Acabou o amor

Rivaldo era venerado em Mogi Mirim. Hoje, é persona non grata. Essa é a história do que aconteceu

Felipe Pereira Do UOL, em Mogi Mirim
Denny Cesare/Folhapress

Gota d'água

No caminho entre a porta de casa e o carro, Rivaldo percebe a moto dos pedreiros que passaram o dia todo martelando no terreno ao lado de sua casa, no condomínio fechado onde mora. O piloto reduz a velocidade e o carona grita: “Seu ladrão”.

Rivaldo não desfruta da popularidade de outros tempos em Mogi Mirim, cidade em que se tornou revelação do futebol brasileiro. O pentacampeão se sente humilhado. Dá a partida no carro convencido de que não é mais sadio morar por lá.

Quem conta a história é Bettelen Dante, amigo e advogado de Rivaldo. Foi ele que ficou encarregado de resolver os problemas judiciais entre o ex-jogador e os torcedores do time que um dia o idolatraram.

Desde 2015, Rivaldo vive nos Estados Unidos.

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"Ele não se importa mais com o Mogi"

Rivaldo chegou jovem, pobre e (ainda mais) magricelo a Mogi Mirim. Na cidade, todo mundo tem uma história com ele. A de Ricardo Augusto Bertanha começa em 1992. No ano da chegada do atleta, o torcedor, que quando criança entrava de mãos dadas com os jogadores, era gandula. “Inclusive, quando o Rivaldo fez o gol do meio de campo, eu era o gandula atrás da trave onde a bola entrou. Foi uma coisa memorável para os mogimirianos”.

No dia em que Rivaldo foi embora, Ricardo fez questão de comprar a bicicleta azul em que o ex-jogador perambulava por Mogi. Colecionou cards e camisas dos clubes em que o ídolo passou. Entre 2010 e 2013, quando Rivaldo era presidente do Mogi, o torcedor virou funcionário: trabalhou nas categorias de base e no almoxarifado principal do clube.

Hoje, é dono de uma mágoa sem tamanho com o antigo ídolo. Durante sua gestão, Rivaldo passou os centros de treinamento do time para seu nome como pagamento por ter colocado dinheiro na equipe. Na visão de Ricardo e do restante da torcida, ao deixar a presidência, o ex-jogador se preocupou somente em escolher alguém que pagaria a dívida que não era coberta pelos CTs.

Ele não se importa mais com o Mogi Mirim Esporte Clube. Ele se importa com uma dívida que a atual gestão tem com ele da ordem de R$ 10,5 milhões

Ricardo Augusto Bertanha ex-gandula e funcionário do Mogi Mirim

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Com a saída de Rivaldo, o Mogi Mirim amargou cinco rebaixamentos nas últimas seis competições que disputou. Como era amigo de Rivaldo no Facebook, Ricardo escreveu com um pedido: queria os CTs de volta para o clube.

“Ele simplesmente me excluiu, não posso comentar nada no Facebook dele porque estou bloqueado. Eu senti uma tristeza muito grande. Não precisava disso. Só que ouvir a verdade, às vezes, acaba incomodando a pessoa”.

Ricardo e a torcida do Mogi condenam Rivaldo por traição.

Juca Varella/Folhapress Juca Varella/Folhapress

Mocinho vira vilão

Para ter noção do tamanho da decepção é preciso entender o momento em que Rivaldo se torna presidente do Mogi. O ano era 2008 e Wilson de Barros, homem que havia reinado no clube durante 27 anos, havia morrido. A família não queria mais saber de futebol e procurava alguém para assumir a equipe.

Tinha medo de entregar o time para um aventureiro e cogitavam separar o futebol do clube para que o patrimônio não fosse perdido por causa de dívidas da bola. Nesta hora de dúvidas aparece Rivaldo. Em entrevista a um jornal da cidade, ele revela o desejo de assumir a equipe. Foi como se a cidade tivesse descoberto seu pré-sal.

O futuro teve mais cara de Lava-Jato. O Mogi até foi bem em campo, mas acumulou dívidas e perdeu os dois centros de treinamento que tinha. O ex-jogador e os sócios do clube se tornaram adversários na Justiça.

A era Rivaldo acabou em renúncia. A nova administração tem péssimos resultados em campo e já cogitou vender o estádio para que um shopping seja erguido no local. Esta ameaça também entra na conta de Rivaldo.

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O começo de tudo

A primeira decepção da torcida com o presidente Rivaldo foi a mudança do nome do estádio. Inaugurado como Vail Chaves, em homenagem ao homem que doou o terreno para a construção, o estádio mudou de nome várias vezes. Wilson de Barros dirigiu o Mogi Mirim por 27 anos e resolveu se auto-homenagear.

Em 2005, sua filha foi sequestrada e o presidente prometeu colocar o nome do Papa se ela sobrevivesse. Depois de 33 dias de cativeiro, Márcia foi libertada pela polícia e o estádio passou a ser chamado João Paulo II.

A torcida de Mogi convivia bem com as mudanças. Todos os nomes, de um jeito ou de outro, tinham uma ligação com a cidade. Mas ficaram irritados quando Rivaldo colocou o nome do pai, Romildo Vitor Gomes Ferreira, no local. Eles reclamavam que era uma homenagem a alguém que nunca pôs o pé em Mogi Mirim.

Foi a primeira rusga com Rivaldo. Hoje, o estádio voltou ao nome original. A decisão foi tomada já na nova gestão, quando Rivaldo achava que merecia mais do que um estádio com o nome dele. "No Centro da cidade era para ter uma estátua minha", declarou certa vez aos torcedores.

Histórico de decisões que irritaram a torcida

  • Janeiro de 2010

    Eleito presidente, Rivaldo coloca o nome do pai no estádio do time. A cidade reclama porque Romildo Ferreira não tinha identificação nenhuma com a cidade paulista.

  • Janeiro de 2011

    Rivaldo foi capa do carnê do Mogi que dizia: "Eu voltei, agora é a sua vez de voltar". Foi sucesso de vendas, mas ele não jogou pelo time. Preferiu defender o São Paulo (e não foi bem).

  • Setembro de 2013

    Rivaldo passa o maior centro de treinamento do time para seu nome. O mesmo ocorreu com o outro CT, no mês seguinte.

  • Abril de 2014

    Reeleito por aclamação,coloca a mulher como vice. O presidente do conselho deliberativo é seu filho de 19 anos.

  • Abril de 2014

    Entre as primeiras ações, ameaça abandonar a Série C do Brasileiro para preservar o patrimônio de sua família.

  • Junho de 2014

    Treinos com portões fechados e jogadores proibidos de dar entrevista. O site e o Facebook são tirados do ar.

  • Dezembro de 2014

    Rivaldo coloca o Mogi à venda com direito a anúncio no site do próprio clube. A oferta estava em três línguas.

  • Julho de 2015

    Rivaldo renuncia. A gestão foi marcada por discussão com torcedores nas redes sociais e xingamentos mútuos.

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Bom no campo, ruim nos bastidores

A passagem de sete anos de Rivaldo administrando o Mogi – de 2008 a 2015 – desafia a máxima de que futebol é resultado. Em campo, o clube foi muito bem. Na era Rivaldo o clube subiu da Série D para a segundona, garantindo direitos de TV e maior exposição. No Paulistão de 2013, o clube foi até as semifinais, caindo nos pênaltis diante do Santos de Neymar.

Mas a máquina que movia essa ascensão ficou endividada. Logo que assumiu, Rivaldo pagou R$ 1,8 milhão à família do antigo presidente para saldar débitos. Durante sua gestão, o patrimônio diminuiu, com a venda de apartamentos do Mogi Mirim na cidade e a perda dos CTs. Ainda assim, a dívida cresceu. No último balanço da gestão Rivaldo, de dezembro de 2014, estava em R$ 10,4 milhões.

Além da contabilidade questionável, as decisões de campo de Rivaldo não eram de entendimento fácil. Quando o Mogi liderava seu grupo na Série C de 2014, por exemplo, ele demitiu o técnico Márcio Goiano por telefone, na volta de uma viagem a Caxias do Sul (RS) – e sem a chance de se despedir dos jogadores. “Foi estranho”, declarou, na época, o treinador ao jornal Popular, de Mogi Mirim.

Língua não ajuda

Se eu tiver direito, eu fecho. Quero ver onde o Mogi vai treinar. Planto um monte de pé de coco ali

Ameaçando torcedores

Ameaçando torcedores

Também falem coisa positiva! Eu tenho moral no mundo inteiro, aonde eu vou todo mundo adora Rivaldo

Durante discussão com torcedores

Durante discussão com torcedores

Isso aqui vai ficar um deserto, pode ter pessoas se reunindo aqui, pode ter drogas, vai virar um museu

Sobre o que pode acontecer com o estádio

Sobre o que pode acontecer com o estádio

Lendas urbanas

Mogi tem uma praça em frente à igreja matriz onde a fofoca corre solta. Foram tantos boatos que o caso Rivaldo virou lenda urbana. O ex-jogador foi pintado como uma mistura de coronel nordestino comandando uma KGB caipira. Boatos sem sentido e que alimentaram a desinformação. Ninguém leu o processo, mas cada torcedor tem uma opinião diferente sobre Rivaldo – nunca favoráveis, claro.

A reportagem ouviu na praça que um grupo trabalha para o ex-jogador, monitorando a conversa das pessoas para saber quem fala mal dele. Também teve gente mencionando um grupo de homens armados andando pela cidade ameaçando quem critica o ex-ídolo.

A vertente mais light pinta Rivaldo como um homem passado para trás por parceiros de negócio. Há comentários vis que rotulam Rivaldo como um semianalfabeto fácil de ser enrolado. Pior são os que duvidam do caráter do ex-camisa 10 da seleção. Falam que ele já era rico e não precisava roubar um clube. Palavrões não são raros, principalmente se o assunto são os CTs, a maior mágoa dos torcedores.

Daniel Marenco/Folhapress Daniel Marenco/Folhapress

Condenado até que provem o contrário

O mais curioso é que quase ninguém defende Rivaldo. Nem ele mesmo: o UOL chegou a enviar um repórter ao jogo do Barcelona Legends em Recife, em 14 de abril, mas o ex-atleta não quis falar.

Em Mogi, há pessoas que se recusam a gravar depoimentos. O silêncio é um sinal de respeito, porque conheceram Rivaldo ou sua primeira mulher, natural da cidade. Não dar entrevista não reflete, obrigatoriamente, concordância com a administração do ex-jogador no Mogi Mirim.

O advogado Bettelen Dante atribui as críticas a “fofocas maldosas” espalhadas sobre ele. Ele explica que Rivaldo pegou um clube em dificuldade. Naquele momento, as pessoas buscavam um salvador da pátria. “O Rivaldo pagou para assumir o Mogi Mirim”.

De fato, os torcedores concordam que imaginavam o time crescendo. Rivaldo era o ídolo milionário assumindo o time. A expectativa era das melhores. Bettelen afirma que existe muita injustiça. Lembra que Rivaldo permite ao Mogi treinar num CT que não é dele, mas ninguém fala disso.

Para ele, o cliente fez mais do que deveria porque estava à frente de um clube que gostava. Ressalta que Rivaldo precisou tirar dinheiro do próprio bolso para bancar o time o tempo todo. O advogado não cita, mas o estádio raramente recebia grandes públicos. O que Bettelen diz é que os investimentos no Mogi acabaram porque o patrimônio da família iria correr risco.

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As acusações a Rivaldo

Quando o clube perdeu seus dois CTs, três sócios do Mogi Mirim abriram um processo contra Rivaldo. Confira os principais pontos:

Centros de treinamento

Acusação:  o processo pede a anulação da transferência dos CTs. Rivaldo era credor da dívida e presidente do clube que efetuou o pagamento. O escritório SFCB Advogados vê conflito de interesses. Os sócios afirmam que a lei proíbe fazer negócio consigo mesmo. O advogado Renato Franco de Campos, que trabalha na causa de graça por amor ao time em que um dia o pai jogou, ressalta que não houve negociação porque era a mesma pessoa nas duas pontas.

Defesa: a transferência foi aprovada pelo conselho deliberativo. Defesa afirma que a presidência era exercida por uma pessoa indicada pelo ex-atleta. Ressalta que o valor dos CTs seria inferior a dívida. Acrescenta que a Justiça determinou emprestar os locais para treinamento até 2016 e ele libera o espaço até hoje.

Parceria com o Uzbequistão

Acusação: durante o processo, foi revelado que o Mogi tinha uma parceria com o Bunyodkor, do Uzbequistão. O clube receberia 114,5 mil euros por mês (R$ 480,7 mil) entre julho de 2009 e dezembro de 2011. Os sócios reclamam que o dinheiro caiu na conta de Rivaldo e ele repassou ao clube como empréstimo.

Defesa: os advogados de Rivaldo anexaram ao processo os comprovantes de que o Mogi recebeu recursos da parceria. Os valores são inferiores ao previsto em contrato porque a quantia prevista, 114,5 mil euros, nunca foi paga na íntegra.

Venda de apartamentos

Acusação: a palavra dilapidar é um mantra dos sócios. Eles reclamam que Rivaldo prometeu manter o patrimônio do Mogi Mirim, mas durante sua gestão foram vendidos 14 apartamentos que o clube tinha na cidade.

Defesa: A defesa anexou um histórico para mostrar que a prática vinha antes e o primeiro negócio com os imóveis foi feito em 1998. Além disso, negam que foi feita a promessa de não dilapidar a equipe.

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