Gigante de 1,75m

Lenda viva do vôlei, Mireya Luis fala ao UOL sobre seus 50 anos

Carolina Canossa, Sidrônio Henrique e João Batista Jr Do blog Saída de Rede
Reuters

Mireya Luis, 50 anos

Há 50 anos, a história do vôlei mudava para sempre. Em um parto rápido no hospital de Camaguey, interior de Cuba, veio ao mundo Mireya Luis Hernández, uma das melhores atletas que já pisaram em uma quadra. Última filha do imigrante haitiano Alejandro com a cubana Catalina, sempre foi a menor dos nove irmãos. Nunca passou de 1,75 m, mas provou que altura não precisa ser fundamental no vôlei. Voando a 3,36 m, despejava golpes potentes de qualquer ponto, ignorava bloqueios e aterrorizava defesas.

O Brasil sabe bem o que isso significa. Não fosse por ela, é provável que o sonhado ouro olímpico verde-amarelo tivesse saído bem antes de 2008. Ana Moser, Fernanda Venturini, Marcia Fu, Fofão & cia. tiveram o azar (ou seria privilégio?) de brilhar no mesmo período de Mireya e a incrível seleção de Cuba tricampeã olímpica (1992, 1996 e 2000) e bi mundial (1994 e 1998).

A tensão dos confrontos entre aqueles times permanece na memória da torcida, mas a relação entre os lados é marcada por um imenso respeito. Mireya é muito mais do que aquela baixinha folgada que tirava os brasileiros do sério. Em entrevista exclusiva ao UOL direto de Havana, ela mostrou humildade e disse que o Brasil produziu a seleção mais difícil que enfrentou.

Al Bello/ALLSPORT Al Bello/ALLSPORT

Quase um milagre

Não bastasse o biótipo pouco adequado para o vôlei, Mireya quase não veio ao mundo. Depois de seis filhos homens, sua mãe, Catalina, estava decidida a ligar as trompas depois do nascimento de Mirta, a primeira menina, em 1963. O marido, porém, não concordou com a cirurgia.

"Costumo dizer que minha vida foi um privilégio, quase um milagre", admite Mireya. "Fui uma casualidade (risos). Assim como foi uma casualidade também ter jogado vôlei, conquistado tantas coisas e realizar esse sonho".

Em mais uma dessas coincidências do destino, coube justamente a Mirta a função de abrir as portas do vôlei para Mireya. Primeira a se interessar pelo esporte, ainda na escola, passou pela seleção juvenil de Cuba. Foi ela que insistiu para que os treinadores da Escola de Iniciação Esportiva ao menos dessem uma chance de participar do teste de admissão para sua irmã baixinha.

A treinadora responsável pela avaliação, Candida Jimenez, achou que seria perda de tempo. Com 11 anos, tinha só 1,48 m, bem mais baixa que outras candidatas. Para terminar logo com aquilo, propôs que Mireya alcançasse o teto, a 2,45 m do chão, em um salto. Para perplexidade da professora, ela tocou o teto várias vezes. Quatro anos depois, Mireya estreou na seleção adulta.

"Todo mundo ficava morrendo de inveja"

A Mireya marcou uma geração. Ela tinha uma impulsão impressionante, além de ser muito habilidosa. Tinha todos os fundamentos muito bons. Saltando daquele jeito, era muito difícil o bloqueio chegar nela

Fernanda Venturini

Fernanda Venturini, ex-levantadora da seleção brasileira, medalha de bronze em Atlanta-1996

Era lindo vê-la jogar, pela beleza do salto, pela impulsão que tinha. Todo mundo ficava morrendo de inveja. Mireya foi sensacional, fazia coisas inacreditáveis. Para o voleibol, ela representou 10 anos de hegemonia cubana

Fernanda Venturini

Fernanda Venturini, relembrando a hegemonia de Cuba nos anos 80 e 90

Eduardo Knapp/Folhapress Eduardo Knapp/Folhapress

"Brasil tinha um jogo inteligente"

Mireya herdou a camisa 3 da seleção de Cuba de uma campeã mundial: Ana Ibis Díaz venceu o torneio em 1978. Em seu primeiro torneio oficial, os Jogos Pan-Americanos de Caracas, em 1983, porém, Mireya fez todos se esquecerem da antecessora.

Nos anos 80, a grande rival de Cuba era a China de Lang Ping. A seleção brasileira só passou a incomodar na década seguinte, com a chegada de Bernardinho ao comando - com uma geração talentosa em mãos, ele desenvolveu especialmente o sistema defensivo brasileiro.

Ormuzd Alves/Folhapress Ormuzd Alves/Folhapress

"Aquele Brasil era muito completo, com um bloqueio alto e técnico, além de uma ótima defesa. Eu tinha que saltar e bater muito forte na bola para poder fazer um ponto. Era um jogo muito inteligente, que nos deu muito trabalho".

Quem assiste às exaustivas repetições das provocações entre Brasil e Cuba após a semifinal das Olimpíadas de Atlanta, em 1996, sabe que a rivalidade entre os dois times seguia fora da quadra. Mireya não guarda ressentimentos. "Os dois lados jogavam manifestando os sentimentos da mesma maneira. Esse calor foi a natureza que nos deu. Sempre me senti muito à vontade com os brasileiros. O Brasil é um país que eu adoro, com suas belezas naturais, suas pessoas, frutas, samba, tudo...".

João Miguel Júnior/TV Globo João Miguel Júnior/TV Globo

Fã de Susana Vieira

Provando que esse entusiasmo não é só um discurso formal, a atacante citou várias de suas paixões verde-amarelas: "Gosto especialmente das novelas brasileiras. Há uma atriz, que fez a dona do Carmo e é maravilhosa. Susana Vieira, não? Eu a conheci em um Carnaval, no sambódromo do Rio. Ela me deu um abraço como se já nos conhecêssemos há 30 anos. É muito querida aqui em Cuba".

"Também gosto de Roberto Carlos, Milton Nascimento, Terra Samba, Simone e de como o Alexandre Pires canta em espanhol...".

A jogadora quase se mudou para o Brasil em 1994. Naquele ano, o BCN, um dos clubes mais fortes da época, fez uma proposta formal pela atleta. A Federação cubana, porém, não deu o aval para Mireya jogar por um time estrangeiro.

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Boladas na testa de uma craque

Ana Moser, ex-ponteira da seleção brasileira, medalha de bronze em Atlanta-1996

"A Mireya era totalmente diferente das outras atacantes. Era fora de série. Tinha uma impulsão muito acima da média. Com 1,75m, batia por cima de todos os bloqueios. Saltava muito e tinha uma condição de sustentação no ar diferenciada. Então, ela brincava. Fazia o que queria lá em cima. Com um bom levantamento, era muito difícil pará-la.

Além do ataque, era uma jogadora tecnicamente excelente. Levantava a bola na pinta, passava, defendia, bloqueava bem. Enfim, era uma ultra jogadora, supercompleta. O time de Cuba foi o time do século 20 e a Mireya foi a grande líder de algumas gerações do voleibol cubano. Mireya tem um crédito enorme pela fama mundial do voleibol feminino.

Uma lembrança que tenho é de uma bolada que levei em um amistoso quando tinha 18 anos. Estava entrando na seleção brasileira. Bola levantada para ela, espichada na entrada, eu abri um passo para trás, na linha dos três metros, para defender. Ela virou na diagonal curta e mandou a bola na minha testa."

 

Penta olímpico?

Ganhar três ouros olímpicos consecutivos é algo tão difícil que, até hoje, somente a geração de Mireya Luis conseguiu. O feito, porém, poderia ser ainda maior: por razões políticas, Cuba não disputou os Jogos de Los Angeles-1984 e Seul-1988.

Questionada sobre o que teria acontecido se tivesse participado dessas Olimpíadas, Mireya não tem dúvidas. "Acho que teríamos ganhado mais duas medalhas. Só não sei se de ouro. Estávamos preparadas para subir ao pódio".

Apesar da pequena frustração, Mireya nutria grande admiração por Fidel Castro, que orquestrou os boicotes. Chegou, inclusive, a presenteá-lo com uma de suas medalhas olímpicas. "Mas ele devolveu! (risos). Disse que eu havia ganhado e, portanto, era minha. Hoje, estão todas em minha casa em Camanguey".

Mireya encerrou oficialmente a carreira em 2001. A cerimônia, para centenas de pessoas, contou com Fidel e também marcou a despedida do boxeador Félix Savón, outro tricampeão olímpico, e da corredora Ana Fidelia Quirot, bicampeã mundial dos 800 m rasos. 

Divulgação/CBV Divulgação/CBV

"Ninguém mais tem esse estilo"

Fofão, ex-levantadora da seleção brasileira, ouro em Pequim 2008 e bronze em Atlanta 1996 e Sydney 2000

"O grande diferencial da Mireya para as demais atacantes era a impulsão impressionante que ela tinha. Também conseguia muitas variações. Batia bem tanto para a paralela quanto para a diagonal. Era muito difícil de ser marcada. Entrava meio de lado para a rede e, mesmo assim, conseguia virar uma bola na paralela com muita perfeição. Era uma jogadora muito inteligente.

O que mais me impressionava era o fato de não ser alta. Você via que essa versatilidade era uma coisa natural. Era uma jogadora muito habilidosa, sabia fazer muito bem todas as funções. Mesmo hoje, Mireya seria uma jogadora diferenciada. É um mito do voleibol, representou o que é ser uma atacante de ponta, que é uma função muito difícil.

Hoje, a gente não tem mais nenhuma jogadora com esse estilo".

Scott Barbour/ALLSPORT/Getty Images Scott Barbour/ALLSPORT/Getty Images

Gravidez secreta e depressão

Às vésperas da disputa de seu primeiro Mundial, em 1986, Mireya descobriu que estava grávida de sua única filha. A gestação foi mantida em segredo dos rivais e, nove dias após dar à luz Idanaisys, ela voltou a treinar. Mesmo longe de seu ideal físico, levou Cuba ao quarto lugar.

"Eu estava com a mente muito livre, não pensava em nada. Lembrava da minha filha, mas como sabia que ela estava nas mãos de minha mãe, não sentia nenhuma preocupação. Só existia a pressão do time, pois eu sabia que era uma peça importante".

Após Atlanta-1996, novamente o corpo pediu uma pausa. Uma crise depressiva após o Pan de 1999 e problemas no ombro direito puseram em xeque a participação nos Jogos de Sydney-2000. Ainda assim, o célebre técnico Eugenio George a convocou para a competição. Na Austrália, na campanha do terceiro título olímpico, a participação de Mireya foi muito mais de apoio do banco do que atacando em quadra.

O ponto que deu o terceiro ouro para Mireya Luis

Jose Goitia/AP Photo Jose Goitia/AP Photo

Hoje, Cuba está longe da elite do vôlei

Até hoje ninguém conseguiu repetir os feitos de Mireya. O voleibol de seleções cubano, inclusive, entrou em uma crise sem precedentes nos últimos anos e deixou a elite internacional, para tristeza da estrela. "Agora, não estamos nem no Grand Prix e nem na Liga Mundial, o que é uma pena, pois temos muitos jogadores de potencial".

Após trabalhar oito anos para o Comitê Olímpico Internacional (COI), Mireya atualmente usa seu prestígio para divulgar ações da Federação Internacional de Vôlei (FIVB), é vice-presidente do Conselho de Administração da Norceca (entidade que reúne as confederações de vôlei das Américas do Norte e Central e do Caribe) e ajuda no desenvolvimento do vôlei de praia na Federação Cubana.

"Que continuem amando o vôlei, pois eu também sou uma amante de vocês. Muito obrigado, viva Brasil e nos vemos logo!"

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