Geração rolinho

Quem nasceu nas redes sociais adora lances de efeito. Mas o básico do futebol, como o passe, virou desafio

Adriano Wilkson, Bruno Freitas e Gabriel Carneiro Do UOL, em São Paulo
Adriano Wilkson/UOL

Querem driblar, não sabem passar

Virar jogador profissional de futebol arrebata o imaginário de crianças brasileiras há gerações. A diferença da geração Facebook, porém, é que esse fascínio não mais se constrói em peladas no meio da rua, mas nas telas de TV ou de celulares. Os jovens aspirantes a craques suspiram por dribles no Youtube ou lances de efeitos compartilhados no Instagram - até jogadas virtuais no videogame estão valendo.

Entre prós e contras, os jovens que se lançam ao futebol já largam com uma cabeça globalizada, abastecida de conhecimento tático do jogo. Por outro lado, sem a experiência da pelada com os amigos, esses mesmos garotos apresentam um déficit básico: todos querem dar um rolinho, mas faltam noções técnicas das mais simples, como para dar um passe mais preciso ou para conseguir um chute mais forte.

Quem sofre com isso são os educadores. Obrigado a revelar talentos no futebol, esses profissionais se viram, nos últimos tempos, tentando contornar essa carência. Até treinos de pega-pega são usados para compensar o atraso de desenvolvimento motor. Hoje em dia, tem professor de fundamentos fazendo sucesso no YouTube e clube de ponta criando alternativas para lidar com a "geração videogame" que já bate à porta de suas categorias de base.

Treino de pega-pega para a base

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No Brasil, querem jogar como no Barcelona

O espanhol Agustín Peraita está no Brasil desde 2015 para coordenar a escolinha de futebol do Barcelona no país. Só em São Paulo são cerca de mil crianças que treinam atualmente em duas unidades, cativadas pela ideia de se desenvolver através da badalada cultura de formação dos catalães. A metodologia de trabalho é a mesma das categorias de base que revelaram Messi, Iniesta e tantos outros.

Estudioso do futebol, Peraita é um especialista teórico sobre o trabalho do técnico do Manchester City e tem um livro lançado a respeito da filosofia do cultuado catalão: "Quiero que mi equipo juegue como el Barça de Guardiola" ("Quero que a minha equipe jogue como o Barça de Guardiola").

É em razão deste tipo de expertise que muitas crianças e pais se interessam pela escola do Barcelona em São Paulo.

O Leo, por exemplo, assiste aos jogos do Barcelona e comenta o fato de as jogadas serem mais rápidas, com toques mais curtos. Comenta muito o fato de o Neymar segurar muito a bola. E fala como hoje o Barcelona, sem o Neymar, virou um time mais coletivo. É perceptível para ele isso. E eles devem aprender aqui [na escolinha do Barcelona] isso. Deve ser uma coisa passada aos meninos

Joe Martins

Joe Martins, pai de Leo Suarez, aluno da escolinha do Barcelona em São Paulo

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Adriano Wilkson/UOL Adriano Wilkson/UOL

Professor particular ensina a chutar

Durante uma manhã nublada, três garotos se revezavam repetindo gestos e movimentos técnicos em um campo de grama sintética na capital paulista. A cada erro cometido, o professor tomava a bola, simulava o movimento correto e pedia para o pupilo repetir. Com o tempo, todos eles passaram a fazer do jeito certo.

O ex-jogador Christiano Falconi é professor particular de fundamentos de futebol. Assim como fazem tutores tradicionais, que ensinam o que o aluno não entendeu sobre a aula de português ou matemática da escola, ele trabalha com garotos que, em sua maioria, já fazem parte de categorias de base de clubes paulistanos. Ele oferece treinos específicos de passe, chute, domínio de bola ou drible, por exemplo. Ele tem cerca de 40 alunos, que precisam pagar à parte essas "aulas particulares".

"Os clubes já querem o jogador pronto e não se preocupam muito com a formação", diz o ex-lateral com passagens por clubes médios e pequenos.

A pressão por resultados e títulos já nas categorias inferiores tem feito os clubes apostarem em atletas cada vez mais fortes fisicamente, mesmo que tenham uma técnica menos apurada. Christiano lucra nesse meio do caminho. "Se o menino não for bom, eles descartam".

Reprodução/Youtube Reprodução/Youtube

Aula de fundamentos no Youtube

Christiano Falconi identificou uma demanda tão grande por esse tipo de treino específico que criou um canal no Youtube para comentar formas de aperfeiçoar técnicas. Hoje, o "Eu Treino Fundamento" tem mais de 80 mil inscritos.

Jovens jogadores do Brasil e de outros países passaram a procurar o ex-atleta para que ele os ensinasse o gestual prático: posicionamento do braço e direção do pé de apoio na hora do chute.

Falconi acredita que comissões de grandes clubes europeus estão mais preocupadas com a formação de seus jogadores do que os brasileiros. O instrutor ainda detecta outro problema que alguns de seus alunos enfrentam atualmente: a falta de atenção em um mundo cheio de distrações.

Há sete anos eu dava um treino de aquecimento, por exemplo. Hoje, dou o mesmo treino, mas o menino não consegue acompanhar, não consegue entender o que eu peço. Parece que eles estão muito mais distraídos

Christiano Falconi

Christiano Falconi, ex-jogador e professor particular de fundamentos de futebol

Lados negativo e positivo

Reprodução Reprodução

É a geração mimimi?

"A gente vem fazendo essa análise, conversando com muitos profissionais da área, ouvindo o lado dos pais também, realmente a gente até brinca sobre a geração 'mimimi'. A geração que, se não acontece como ele quer, ele chora, grita e corre para o pai", diz Luis Fernando Leal, coordenador do projeto Goal Soccer, que revela garotos para clubes do país.

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Videogame pode ser bom

"Pode atrapalhar. E, nesses casos, tem de ser controlado pelos educadores. Mas em alguns casos ajuda, porque trabalha sua cabeça em relação a estratégia, padrão de jogo. Nas nossas viagens, já percebi menino jogando no videogame com dois toques, que é uma metodologia nossa de trabalho", afirma o professor Luis Fernando Leal.

Olavo Guerra/Agência Corinthians Olavo Guerra/Agência Corinthians

Corinthians criou e desfez departamento de fundamentos

No segundo semestre de 2016, o Corinthians anunciou a criação de um novo departamento interno, o "Setor de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento de Habilidades Técnicas e Específicas". A ideia era lapidar e maturar jovens jogadores das categorias de base, mas com perspectiva futura de aplicar os trabalhos a jogadores recém-contratados ou em baixa no time profissional. As tais "habilidades técnicas e específicas" são os fundamentos técnicos do jogo de futebol. Em outras palavras: o clube notou que era necessário realizar atividades individualizadas voltadas às deficiências técnicas de seus jogadores.

"A ideia central é a de que cada jogador responde de uma maneira diferente aos treinamentos. Ter um setor especialmente voltado para melhorias particulares poderia contribuir para aparar arestas e preencher lacunas do desenvolvimento dos jogadores", explicou Rodrigo Leitão, que foi coordenador geral do departamento de formação do Corinthians na época do projeto.

Pouco mais de um ano depois, a iniciativa não existe mais

Em março de 2017, o Corinthians passou por uma reformulação no comando das categorias de base. Pelo que apurou o UOL Esporte, antigos conselheiros do clube que deram apoio ao presidente Roberto de Andrade para evitar um processo de impeachment que corria internamente tiveram a "fidelidade" compensada com mais poder na base. O então diretor Fausto Bittar Filho pediu demissão do cargo em razão da ingerência. Carlos Nujud, conselheiro vitalício do clube e ex-diretor de futebol entre 1998 e 2000 acabou assumindo. Leitão saiu e quem chegou para ocupar cargo semelhante foi o ex-goleiro Yamada, com diferentes filosofias de trabalho.

"A ideia era muito boa, mas não acontecia na prática. Havia uma demanda muito grande de atletas, e os treinadores ficavam desfocados, não otimizavam o treino. Nós reduzimos elencos, tiramos jogadores sem projeção do processo e criamos os trabalhos de período oposto. Os treinadores, além da categoria deles, transitam em outras para ajudar ao menos duas vezes na semana, em cima das carências dos jogadores", disse o atual gerente da base corintiana.

Divulgação/Ponte Preta Divulgação/Ponte Preta

Educadores também precisam mudar

Por meio de departamentos específicos ou não, os clubes brasileiros têm manifestado preocupação em aperfeiçoar fundamentos do jogo. A rotina de treinos e viagens faz com que parte da solução esteja em promover exercícios que envolvam tomada de decisão em problemas reais de jogo. Porém, mesmo assim, ainda é um desafio promover evolução de passes e finalizações, drible, comportamento em confrontos um contra um, condução, cabeceio, domínio, ambidestria... Inclusive com os mais jovens.

"Cada geração tem uma visão e uma percepção diferentes sobre as coisas que acontecem no mundo. A tecnologia, o acesso à informação, as opções de entretenimento, os programas de TV, a linguagem e outras tantas coisas mudaram muito. É fácil de certa maneira explicar porque os jogadores que chegam nos clubes hoje são muito diferentes daqueles de décadas passadas. O que não adianta é fazer as mesmas coisas que eram feitas antes, com jogadores diferentes, e tentar alcançar os mesmos resultados. Não adianta transferir o problema. A mudança do mundo é fato. Ponto final", refletiu Rodrigo Leitão (na foto ao lado), que hoje atua como coordenador técnico da base da Ponte Preta e dá aula em cursos de formação da CBF.

Não tenho dúvida de que existe um déficit de fundamentos no futebol atual. Tem jogadores no topo da pirâmide do sub-20, com bons currículos e títulos, mas que nunca tiveram suas deficiências atacadas. O nível de exigência do futebol profissional é alto e por isso fazemos esse trabalho desde cedo, na fase mais sensível dos jogadores para receber estímulo. Se melhorar um, dois, três jogadores vou conseguir formar um elenco vencedor e mais pronto para estar no profissional

Fernando Yamada, gerente das categorias de base do Corinthians

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