Herança real

Pós-Edinho, três descendentes de Pelé tentaram (ou tentam) a sorte no futebol. Mas o caminho não é fácil

Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo
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"Pelé parou, Edinho começou"

O dia 6 de fevereiro de 1994 entrou para a história do Santos - e também, por que não, do esporte nacional... Edson Cholbi Nascimento, o Edinho, filho do maior jogador da história, fez sua primeira partida como goleiro do time em que o pai brilhou ao redor do mundo. A torcida santista, que antes se remoía ao ouvir de seus rivais que "Pelé parou, o Santos acabou", abraçou a zoeira: "Pelé parou, Edinho começou".

A presença do DNA do Rei em campo era a esperança de novos tempos na Vila Belmiro. Edinho passou perto disso. Convivendo com a pressão de ser filho de quem era, foi vice-campeão brasileiro em 1995. Saiu três anos depois, com 195 partidas pelo clube no currículo. Jogou ainda por Ponte Preta, Portuguesa Santista e São Caetano antes fechar uma carreira marcada muito mais por pressão do que por títulos.

Após Edinho, outros três descendentes de Pelé tentaram (ou seguem tentando) a sorte no futebol: o filho Joshua e os netos Octávio e Gabriel. O UOL Esporte conversou com os três para saber o quanto o sobrenome atrapalha e, por fim, descobrir se a linhagem real seguirá dentro de campo. Pelé parou. E eles começaram.

Octávio e Gabriel

Pelé estava de passagem por Curitiba quando foi surpreendido pela presença dos irmãos Octávio Felinto Neto e Gabriel Arantes do Nascimento no hotel onde estava hospedado. No primeiro encontro, no saguão do local, o avô foi simpático, abraçou e brincou com cada um deles. Disse que gostaria de vê-los mais vezes - de acordo com a lembrança dos meninos. Não foi o que aconteceu. Eles só se viram aquela vez. Era 2009 e os meninos tinham 11 e 9 anos de idade. 

A relação distante com os netos, hoje com 19 e 17 anos, é fruto da desgastante batalha judicial entre Pelé e Sandra Regina, a mãe da dupla, reconhecida depois de um exame de DNA. Sandra morreu em 2006, dez anos após o reconhecimento, sem jamais ter convivido com o pai biológico.

"Ultimamente há um vínculo mais legal. O Pelé mandou um áudio ao Octávio depois de uma lesão, falou com o Gabriel também, por telefone. Existe uma abertura, talvez pelo fato de a pessoa, pela idade, ficar mais sensível [Pelé tem 77 anos], e os meninos também estão mais dispostos a se comunicar com ele", conta Ozéas Felinto, o pai, responsável pela promoção do único encontro.

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Irmãos em campo

Octávio, o mais velho, foi quem puxou a fila de uma carreira no futebol para os netos de Pelé. Depois que um vídeo com lances bonitos, postado por seu pai, viralizou na internet, o Santos chamou os dois irmãos. A ideia era vestir a camisa do time do avô no futsal, mas a relação não foi adiante. Quando Sandra morreu, o pai levou a família para Curitiba, onde tinha parentes. Octávio e Gabriel também estiveram juntos no Paraná, no São Paulo e no Grêmio Osasco. Não triunfaram.

Octávio rodou: jogou um Campeonato Paulista sub-17 pelo Independente de Limeira, defendeu o Guarani de Divinópolis, ficou no Cruzeiro por um ano e passou pelo Guarani de Campinas. Tudo antes de completar 19 anos. Gabriel passou por cinco clubes. O último foi o Taboão da Serra, em que atuou pela categoria sub-15 até maio do ano passado, quando uma lesão atrapalhou sua transição para os juvenis. 

"Não adianta ter o sobrenome. Meu avô fez história no futebol, isso é indiscutível, foi melhor do mundo. Mas ele não pode correr por mim. Está no DNA, mas eu tenho que treinar e fazer minha carreira. Quero fazer minha história pelo Gabriel, não pelo Edson", diz o mais novo da linhagem.

Ele é o rei do futebol, mas ele não vai jogar por mim. Até porque não sei se ele ainda aguenta (risos)".
Octávio, que não é Arantes do Nascimento: seu nome é uma homenagem ao avô paterno.

Acervo pessoal Acervo pessoal

Octávio: sinal fechado

Octávio está fora do futebol há mais de um ano. Sofreu duas lesões consecutivas, a mais recente no tendão, que o levou à mesa de cirurgia no fim de janeiro. Sem contrato, ganhou peso e viu as perspectivas no futebol se esvaziarem. Hoje, canta, toca bateria e conduz grupos de jovens em uma igreja evangélica em Osasco, onde o pai trabalha como pastor. Eles ainda administram uma clínica para recuperação de dependentes químicos no litoral de São Paulo. No começo de 2017, Octávio também entrou na faculdade de Direito. A inviabilidade do futebol abriu outras portas.

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Gabriel: não é o fim

Gabriel também está sem contrato. O atacante, que completa 18 em julho, busca um clube para realizar o sonho de disputar a Copa São Paulo. Depois de Santos, Paraná, São Paulo e Grêmio Osasco, ele conseguiu uma boa sequência de jogos no Taboão da Serra e até jogou um Estadual sub-15. Há um ano, uma cotovelada quebrou seu nariz em três lugares. O neto de Pelé foi operado. Voltou, mas, treinando separadamente, deixou o clube quando seu contrato acabou. Sem time, ele treina à parte com um personal trainer. Está no último ano da escola e quer voltar a jogar ainda no primeiro semestre.

Às vezes não é o que Deus planejou para a minha vida. Não sei o que pode acontecer no futuro, mas acredito que seja bem difícil voltar a jogar. Rompi o tendão, ganhei peso e dezenas de outras coisas. Mas foi um aprendizado. Agora é ver se vou melhorar 100%. Espero voltar a jogar, mas se não for o projeto de Deus, vamos tocar a vida

Octávio Felinto Neto, Neto de Pelé, sobre suas perspectivas de carreira

Eu entendo que ele é um homem muito ocupado, viaja, tem compromissos, então ainda não temos muito contato. Mas na época da cirurgia, ele mandou um áudio. Dizia estar preocupado, mas disse que era normal, que o que mais tinha na época dele era quebrar osso, perna e tal, que os caras caçavam ele em campo

Gabriel Arantes do Nascimento, neto de Pelé, sobre um raro carinho do avô: uma mensagem de aúdio

Gabriel Carneiro/UOL Esporte Gabriel Carneiro/UOL Esporte

Projeto social

Junto com o pai, Octávio e Gabriel atuam com jovens evangélicos em Osasco. A família se dedica a um projeto social chamado "Restaurando Vidas em Cristo". Em um terreno de 5 mil m² na cidade litorânea de Itanhaém, buscam recuperar e ressocializar dependentes químicos com um plano de tratamento de nove meses. O projeto foi criado por Sandra, filha de Pelé, quando era vereadora em Santos. A casa é administrada por pessoas recuperadas do vício e recebe doações e voluntários.

Projeto da mãe, trabalho dos filhos

Ricardo Saibun/Santos FC

O filho do Rei e a síndrome de Zoca

Joshua Seixas Arantes do Nascimento é filho de Pelé com Assíria, em casamento que durou 14 anos. Ele a irmã gêmea Celeste são os filhos mais jovens do Rei. Têm 21 anos. Criado entre o Brasil e os EUA, o caçula se aventurou no esporte cedo, aos dez anos, em campeonatos internos do clube social do São Paulo. Quando mudou de país, começou a jogar por um clube chamado Florida Rush e percebeu que futebol era seu plano de vida.

Mas como o filho do Pelé jogaria em algum time que não fosse o Santos? "Chegou um certo ponto em que eu queria tentar", reflete o garoto, anos depois. "Sempre quis jogar no Santos, porque os homens da família todos jogaram no Santos. Eu também queria tentar e achei que tinha capacidade", conta Joshua.

Além do próprio Pelé e de Edinho, Joshua se refere a Jair Arantes do Nascimento, o Zoca, irmão mais novo do Rei. Ele jogou no Peixe nos anos 60, fez um gol contra o Corinthians, mas sucumbiu ao peso do parentesco. Pendurou as chuteiras precocemente para administrar os negócios milionários de Pelé. Nos anos seguintes, as comparações de jogadores com familiares ficaram conhecidas como "síndrome de Zoca". Joshua ignorou a síndrome do tio.

Morava nos Estados Unidos. Quando decidi voltar ao Brasil para jogar futebol, minha mãe virou e falou: "Quê?". Era meu primeiro ano do ensino médio, ela não queria deixar. Aí meu pai encheu o saco dela. Ele estava morando no Brasil e a convenceu. Fiquei dois anos e meio no Santos.Foi a melhor experiência que pude ter

Joshua, filho mais novo de Pelé

Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC

Príncipe da Vila

Então com 15 anos, Joshua fez um mês de treinamentos com a categoria sub-17 do Santos. O ano era 2012. Em fevereiro de 2013, foi chamado para assinar contrato. Ele chegou de um futebol de nível técnico mais fraco e sem rotina de atividades, mas teve acompanhamento especial para chegar ao nível dos companheiros: treinar com seu pai.

Quando havia tempo, Pelé e Joshua iam para o campinho da casa no Guarujá bater bola. O pai ensinava macetes do jogo, como chutes e dribles, assistia aos treinos e dava conselhos. Quando assistiam aos jogos na TV, Joshua perguntava ao pai que solução daria a determinados lances. Não havia professor melhor.

No dia a dia com os companheiros, Joshua era chamado de "Príncipe", "Arantes" e "filho do homem". Mas não se lembra de tratamento diferenciado ou bullying excessivo. "Todo mundo sabia que eu era filho do Pelé. Não tinha como não saber, mas todo mundo tratava bem. Com os técnicos, se eu estava jogando bem, me colocavam, senão não. Nesse ponto, achei ótimo. Jogadores, comissão, todos sempre foram honestos. Óbvio que tem aquele respeito por ele [Pelé], mas nada de regalia. Para ser sincero, até hoje não tenho noção do que é meu pai. Nunca pesou e nunca me cobrei também".

Foto: Pedro Ernesto Guerra Azevedo Foto: Pedro Ernesto Guerra Azevedo

Três jogos depois

Joshua fez apenas três partidas pelo Santos. Duas na categoria sub-17 e uma pela sub-20, quando foi comandado pelo técnico Pepinho Macia, filho de Pepe, companheiro de seu pai na época de ouro do Peixe. O filho do Rei não disputou a Copa São Paulo de Juniores e deixou o clube antes de se profissionalizar. Em junho de 2015, após pouco mais de dois anos, pediu para ser liberado e teve o contrato encerrado sem grandes problemas.

Formado no ensino médio e sem perspectivas de curto prazo dentro do Santos, Joshua achou melhor mudar de rumo. A influência da irmã Celeste, que ele define como "o crânio da família", levou o garoto de volta aos Estados Unidos. Ela estava prestes a entrar na faculdade de Medicina e incentivou Joshua a fazer testes para a área de Educação Física. O filho de Pelé visitou a universidade, fez duas vezes o teste de aprovação, conversou com o técnico do time de soccer e, um mês depois, estava matriculado. Ele não se arrepende da decisão.

Futebol não é para todo mundo. Se fosse fácil todo mundo jogaria. Por mais que você tenha sobrenome, todo mundo espera muito de você. Era meu sonho, mas eu, sinceramente, achei que seria mais difícil admitir que eu não viraria profissional, que eu não chegaria lá. Hoje estou bem tranquilo

Sobre a decisão de parar

Vivi coisas boas, não posso reclamar. Estive no clube que sempre amei, jogando e convivendo com jogadores e ídolos, como Robinho. Foi muito bom, agradeço a Deus. Eu não sabia nem andar com a perna esquerda, agora sei chutar (risos). Aprendi muito com os técnicos. Até hoje mantenho contato

Sobre o que aprendeu em Santos

Reprodução Reprodução

"The future"

Joshua está nos EUA há dois anos. Vai se formar em Ciência do Esporte pela Universidade de Tampa, na Flórida, em 2019 - e já pensa em especializações após a graduação. Ele joga futebol pelo time da faculdade, mas no último semestre abriu mão dos treinamentos para aumentar as notas. No fundo, ainda não desistiu de jogar futebol profissionalmente e sonha com a MLS. Mas sabe que é uma possibilidade remota.

Caso não atue em alguma liga do país, Joshua cogita outras funções, como técnico, preparador físico ou dentro da área de ciência do esporte, trabalhando com nutrição, por exemplo. Ou, como ele diz, "algo no futebol sem ser jogar". Trabalhar no Brasil (e no Santos) também está nos planos. 

"Minha mãe até reclama que, aos sábados, vou para casa e fico assistindo jogos. Começo às 7h30 com o Campeonato Inglês. Aí são dois jogos seguidos. Depois tem o Espanhol e fico até 16h vendo jogo. Ela pergunta: 'ei, você não vai fazer nada, não?'. Falo que estou estudando (risos)".

Mauro Pimentel/AFP Mauro Pimentel/AFP

Família real

Se o vô der uma mão, eles conseguem".

Um dos planos estabelecidos por Octávio e Gabriel, os netos de Pelé, foi revelado pelo pai, Ozéas: jogar e estudar nos EUA, como Joshua. Sem perspectivas próximas no futebol brasileiro, os meninos acreditam que o intercâmbio cultural seja a melhor saída. Os irmãos brigam pelo visto de estudante enquanto fazem contatos com agências que facilitem este trabalho. Uma ajudinha do Rei, financeira e com contatos, não seria má ideia.

Joshua sabe do desejo dos sobrinhos. Ele conheceu Gabriel na casa da avó, Dona Celeste. Octávio estava em concentração com seu time da época e não participou do encontro. Atualmente, não há contato frequente entre os três únicos descendentes de Pelé que tentam a sorte no futebol.

Michael Regan - FIFA/FIFA via Getty Images Michael Regan - FIFA/FIFA via Getty Images

Rei hi-tech

Nos últimos dois anos, Pelé passou por duas cirurgias na cabeça do fêmur. Por causa disso, andava com apoio de um andador nas poucas aparições públicas recentes. Aos 77 anos, vive no litoral de São Paulo com Marcia Cibele Aoki, com quem está casado há dois anos. Ele tem cinco filhos de outros dois casamentos, além de duas filhas de outras relações - uma delas é Sandra, mãe de Octávio e Gabriel.

Joshua e Celeste, que vivem nos Estados Unidos, estão encontrando novos meios de se comunicar com o pai. "Ele aprendeu há uns três anos como manda mensagem de SMS. Aí tentou Whatsapp, mas ficou um dia só. Fizemos um grupo e ele não conseguia responder todo mundo (risos), então voltou a mandar mensagem", conta Joshua.

"Outro dia, ele aprendeu a mandar emoji e está mandando agora. Teve um dia que fez uma piadinha e mandou aquela carinha de óculos escuros. O rei está tecnológico", diverte-se o jogador, que além das mensagens ainda se comunica com o pai por meio de uma ligação semanal, geralmente aos domingos.

O rei hi-tech dificilmente terá sucessão em campo.

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