Todo o valor de Nenê

Pioneiro da NBA já ganhou quase R$ 400 milhões, mas foi em seu menor contrato que acabou mais valorizado

Giancarlo Giampietro Especial para o UOL, em São Paulo
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Ronald Martinez/Getty Images Ronald Martinez/Getty Images

"Ele nos salvou"

Estava um pandemônio no ginásio e Trevor Ariza, do Houston Rockets, tinha de fazer a reposição de bola. O elétrico Russell Westbrook havia acabado de matar uma bola de muito longe, restavam pouco mais de 18 segundos e Oklahoma City estava em pé, torcendo contra o time texano que tinha vantagem de um ponto sobre o Thunder.

Ariza passou para Eric Gordon e recebeu de volta já no ataque. Atraiu a marcação de Steven Adams e acionou Nenê no garrafão. O pivô agarrou a bola e saltou. Atrasado, Jerami Grant tentou pará-lo na marra. Falta, cesta e a vitória assegurada - para não dizer a classificação às semifinais da Conferência Oeste da NBA.

Em meio ao caos do final da partida, o brasileiro de 34 anos destoou. Com mãos e cabeça firme, acertou as 12 tentativas de cestas que fez. Igualou um recorde dos playoffs. Mais que isso, foi uma figura estabilizadora nos Rockets. “Ele é assim. É por isso que o contratamos”, diz o superastro James Harden, candidato ao prêmio de melhor da temporada que, apenas em salários e patrocínio de uma marca esportiva, embolsa mais de US$ 43 milhões (R$ 124 milhões) anuais. “Ele nos salvou.”

O lance decisivo

Após 15 anos, Nenê ganhou os holofotes

Essa influência apaziguadora não é um ponto fora da curva (ascendente) de Nenê na liga norte-americana. Aconteceu por onde ele passou. Porém, em sua 15ª temporada, o pivô finalmente jogou em alto nível por uma grande equipe com sérias pretensões ao título – no quinto jogo da semifinal da Conferência, sem Nenê, o Houston perdeu para o San Antonio, que lidera o confronto por 3 a 2.

Some isso ao momento de exposição máxima da NBA no Brasil e, ainda que tardiamente, talvez tenha chegado a hora de se reconhecer o valor do pioneiro dessa geração. “Quando comecei em Denver, cheguei como menino e saí como homem. Construí um legado. Já em Washington vi o time sair de baixo para virar top 10 da liga. São coisas boas que te deixam feliz. Claro que, em Houston, a estatística mostra uma produção alta em curto tempo. Mas não posso deixar de mencionar o que ficou para trás”, diz ao UOL Esporte, em entrevista conduzida antes de uma lesão neste domingo o afastar dos playoffs da NBA.

Os números pela temporada regular, de primeira, não chamam tanta atenção assim: 9,1 pontos, 4,2 rebotes e 1,0 assistência em 17,9 minutos, a despeito do aproveitamento de 61,7% nos arremessos. Mas, como sempre, estatísticas isoladas não contam toda a história. E é isso que o UOL Esporte vai fazer agora.

Nenê sempre foi daqueles jogadores que aparecem muito mais para os técnicos do que para as emissoras de TV e a torcida. Ele até vai aparecer nos melhores momentos vez ou outra por causa de enterradas. Mas seu impacto é muito mais sutil taticamente. Ou melhor, nem tão sutil assim, já que é bastante físico

Scout de um clube da Divisão Sudoeste, que não pode ser identificado por questões regulamentares da NBA

Zou Zheng Zou Zheng

15 anos, 125 milhões de dólares

Houve um tempo em que, pelos Nuggets, o pivô ouvia o técnico George Karl implorar para que ele fosse um pouco mais egoísta em quadra e procurasse mais a cesta. No geral, porém, seus serviços foram devidamente remunerados: faturou, nestes 15 anos, mais de US$ 125 milhões (pouco menos de R$ 400 milhões) levando apenas em conta holerites.

É um valor que não se equipara ao que os maiores nomes da liga faturam – LeBron James, por exemplo, com uma temporada a menos de serviço, já passou dos US$ 200 milhões, e ainda tem pelo menos mais US$ 30 milhões para receber dos Cavs no ano que vem. De todo modo, para um jogador que nunca foi eleito para o All-Star Game,  o paulista de São Carlos está entre os mais bem pagos. Para comparar, em 13 temporadas, Anderson Varejão acumula US$ 73 milhões. Leandrinho, que já foi eleito o melhor reserva da liga, em 14 anos, soma US$ 46 milhões.

Na reta final da carreira, e com o futuro dos filhos (e dos netos) garantido, Nenê já pode priorizar o aspecto esportivo ao financeiro na hora de escolher onde jogar. Foi por isso que ele escolheu o Houston, mesmo que o salário, como você vai ver a seguir, não fosse (para os padrões do basquete nos EUA) alto.  

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Pechincha brasileira

O valor é assustador: em 2016, entre reforços e renovações contratuais, as 30 franquias da NBA assinaram acordos que, na soma, ultrapassam a casa de US$ 3 bilhões. E, não, não se trata de um erro de digitação: você leu três bilhões de dólares, mesmo – ou aproximadamente R$ 9,3 bilhões.

Diante de um montante dessa magnitude, podemos adotar uma licença poética e classificar o acerto de US$ 2,9 milhões (R$ 9,2 milhões), ou 1% do total, entre Nenê e Houston, como uma pechincha das maiores. Ainda mais quando se compara a relação custo x benefício de seu contrato com os de outros dez concorrentes da posição que também estavam no balcão de negócios, levando em conta a produção nesta temporada:

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Maior nível de eficiência da carreira

A chave para entender a produtividade do brasileiro está em seu tempo de quadra limitado. Não que o treinador Mike D’Antoni não quisesse usá-lo mais. Cientes da extensa milhagem acumulada e da série de problemas que enfrentou na última temporada, diretores e técnicos dos Rockets tinham a intenção de preservá-lo.

Mesmo que tenha sofrido uma lesão muscular na perna esquerda no domingo, contra o San Antonio Spurs, o pivô sai com a missão cumprida. Levando em conta o que ele jogou durante toda a temporada e, especialmente, depois de seu rendimento elevado contra o OKC e aquela exibição primorosa pelo Jogo 4, ele mais do que se pagou...

Nos playoffs, Nenê atingiu o maior índice de eficiência de sua carreira, com 21,6 – 2,2 pontos acima do que havia feito pelo Denver exatamente dez anos atrás quando jogou os playoffs pela primeira vez. Numa projeção por 36 minutos, ele teria 20,1 pontos, 9,4 rebotes, 1,3 roubo de bola, 0,9 toco, com 70,6% de aproveitamento. A linha estatística de um All-Star.

Quando o contratamos, todos diziam que, se ele pudesse se manter saudável, poderia ser um dos melhores pivôs da liga. É difícil até de mensurar o valor que ele tem para o time. É um desafio realmente encontrar um pivô que seja tão bom como ele tem sido para nós

Mike D?Antoni, técnico do Houston, sobre porque o brasileiro é subestimado

É aquilo: quando você trabalha duro, usando também o talento, acreditando em seus objetivos. Sei que muitos acharam que eu pararia muito tempo atrás, mas nunca dei ouvidos a isso. Por isso cheguei até onde cheguei, e tenho esse sonho de ser campeão

Nenê, sobre 15 anos na NBA, problemas físicos que enfrentou e o título da NBA

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Uma nova decepção

Para atingir uma forma física que impressionava a concorrência no Oeste, Nenê pegou pesado desde cedo na pré-temporada. Afinal, antes de chegar ao Texas, havia uma Olimpíada pelo caminho. “Claro que me preparei muito bem antes do Rio. Sacrifiquei meu tempo, de passar com filhos, por causa da seleção. Tudo isso vem com trabalho”, diz.

Trabalho que não acabou com a eliminação olímpica precoce. Os relatos em Houston são de dedicação extrema: malhação antes e depois dos jogos, em dias de folga e tudo o mais. Nem toda essa dedicação, porém, evitou mais uma decepção médica para o pivô, que sofreu uma ruptura muscular com um minuto de jogo neste domingo.

O impacto é grande para eles. Clint Capela é muito jovem e vai ficar sobrecarregado. Os Rockets serão obrigados a a jogar com altura ainda mais baixa. Suas chances diminuem”, diz o mesmo scout não identificado.

AP Photo/Marcio Jose Sanchez AP Photo/Marcio Jose Sanchez

Cavs? Warriors? Por que não Rockets?

As bolsas de apostas em Las Vegas e a esmagadora maioria da mídia destacam o Golden State Warriors e o Cleveland Cavaliers do restante das franquias na hora de prever chances de título. Nenê insiste que os Rockets mereciam estar nesse grupo. Um dos argumentos a favor de sua equipe é o fato de ela ter saído da temporada regular com o décimo ataque mais eficiente da história da liga, além da terceira melhor campanha.

“Este time está sendo uma benção para mim. O bom é que, internamente, sabemos do que somos capazes. Com uma ótima química, fomos crescendo durante a temporada. Temos jogadores calibrados que podem fazer a diferença em qualquer partida. Todos esses experts têm seu ponto de vista. Mas, quando o assunto é nosso time, não têm acertado muito”, diz. “Como não estão aqui diariamente, talvez não tenham a noção. Alcançar a final é algo que depende de nós. Confiamos no nosso time, nos jogadores que temos”.

Antes de pensar no Cleveland ou mesmo no Golden State, primeiro Houston tem de se ver com o San Antonio de Gregg Popovich e (Tim Duncan) Kawhi Leonard.  Um adversário metódico contra o qual os Rockets tentam impor seu estilo frenético,. Agora, precisando acalmar as coisas, Harden e D’Antoni sabem que podem contar com a influência do veterano brasileiro, mesmo fora de quadra.

Drible de Nenê. Comemoração de Harden

Mark J. Terrill / AP Mark J. Terrill / AP

Ao mentor, com carinho

Quando Nenê fala de entrosamento no elenco, toca num fator essencial para o bom ano dos Rockets. Finalista do Oeste em 2015, quase não chegou aos playoffs em 2016. Não é segredo que James Harden e Dwight Howard não se bicavam. A dissonância entre os astros quebrou o vestiário. No processo de cicatrização, o brasileiro foi curandeiro.

Ele não faz autoelogios. Mas D’Antoni e Harden já falaram sobre sua importância – o pivô é o mais velho do elenco. “Ele é o meu mentor, acreditem ou não”, diz Harden, que concluiu uma das grandes temporadas individuais da história da NBA, com médias de 29,1 pontos, e11,2 assistências “Eu vejo como ele trabalha todo santo dia. É um veterano autêntico”.

O pivô retribui: “Falar do Harden é um prazer. É um menino de muito talento, de ótima índole, que tem evoluído demais. Sempre falo que, quando usa esse talento especial para fazer outras pessoas melhores, quem brilha mais é ele. Ele é quem dita a marca do time, é o nosso líder. Tem um QI altíssimo. A forma como vê a quadra é diferenciada. Joguei com vários ótimos jogadores, mas ele é fenomenal”.

Bob Levey/Getty Images Bob Levey/Getty Images

Namoro de longa data

Quando David Stern, antigo comissário da NBA, vetou uma troca tripla envolvendo Lakers, Hornets e Rockets, ele atendeu a pedidos furiosos dos proprietários das demais franquias. Ninguém queria ver o armador Chris Paul em Los Angeles. Por tabela, porém, ele impediu que Nenê se tornasse jogador do Houston com cinco anos de antecedência, em dezembro de 2011.

Nenê e as torres gêmeas

Muito antes de James Harden entrar no radar, a franquia texana planejava construir sua própria versão daquilo que, no basquete, se conhece como “Torres Gêmeas” – uma dupla forte de pivôs para centralizar o jogo da equipe. O brasileiro seria uma dessas torres, ao lado de Pau Gasol. O mesmo Gasol que, hoje jogador do Spurs, o desafiava pelas semifinais do Oeste.

O craque espanhol estava incluído naquela famigerada transação, saindo dos Lakers para os Rockets, como a segunda peça mais importante do negócio (depois de Paul). Os Hornets receberiam um pacote com Goran Dragic, Kevin Martin, Luis Scola e Lamar Odom.

Oficialmente, os dirigentes dos clubes não falam sobre o assunto, mesmo com tanto tempo passado. O desgosto pelo ato de Stern ainda é grande, pelo ineditismo da decisão e o modo como ela foi tomada, unilateralmente – depois, ele aprovaria a ida de Paul para Los Angeles, mas para os Clippers.

Em Houston, segundo apuração do UOL Esporte, havia quase a certeza de que, uma vez concluída a aquisição de Gasol, Nenê se juntaria ao time. Então agente livre, o brasileiro renovou com o Denver Nuggets por cinco temporadas e US$ 67 milhões. Em fevereiro de 2012, seria trocado com o Washington Wizards. Já os Rockets não mais reclamariam após, um ano depois, roubarem Harden do Oklahoma City Thunder.

Scott Halleran/Getty Images Scott Halleran/Getty Images

Visão de um scout: uma das melhores temporadas da Nenê

Por questões contratuais, os olheiros da liga não podem se identificar ao comentar atletas dos times concorrentes. Aqui, só podemos dizer que se trata de um profissional de um clube que está na Divisão Sudoeste e, portanto, enfrenta o Houston Rockets quatro vezes na temporada regular:

"Não posso dizer que imaginava vê-lo jogar bem assim nesta fase de sua carreira. Esta foi uma das melhores temporadas de Nenê, na verdade. Obviamente, não está jogando tantos minutos como no passado, mas você vê que hoje ele tem a segunda média de pontos por minuto desde que entrou na NBA, está com a segunda melhor porcentagem de acerto nos arremessos. E seu índice de eficiência também está lá em cima. Além disso, tem sido importante com sua experiência nos playoffs. Um cara como Clint Capela ainda é um garoto, de quem você ainda não sabe exatamente o que esperar em jogos decisivos.

Mas posso dizer o seguinte também: Houston gosta de Nenê há um tempo. Eles sempre o tiveram em alta conta. Quando puderam assinar por um valor tão baixo, aí não havia o que pestanejar. E o time é dos mais espertos que você vê por aí. Em Houston, eles têm um entrosamento raro entre diretoria e comissão técnica. Falando de como se pensa o jogo. Talvez isso só aconteça em Golden State e San Antonio. São poucos casos. Eles buscam jogadores que se encaixam em seu sistema. É o caso de Nenê.

Um cara que estava despencando, com muitas lesões, talvez pensando em aposentadoria... Depois do que ele apresentou nesta temporada, seu mercado será muito maior. Espere um aumento."

O jogo perfeito de Nenê

Russell Westbrook cometia suas barbaridades do outro lado. A torcida de Oklahoma City, para variar, estava em polvorosa. O time da casa fazia de tudo para empatar o confronto com o Houston Rockets. Mas um jogo praticamente perfeito de Nenê foi um balde de água fria.

No dia 23 de abril o pivô dos Rockets fez o melhor jogo de um brasileiro na NBA. Se não em números totais, talvez pela relevância do contexto: foram 28 pontos, 10 rebotes e, mais importante, aproveitamento de 100% nas tentativas de cesta. A partida valia pelos playoffs e daria a sua equipe a liderança de 3 a 1 na série.

Os lances dessa partida

Em 2007, ano em que foi eleito o melhor reserva da liga pelos Suns, Leandrinho marcou 32 pontos em duas ocasiões, em vitórias sobre Bobcats e Rockets. Anderson Varejão brilhou em uma noite de 2012 pelos Cavs com absurdos 35 pontos e 18 rebotes em derrota para os Nets. Mas estas foram atuações em meio à maratona da temporada regular.

Em OKC, Nenê igualou o recorde histórico dos playoffs com 12 arremessos sem nenhum erro, façanha que apenas o pivô Larry McNeill havia conseguido, pelo Kansas City Kings, em 1975. Se McNeill não chega a ser um nome empolgante, com média de 8,5 pontos em seis anos de liga, que tal, então, a companhia de Wilt Chamberlain? O mítico pivô, que já fez 100 pontos numa partida, era o único atleta que até então havia atingido marcas de 20 pontos, 10 rebotes e 100% nos arremessos em uma partida pelos mata-matas.

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