treinar no Morumbi. Saía da escola correndo para o treino. Pegava carona com veículos da prefeitura. Já fui treinar em uma Kombi cheia de material hospitalar. Era o que tinha.

Chegava em casa chorando de dor em músculos que eu nem sabia que existiam. Às vezes eu não queria mais voltar aos treinos. Mas voltava.

Você chegou depois, começou a ter disciplina de atleta bem antes de mim e me ensinava a cumprir horários, porque ali a gente não tinha babá e quem perdesse a hora do almoço ficava sem comer.

Dividíamos o quarto com outros dois goleiros e gostávamos de pregar peças neles. O Felipe era nosso principal alvo. Hoje ele já não joga mais. Lembro do dia que não fomos pra escola e colhemos frutinhas vermelhas para zoar o Felipe. Enchemos a cama dele daquilo, coisa de moleque. Ele quis bater na gente. Teve que limpar tudo antes de deitar, tarde da noite. No outro dia ainda tivemos que acordar cedo para o treino.

Toda vez que como pizza eu me lembro de você. Gostávamos de pedir de um lugar que ficava perto do Morumbi. Nós dois amontoando caixas de pizza no canto do quarto. A cada dez, a pizzaria nos dava uma grátis. E com refrigerante!

O dia em que fui para a seleção

Mas um dia a coisa ficou séria. A minha primeira convocação para a seleção brasileira foi com 15 anos. Quando fui para a sub-17, você ficou empolgado com a chance de ocupar meu lugar no São Paulo. Você teria a chance de ser titular em um clássico, contra o Corinthians. Mas chamaram um goleiro mais velho. Perdemos por 1 a 0. 

Te liguei para saber como tinha sido o jogo e você estava puto, com razão. Só pela voz eu já sabia que não tinha jogado. Vida de goleiro reserva é dura.

A gente se via todos os dias, o dia inteiro e até quando não estávamos jogando, queríamos estar juntos. Você dormia na minha casa e eu dormia na sua. Você usava as minhas roupas e eu usava as suas. Vou te contar uma coisa que você nunca soube. Um dia cheguei em casa com uma blusa diferente e minha mãe perguntou onde eu tinha arrumado aquilo.

“É do Weverson, mãe.”

Ela estranhou. “Por que você não usa as suas próprias roupas?”

Eu parei para pensar naquilo. E respondi: "Acho que gosto mais desse moleque que de mim mesmo." 

"Não ficava perguntando o que eu ia mexer"

O dia que mudou tudo

Cara, nesses últimos 11 anos eu venho tentando lembrar o que aconteceu naquela noite, mas é difícil. Eu sei que tinha neblina, talvez fizesse frio. Era uma quinta-feira. Dois dias antes, o São Paulo tinha perdido para o Internacional no primeiro jogo da final da Libertadores de 2006, e nós assistimos da tribuna.

A gente tinha conhecido as meninas do vôlei porque naquela época os times de baixo do São Paulo treinavam no mesmo local que o Finasa/Osasco, do vôlei. Fomos encontrá-las para vir a uma festa aqui em São Lourenço. Era dia do padroeiro da cidade, e a prefeitura geralmente contratava bandas para comemorar.

Nesse ano, por algum motivo, a prefeitura não bancou a festa. Nós resolvemos pegar o carro e ir a uma cidade vizinha, onde tinha uma choperia que a gente gostava. No carro estávamos eu, você, a Natália, a Clarisse e a Paula, todas jogadoras do Finasa. Eu dirigia. A última coisa que eu lembro é de pegar as meninas no apartamento delas.

E então aconteceu.

Na minha próxima lembrança eu estou na cama do hospital. Ainda desnorteado, não tenho ideia do que aconteceu nem da gravidade da minha situação. Quatro meses depois, recebi a visita da Clarisse e da Paula. Quando elas saíram, perguntei para minha mãe por que nem você e nem a Natália tinham aparecido. E ela me contou.

Não houve nem um dia desde então que eu não tenha pensado em vocês. Todo 11 de agosto eu me calo, me fecho, silencio em oração a você e à Natália, que devem estar me olhando de onde estiverem.

Eu me recusei a cair em depressão, a me sentir culpado pelo acidente. Algumas pessoas quiseram que eu me sentisse. Eu estava dirigindo e eu estou vivo. Eu entendo a dor delas, não posso culpá-las também. Se eu pudesse, trocaria de lugar com vocês naquele carro.

A lesão na coluna

Tive uma lesão na coluna, fiquei oito meses no hospital. Os médicos disseram que eu só conseguiria mexer os olhos. Na época da base, me chamavam de “Alegria” porque eu estava sempre sorrindo. Hoje continuo sorrindo. 

Minha vida mudou naquele dia. Mas não me entenda mal, eu sou muito feliz! Podia parecer que não, mas depois do acidente que mudou minha vida e interrompeu a sua, eu tive muitos motivos para voltar a ser alegre.

Sempre fui muito otimista. E  continuo sendo. Tenho vitórias todos os dias, vou atrás das coisas para evoluir. 

Minha mãe ficava do meu lado no hospital jogando cartas. Um dia eu consegui virar uma carta com as mãos, as mãos que eles diziam que eu não conseguiria mexer nunca mais.

Fiz cirurgias, intermináveis sessões de fisioterapia, repetições de movimentos, fortalecimento muscular, treino, treino, e mais treino, dias não totalmente diferentes daqueles que a gente viveu quando jogava futebol. Reaprendi a comer sozinho.

Nós dois passamos a vida voando em bolas, fazendo malabarismo no ar para impedir gols, mas você não imagina a sensação de conseguir levar um garfo à boca pela primeira vez. Minha mãe chorou.

Virei atleta paraolímpico, porque nós dois sabemos que dificilmente conseguiríamos viver longe do esporte. Mas aí vai uma informação surpreendente: me formei em direito e estou estudando para a prova da OAB. Eu, que jamais gostei de estudar.

Até hoje eu nunca consegui conversar com os seus pais, não sei como me aproximar. Entendo que eles ainda devem estar sofrendo com o luto e tenho medo de fazê-los lembrar do acidente. Você nos deixou aos 19 anos. Respeito o tempo deles. Queria que eles soubessem que estou aqui caso eles precisem. Eles poderiam falar tudo o que quisessem pra mim.

O amigo Rogério

Weverson, meu amigo, meu irmão, espero que você saiba que cada vitória que eu tenho hoje é uma vitória que eu preciso compartilhar com você. E nem preciso te contar detalhes. Sei que sabe disso.

Quando eu vejo um jogo do São Paulo, eu lembro de você e lembro das coisas que a gente viveu juntos. Sempre íamos aos jogos juntos.

E lembro do Rogério. O Rogério de boné, peruca e óculos escuros, a caminho do show do U2. E também o Rogério embaixo do gol, sendo nosso ídolo e ao mesmo tempo nosso amigo.

O Rogério foi o primeiro a chegar ao hospital depois do acidente, foi ele quem preencheu minha ficha de entrada. Sempre esteve do meu lado em todos esses anos.

Ele não falava muito, mas às vezes eu só precisava ouvir um “oi”. Ele me deu algumas camisas que ele usou em jogos e eu guardo essas camisas até hoje.

Mas eu queria te falar de uma blusa. A gente vivia junto, morava junto, dormia na casa um do outro. Você vestia minhas roupas e eu vestia as suas. E você tinha uma blusa de frio, vermelha, que você ganhou de um patrocinador. Depois do acidente, eu encontrei essa blusa no meio das minhas coisas.

Sempre que faz frio, eu visto essa blusa. É uma parte sua que permanece comigo, uma lembrança perene do irmão que a vida me deu e de repente me tirou.

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