
A Copa Libertadores ajudou a moldar o futebol brasileiro nas últimas décadas. Concentrou vários significados ao longo de suas quase 60 edições. Tornou-se sinônimo de catimba, rivalidade, provocação, jogo duro. Também representa o reinado em seu continente e o passaporte para conquistar o mundo. Virou uma obsessão cantada e incorporada pelas nossas torcidas.
Para mostrar um pedaço do DNA desse torneio, personagens que participaram de cinco títulos históricos brasileiros recontam suas experiências nas partidas decisivas. Jogadores de Atlético-MG, Corinthians, Flamengo, Palmeiras e São Paulo relatam como viveram suas finais sul-americanas.
A primeira de cinco reportagens dessa série especial tem ícones do título do Flamengo de 1981. Recupera detalhes do clima de guerra que cercou a final contra o Cobreloa (CHI), levada para um terceiro jogo, de desempate, em Montevidéu. O Flamengo venceu o primeiro, no Maracanã, por 2 a 1, mas perdeu de 1 a 0 em Santiago. Brasileiros acusam, até hoje, o zagueiro Mario Soto de usar uma pedra para agredi-los durante este confronto.
O sangue derramado no campo chileno virou combustível para a decisão. Dos mais inflamáveis. É o que eles dizem.
“A confusão toda começou, na verdade, em uma jogada da segunda final em que o outro zagueiro do Cobreloa, em uma disputa no escanteio, cabeceia meu cotovelo e cai desmaiado. Aí o Mario Soto quis sair agredindo todo mundo.
O Mario Soto realmente tinha uma pedra na mão. Só que, quando falávamos com o árbitro, ele deixava a pedra cair em alguma parte do campo. E ele sempre pegava a pedra de novo e fazia as mesmas coisas.
Naquele tempo era duro jogar a Libertadores. Não tinha muito controle antidoping e os jogadores sul-americanos normalmente abusavam um pouco da violência. Por vezes, até parecia que havia algum outro componente que os fazia perderem o controle, ficarem muito agressivos”
Durante a semana, eles falaram que iam fazer e acontecer, que brasileiro é medroso. Fui para o jogo disposto ao tudo ou nada. Se ficasse mais violento, eu iria dançar conforme a música. Eles poderiam até nos vencer jogando bola, mas não pela violência"
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Por mais que eu estivesse focado, claro que entrei em campo puto da vida. Dizia para os colegas que ia revidar [a agressão de Soto]. Falamos algumas coisas um para o outro dentro de campo, mas à distância"
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Deixem esse cara comigo. Ele se mostrou muito valente na casa dele. Vamos ver agora, se realmente ele tem toda aquela disposição. Acho que é bom ele não dar bobeira na minha frente, pois com a raiva que estou não me responsabilizarei pelos meus atos"
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"Devido ao que aconteceu no Chile, alguns jogadores estavam nervosos antes da partida em Montevidéu. Tinha muita gente, principalmente dirigentes, falando um monte de besteira, em revide, não sei o que lá, em fazer isso, em fazer aquilo.
Por isso, falei para eles [companheiros de time] que, se quiséssemos ser campeões, não tínhamos que pensar em retaliação. Seríamos campeões jogando bola, nosso time era melhor. Se saíssemos daquilo que fazíamos sempre, nos igualaríamos a eles [ao Cobreloa].
Eu estava tranquilo. Focado no que tinha de fazer dentro de campo e pronto. Não tinha outra alternativa"
"Correu essa história de que o time deles gostava de praticar o antijogo, enquanto nós éramos o time que todo mundo gostava de ver, do toque de bola, que jogava para frente. Por isso, quase todo mundo no estádio estava a nosso favor. Além disso, havia muitos flamenguistas na região"
Adílio, lembrando do apoio no estádio Centenário, em Montevidéu
"Eles tiveram que ficar 'piano' porque, logo no primeiro tempo, um cara quis dar uma entrada e o juiz já botou ele para fora. Entenderam que ali o buraco era mais embaixo. O juiz não estava ali para brincar, e o Cobreloa precisou jogar bola mesmo"
"Eles já estavam com um a menos e perdendo de um a zero. Aí um jogador deles deu uma entrada no Júnior, eu acabei dando uma entrada mais dura nele e o juiz quis equilibrar o jogo me expulsando também. Nem amarelo eu tinha"
"Quando saiu aquela falta [que originou o segundo gol], tínhamos quase certeza que ela entraria. Só por um milagre não aconteceria isso. Com o Zico, cobranças de falta eram, para nós, quase um pênalti. E sem goleiro"
"Mostramos a eles que nem a violência, nem pedras escondidas, podem com o nosso futebol. Infelizmente não disputei o último jogo, mas tenho a satisfação de me sentir vingado com a lição de futebol que demos ao mundo"
Flamengo: Raul; Nei Dias, Marinho, Mozer e Júnior; Leandro, Andrade e Zico; Tita, Nunes (Anselmo) e Adílio
Cobreloa: Wirth; Tabilo, Páez (Múñoz), Soto e Escobar; Jiménez, Merello e Alarcón; Puebla, Siviero e W. Olivera
Data: 23 de novembro de 1981
Local: Estádio Centenário, em Montevidéu (URU)
Público: 30.200 pagantes
Árbitro: Roque Cerullo (Uruguai)
Gols: Zico, aos 18min do primeiro tempo e aos 39min do segundo tempo
Cartões amarelos: Júnior (Flamengo); Escobar (Cobreloa)
Cartões vermelhos: Andrade e Anselmo (Flamengo); Jiménez, Mario Soto e Alarcón (Cobreloa)
"Aprendi nesta Libertadores o que é ser técnico: é sofrer sem poder entrar em campo; é gritar sem ser ouvido; é querer dar um soco no olho do Mario Soto e ter de mandar um representante. Enfim, é péssimo”
Paulo César Carpegiani, à revista Placar
“Eu era bem pequeno quando o Brasil foi tricampeão no México. E lembro perfeitamente que meu pai resolveu me levar lá na avenida Presidente Vargas para receber os jogadores. Eles desfilaram em um carro de bombeiros e foi uma coisa impressionante, eu nunca tinha visto aquilo no Rio, gente espalhada para todo canto desde o aeroporto.
E foi justamente isso que aconteceu quando o Flamengo venceu a Libertadores. O time desfilou pelo centro do Rio e aconteceu igualzinho. Foram as únicas duas vezes que vi o Rio envolvido assim ao receber uma delegação após um título”
A chegada no aeroporto do Rio foi o maior tumulto. Era muita gente, pessoal tentando invadir meu carro. Naquela época não era como hoje, que você coloca todo mundo no ônibus e vai embora. Não tinha segurança, não tinha nada. Foi muito bom e ao mesmo tempo complicado"
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Não deu nem tempo para 'cair a ficha' porque estávamos na final do Carioca. Jogamos sete finais em um mês. Os três da Libertadores, mais três do Carioca e o Mundial. Estávamos sempre em concentração. Acabava um jogo, já estávamos concentrados para o outro"
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Eles [Cobreloa] são muito sujos. O que aconteceu em Santiago não poderia jamais ter ocorrido. Estou bastante magoado com isso tudo e levarei algum tempo para me recuperar. Felizmente, nós conseguimos superar tudo isso e estamos de volta ao Rio de Janeiro, satisfeitos e campeões"
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“Dada a proporção que tomou a situação com o Mario Soto, se pudesse eu voltaria o filme para consertar o que aconteceu. Se pudesse, retirava o cotovelo naquela bola em que subi com o outro zagueiro para o Soto não ficar tão irritado comigo e descontar nos meus colegas”
Estávamos no aeroporto em Los Angeles, esperando a conexão para o Japão para disputar o Mundial, e quem aparece? O Mario Soto com a mulher e os três filhos. Eles estavam indo para a Disney e encontraram a delegação todinha do Flamengo. Eu disse que ele só não iria apanhar porque estava com a família. Qual era a chance de esse encontro acontecer? Para você ver como é o destino."
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