Falta gol de falta

Por que essas cobranças de bola parada deixaram de ser uma arma letal no futebol brasileiro?

Diego Salgado Do UOL, em São Paulo
Ricardo Nogueira/Folhapress
Divulgação/SantosFC Divulgação/SantosFC

De decisivos a esquecidos

Era comum nas décadas passadas: a falta na entrada da área - em alguns casos até mesmo na intermediária - significava uma chance clara de gol. Os responsáveis por isso atendiam pelo nome de Rivellino, Nelinho, Zenon, Neto, Zico, Roberto Dinamite, Marcelinho, Alex, Marcos Assunção, Rogério Ceni, entre outros grandes jogadores do futebol brasileiro.

Nos últimos anos, porém, os gols de falta sumiram dos gramados do país. Para se ter uma ideia da escassez, no último ano, a redução chegou a 61%, passando dos 44 gols na edição do Campeonato Brasileiro de 2011 para apenas 17 no Brasileirão 2016.

UOL Esporte mostrará os prováveis motivos que levaram a essa situação. Para isso, a reportagem escutou grandes batedores de falta da história, jogadores que se aposentaram há pouco tempo e atletas que estão em atividade.

Arte/UOL
Thomas Santos/AGIF Thomas Santos/AGIF

Poucos marcaram de falta em 2017

Nesse ano, somente Vasco, Cruzeiro, Atlético-MG e Fluminense, entre os 12 times grandes do país, marcaram gols de falta. O Vasco foi às redes com Nenê, na Florida Cup, contra o River Plate-ARG. Rafael Sobis e Robinho fizeram pela equipe cruzeirense. No Galo, o venezuelano Otero (foto) acertou uma cobrança diante do Joinville, na Primeira Liga. O último a marcar foi Sornoza, do Flu, na Copa do Brasil, contra o Sinop.

Arte/UOL

Você lembra como foi o último gol de falta do seu time?

Especialistas apontam um culpado

Eles treinam pouco, é preciso ter muita dedicação para esse fundamento. Não é de uma hora para outra que começa a fazer gols. Sempre treinei muito. Eu fiz 124 gols de falta. Isso só no profissional, sem contar a base. Para chegar a esse número foram muitos dias de treinamento.

Marcos Assunção

Marcos Assunção

Nós temos batedores da falta, que batem bem na bola, mas fazem gols uma vez ou outra. Eles não têm sequência. Não ficam conhecidos por serem grandes cobradores de falta. Isso para mim é falta de treinamento. É o cara que bate bem na bola, mas não treina o suficiente para ter um índice de acerto alto.

Nelinho

Nelinho

Hoje o atleta tem pressa para sair do treino. Não tem ousadia, é preciso arriscar, mas hoje eles ficam com medo de uma vaia. Jogador hoje tem pressa, não tem paciência, não quer fazer a repetição. Os treinamentos vão colocá-lo em um patamar maior para decidir jogos.

Marcelinho

Marcelinho

Xinhua/Xu Zijian Xinhua/Xu Zijian

Restrição de Felipão e até de Capello

"Muitas vezes o Felipão falava que ia lesionar, mandava embora do treino, falava que precisava de mim no jogo." A atitude, segundo o ex-jogador Marcos Assunção, é recorrente no futebol e aconteceu até com Fabio Capello, quando ele defendia a Roma: "Ele também pegava no meu pé", contou o jogador, que muitas vezes chegou a discutir com técnicos.

Marcelinho também viveu essa situação na carreira. "Tinha restrições, mas você sabe o limite do corpo. E não tem limite para quem tem 17 anos. Com mais de 30, sim, diminui a quantidade. Hoje há mais suporte para o atleta treinar em alto rendimento. É questão de arriscar mais, treinar e ter confiança e, se descobrir que tem o mínimo de talento, persistir no treinamento", disse.

Já com Nelinho, exímio cobrador do time do Cruzeiro na década de 1970, também não tinha conversa. "Comigo nem davam opinião. Quando terminava o treinamento, todo mundo ia embora, eu ficava sozinho no campo. Chamava um goleiro que estivesse à disposição ou um auxiliar de cozinha que tinha no Cruzeiro. Não era por acaso, é repetição", afirmou o ex-lateral direito.

Cobradores atuais se defendem

Em 2015, o Tite cobrava muito. Não era exagerado, pegava dez bolas de cada lado e enfatizava muito isso, o que ajudou bastante. A barreira anda um pouco e dificulta para o batedor. É questão de treinamento e dom.

Jadson

Jadson

Sinceramente é uma coisa que até pouco tempo atrás nós jogadores ficávamos depois do treino. Nos clubes onde passei sempre tiveram bons cobradores. Vamos também dar méritos aos goleiros talvez.

Michel Bastos

Michel Bastos

Vou continuar cobrando, tentando e chutando. No jogo há só uma oportunidade e tem de estar preparado. A gente fica cansado, mas é importante. A meta é bater mais faltas, até 30 por treino. Estou me pressionando.

Fellipe Bastos

Fellipe Bastos

Fábio Borges/ VIPCOMM Fábio Borges/ VIPCOMM

Há mesmo risco no futebol atual?

De acordo com o preparador físico Antonio Mello, que já treinou grandes cobradores de falta, como Alex, Marcelinho e Ricardinho, é preciso ter cuidado com a condição física dos jogadores. Ele, porém, acredita que a atividade não afeta o profissional.

"É claro que é preciso tomar cuidado para não agredir o atleta, mas não vejo nenhum problema em treinamento específico. Não é prejudicial ao atleta. Eu sempre incentivei. É preciso incentivar. Se não treinar falta, está fechando uma chance de marcar gol. É preciso encontrar adequadamente um momento para treinar e incentivar esse cara a desenvolver esse potencial", disse Mello.

O preparador físico admite que hoje os jogos exigem mais dos jogadores, que podem ficar cansados ao fim dos treinos. Mas Mello diz que os gramados têm dimensões menores. "Os jogos estão mais intensos, mas os campos estão menores. Se joga num campo pequenos hoje em relação aos do passado. É uma redução muito grande", afirmou.

A rotina dos especialistas

  • Zico

    O ex-camisa 10 do Flamengo treinava três vezes por semana, com até 100 faltas em cada atividade e tinha até que improvisar pelo fato de não ter barreira móvel. "Eu tinha de chamar alguns funcionários quando não tinha mais jogador, Quando não tinha nada, eu pendurava camisa no ângulo e tentava derrubar. Improvisava de alguma maneira", disse.

    Imagem: Agência O Globo
  • Marcos Assunção

    A repetição nos dias que antecediam os confrontos era rotina para o ex-volante. "Sempre treinava dois dias antes dos jogos. Se o jogo fosse domingo, treinava sexta e sábado. Sexta um pouco mais, umas 60, 80 faltas. No sábado umas 20, 30, pois a perna tinha de ficar mais tranquila para o jogo", frisou.

    Imagem: Fernando Donasci/UOL
  • Marcelinho

    Segundo o camisa 7 do Corinthians no fim da década de 1990 e começo de 2000, os treinos se davam diariamente. "Eu chegava a chegar uma hora e meia antes do treino começar e ia embora uma hora depois. Treinava de manhã e à tarde quando o time trabalhava meio período. O número de repetições te leva à perfeição", ressaltou.

    Imagem: Antonio Gaudério/Folhapress
  • Nelinho

    O ex-jogador do Cruzeiro, Atlético-MG e da seleção brasileira também treinava todos os dias e apostava na variação de posição. "Só não fazia no dia do jogo. Começava chutando do escanteio da direita e ia parar do outro lado. Treinava falta com barreira e sem. Ficava uma hora, uma hora e meia", destacou.

    Imagem: Allsport UK /Allsport

No passado, falta era quase gol

Jorge Araújo/Folhapress Jorge Araújo/Folhapress

Dedicação do "Camisa 10 da Gávea"

Nos tempos de Flamengo, Zico treinava até altas horas, mesmo quando a luz do dia já não estava presente. Naquela época, o time rubro-negro, segundo Zico, trabalhava sempre à tarde. Na véspera do jogo, o camisa 10 tinha de pedir para o goleiro Raul Plassmann ficar com ele até mais tarde. Para trabalhar à noite, eles dependiam da luz artificial do Jockey Club, localizado ao lado da Gávea.

"Não tinha terceiro e quarto goleiros. Pedia para ele ficar no gol. Ficava escuro e ele falava para ir embora. Eu falava que dava para continuar com a luz do Jockey, a gente treinava ao lado. Depois eu falava que ele não precisava ir na bola, era só ficar parado. E ainda dizia: 'você está reclamando, mas na terça-feira vai ficar feliz na hora de pegar o bicho'", disse o craque, que usava o treino como uma forma de se concentrar.

"O resultado era sempre favorável, eu gostava de treinar na véspera dos jogos. Depois que acabava tudo ficava sozinho para chegar no jogo mais confiante", disse.

Marcelinho dá dicas

Diante da escassez de gols atual no futebol brasileiro, Marcelinho chegou a dar dicas para os jogadores jovens."É bom treinar com sete metros de distância da barreira e não 9,15m. Criar graus de dificuldade, porque no jogo, às vezes só há uma oportunidade. Se treinar assim, pode virar especialista e conseguir fazer com que a bola te obedeça", disse.

Marcelinho ressalta ainda que um ponto importante é treinar com a bola e a chuteira do jogo. Além disso, é necessário treinar até os movimentos, como a envergadura do corpo e o a pisada do pé de apoio. Variar as batidas é um método de treinamento. De perto da área, Marcelinho aconselha a batida chapada. "Mirar no segundo homem da barreira para a bola cair rápido, como um taco de sinuca. Ver também o posicionamento do goleiro".

Ele ainda cita as cobranças de média e longa distância. "Bater na bola como uma alavanca, com o peito do pé, a bola do meio para cima, vai cair rápido. Ou três dedos de longe, de rosca para surpreender o goleiro. Isso tudo faz com que o jogador se torne um grande cobrador de faltas".

Afinal: é dom ou treinamento?

Quando eu me tornei profissional, senti que as faltas poderiam ser um algo a mais e passei a treinar bastante porque sempre fiz muitos gols. Aumentei o ritmo de treinamento.

Zico

Zico

Existem os cobradores de faltas e o especialista, que nasce com dom e talento. E são os treinamentos que vão colocá-lo em um patamar maior para decidir jogos.

Marcelinho

Marcelinho

Só o dom não adianta. Você vai precisar de cinco, seis faltas para acertar uma. No jogo isso é muito difícil. Além do dom, é preciso muito treinamento, senão ele não consegue.

Marcos Assunção

Marcos Assunção

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