Fui, vi e venci

Júlio César encerra a carreira. Seu legado? Ederson, Alisson e uma geração de goleiros brasileiros na Europa

Pedro Ivo Almeida e Vinicius Castro Do UOL, no Rio de Janeiro
Gilvan de Souza/Flamengo

Preste atenção no duelo entre Flamengo e América-MG, neste sábado. Quando o apito final soar, um dos jogadores brasileiros mais importantes do século terá encerrado sua carreira. O último palco é o Maracanã, mas poderia ser qualquer grande estádio europeu. Nem sempre visto com a relevância que merece, Júlio César se aposenta com um legado de peso. Se hoje o Brasil tem goleiros como Alisson, Ederson e Neto na elite europeia, isso tem muito a ver com ele. 

Taffarel abriu as portas nos anos 1990 e Dida pavimentou o caminho, mas foi Júlio quem sacramentou que o goleiro brasileiro merece prestígio e respeito na elite do futebol mundial. Foram três Copas do Mundo com a seleção (2006, 2010 e 2014), cinco Campeonatos Italianos, uma Liga dos Campeões, um Mundial de Clubes e o status de melhor do mundo de 2010. 

"Antes vinham ao Brasil atrás do camisa 9, do camisa 10, às vezes um grande zagueiro. O goleiro passou a ser mais valorizado depois. O Brasil passou a exportar goleiros, o que não era visto. A técnica do goleiro brasileiro não deixa nada a desejar a do europeu. Fico feliz com isso", diz o próprio Júlio César, às vésperas do adeus, em entrevista exclusiva ao UOL Esporte

O Júlio passou e abriu portas mesmo. Um nível impressionante de atuações, títulos de relevância mundial, conquistas que diminuíram essa distância que o europeu tinha para o goleiro brasileiro. Foi uma referência, um cara que facilitou tudo para essa turma mais nova que agora pode jogar fora do país

Taffarel

Taffarel, precursor dos goleiros brasileiros na Europa e hoje preparador da seleção

Arte/UOL
AP Photo/Themba Hadebe AP Photo/Themba Hadebe

Na seleção, Júlio foi "porta-voz" em dois traumas de Copa

Júlio foi o dono da camisa 1 do Brasil durante dois ciclos de Copa. É um dos goleiros que mais vestiu a camisa da seleção em Mundiais, atrás apenas de Taffarel, Gilmar e Leão. O lado negativo é que ninguém sofreu mais gols que ele no posto, reflexo dos traumas vividos com a camisa verde-amarela. Protagonista na eliminação inesperada para a Holanda em 2010 e coadjuvante na fatídica queda diante da Alemanha quatro anos depois, Júlio entende que deixou uma marca também fora dos gramados. 

Não apareço só nas boas

“É porque eu nunca fui de fugir das minhas responsabilidades. Contra a Holanda, fui lá e falei para 200 milhões de torcedores. Perdeu, fomos eliminados, não era o que o Brasil esperava. Alguém tinha que responder por aquilo. Mesma coisa contra a Alemanha, naquele fatídico 7 a 1, na semifinal em casa. O Parreira chegou no campo e disse que eu era o único que teria estrutura de chegar e dar a cara", explicou.

Emocionado, anunciou aposentadoria no vestiário do 7 a 1

Os dois momentos que marcaram a carreira de Júlio na seleção

AP AP

Copa América, 2004

"Ali foi minha consolidação na seleção. Fiz excelente competição e fui importante para o time na semifinal e na final. Garanti meu passaporte para a Copa do Mundo de 2006". Naquele ano, Parreira apostou em vários novatos e levou o torneio de forma emocionante, com gol de Adriano no último minuto contra a Argentina. Julio pegou um na disputa de pênaltis e ajudou no título.

Caio Guatelli/Folhapress Caio Guatelli/Folhapress

Brasil x Uruguai, 2007

"Entrei bastante pressionado. Era em São Paulo, no Morumbi, e havia uma pressão para o goleiro ser o Rogério Ceni. Para a crítica, ali, acredito, começaram a me ver com outros olhos". O jogo, decidido com defesa de Júlio e dois gols de Luis Fabiano, carimbaria o lugar de ambos como homens de confiança de Dunga até a Copa do Mundo da África do Sul e a queda contra a Holanda.

AFP PHOTO/ Filippo MONTEFORTE AFP PHOTO/ Filippo MONTEFORTE

Parceiro, Adriano levou Júlio César para a Inter de Milão

Campeão com Júlio César na Copa América de 2004, Adriano era mais que um simples colega de time e seleção. O goleiro e o "Imperador" se conhecem desde as categorias de base do Flamengo e foi o atacante que o levou para a Inter de Milão.

“Ele me ligou e disse que o treinador estava interessado em mim. Tinha fechado com um clube de Portugal e pedi para dar uma segurada. Falei para o Adriano que iria para a Itália. Deu tudo certo. É um moleque puro e inocente. Conseguiu conquistar muita coisa mesmo com alguns problemas. O meu carinho é enorme”, recordou o goleiro.

As histórias dos dois se misturam. Revelados no mesmo Flamengo caótico do início do século, viraram símbolos de uma geração que quis, mas não pôde dar mais à torcida. Uma vez reunidos na Itália, de novo foram separados na hora de colher os frutos da parceria. A Inter começava a engrenar quando Adriano a deixou. O Imperador foi buscar no Flamengo dos dois o consolo para a fase mais difícil da carreira. Do outro lado do continente, o goleiro lembrava do velho companheiro na hora de comemorar um título. 

"Momento pessoal diferente" distanciou Júlio César e Adriano

Cidadão do mundo

  • Milão

    Júlio César viveu em algumas das principais cidades do mundo. Na primeira parada na Europa, Milão, palco de títulos e uma ligação de sete anos. "Aprendi uma nova língua, tive o carinho de uma torcida fanática. Foram sete anos de glórias. O que mais me chama atenção em Milão é o respeito com o qual sou tratado todas as vezes em que volto lá".

    Imagem: Chris Carmi­chael/The New York Times­
  • Londres

    Na capital inglesa, pelo Queens Park Ranges, viveu uma passagem rápida, mas com sonho realizado. "Vivi momentos muito bons e ruins na Inglaterra. Mas o principal foi que joguei uma Premier League, isso é demais, todos desejam. Por sinal, atuei muito bem. Me diverti muito em Londres e fiz novos amigos". Foi o primeiro time que o acolheu após a Inter.

    Imagem: Kirsty Wigglesworth/AP
  • Toronto

    No Canadá, viveu uma aventura inesperada em um país sem tradições no esporte. Valeu também pela vida fora de campo. "Lugar com uma cultura totalmente diferente em relação ao futebol. Tive o privilégio de conhecer a MLS [Major League Soccer] e proporcionar outras experiências para a minha família. Foi um período muito bacana", disse ele sobre o Toronto FC.

    Imagem: Benson Kua/Creative Commons
  • Lisboa

    Em Portugal, a parada final e definitiva. Lisboa se tornou a base do goleiro na Europa, e de lá ele não quer sair. "É uma cidade muito parecida com o Rio de Janeiro, está perto de outros países bacanas, centralizada no mundo. É uma coisa que considero importante e decidimos estacionar ali. Estou fazendo amigos por lá. Escolhemos Lisboa para viver"

    Imagem: Getty Images
Reprodução/Instagram Reprodução/Instagram

"Momento de desespero" de Susana não abalou

Casado com a atriz e empresária Susana Werner há 16 anos, Júlio César se acostumou a ter a vida exposta nos principais sites e jornais do mundo. Com o tempo, o casal se tornou cada vez mais reservado e fixou residência em Lisboa com os filhos. Júlio e a mulher são apaixonados pela capital portuguesa, possuem negócios e lá pretendem seguir a vida. “Decidimos estacionar ali. Lisboa hoje é a cidade da moda na Europa, talvez no mundo. Qualidade de vida, custo, segurança, clima. Junta tudo”, disse.

E a vida estruturada na Europa trouxe problemas para o goleiro ao assinar o contrato de três meses com o Flamengo. Susana Werner não gostou e desabafou nas redes sociais. Os fãs chegaram a temer que o casamento estivesse ameaçado, mas não passou de um susto. Ao se aposentar, o goleiro voltará para os braços da amada.

“Roupa suja se lava em casa [risos]. Foi um momento de talvez desespero dela. Respeito, mas ficou tudo tranquilo. A Susana está preocupada em fazer as coisas acontecerem lá em Lisboa. Ela já veio ao Rio de Janeiro, voltou, veio de novo. Eu a loira nos entendemos”, diz ele.

A volta para "viver esse novo Flamengo"

Gilvan de Souza / Flamengo Gilvan de Souza / Flamengo

Júlio e os dois Flamengos diferentes em 20 anos

Quando Júlio César subiu aos profissionais do Flamengo, há 20 anos, viveu um clube que tinha dificuldades para viabilizar a aquisição de equipamentos e mais ainda para pagar salários - quando saiu, tinha quatro meses de pendências financeiras. Agora, reencontra o Rubro-negro com finanças em dia e estrutura inimaginável.

“Mudou tudo, p... [risos]. Até as pessoas da minha formação estão diferentes. Quando estamos juntos não tem como o Flamengo de antigamente não ser falado. Não deixa a desejar em nada aos clubes lá de fora”, comentou.

O extremo daquele Flamengo antigo foi a ameaça sofrida em uma das lutas contra o rebaixamento no Campeonato Brasileiro. Acuado, Júlio César precisou se desfazer de um bem material para preservar a sua segurança e a da família.

“Tive que vender um carro. Um torcedor organizado virou e falou ‘vende aí porque você não pode ficar andando com esse carrão nessa situação’. Isso assusta. Você não sabe a reação dele. Quando esse tipo de torcedor faz isso, tem a audácia de invadir um setor de trabalho, te agride, vai até aeroporto... Tenho família, uma série de coisas. Vendi o carro. Não aceitava isso de maneira nenhuma”, recordou.

Ar condicionado, faxina no clube e até carro vendido após ameaça

A foto que resume a relação entre Júlio César e o Flamengo

Júlio César se despede do futebol com a idolatria da torcida rubro-negra. Não em razão de grandes títulos conquistados, mas por ter salvado o clube mais popular do país de rebaixamentos em sequência no Campeonato Brasileiro. Um orgulho que ele carrega e não esconde. O goleiro foi o símbolo de uma era na qual restava apenas evitar o vexame pelos lados da Gávea.

A idolatria conquistada na adversidade para uma geração de flamenguistas tem eco até os dias atuais. O registro emblemático de Gilvan de Souza, fotógrafo oficial do clube, mostra os goleiros das categorias de base acompanhando o primeiro treino de Júlio César no Ninho do Urubu, realizado no dia 30 de janeiro. Os olhos dos meninos brilharam, assim como os do veterano.

“É uma foto que me emocionou. Servir de referência. Pessoas parando na rua e dizendo que colocaram o nome do filho de Júlio César por minha causa. Isso não tem preço. É sensacional. A foto viralizou e fiz questão de trabalhar com esses meninos no tempo em que fiquei aqui. Quero que eles escutem e coloquem em prática. Sempre ouvi muito os mais velhos. Era uma ideia que tinha para me tornar um goleiro de respeito”.

E conseguiu...

Nem no meu melhor sonho eu poderia imaginar o que aconteceu comigo. Saio de cena muito tranquilo, mas triste por não ter conquistado uma Copa do Mundo e um título de expressão pelo Flamengo

Júlio César,

Júlio César, , em um balanço final da trajetória iniciada em 1997

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