
Ninguém sabe dizer quantos lutadores de MMA existem no Brasil. Mas por trás desse número desconhecido, há histórias que podemos conhecer.
Um garoto franzino trocou uma vida no tráfico na Amazônia para tentar a sorte nos octógonos de São Paulo. Outro estava sem rumo quando ouviu uma voz o incentivando a lutar. Um lutador tatuou um tubarão nas costelas e vive na corda bamba entre os treinos e o desejo de estar perto da família.
Muitos dividem seus dias entre a academia e trabalhos comuns: fora do octógono são pedreiros, garçons, cabeleireiras, cantoras, motoboys. Os aletas podem ter trajetórias bem diferentes, mas guardam em comum uma ideia fixa: a de chegar ao topo da carreira, o UFC. A seguir, você vai conhecer a história de algumas dessas pessoas.
Rodrigo "Cabeça" Serafiam deixou a mulher e um filho recém-nascido em Acará, na região metropolitana de Belém, e mudou-se para São Paulo. “Nunca vou deixar meu filho passar pelo mesmo que passei”, disse ele. O peso-palha (até 52kg) persegue o sonho de se tornar um lutador respeitado.
Ex-morador de rua e ex-usuário de drogas, Cabeça foi abandonado pela mãe junto com um irmão mais novo quando era pequeno. O pai morreu antes disso. Chegou a se envolver com o tráfico e, segundo diz, “estava para morrer, não tinha futuro nenhum”. Até encontrar um caminho de esperança no MMA. Um amigo mais velho que já participava de eventos no Pará o convenceu a tentar a vida como lutador.
Como a maioria dos lutadores, Cabeça não consegue sustentar-se com o esporte. Em São Paulo mora em uma casa com colegas de sua equipe. Treina de graça e tem subsídio para moradia e alimentação, mas, sem outro emprego, está longe de uma vida confortável. “A primeira luta que fiz no Pará ganhei uma bolsa de R$ 300”, lembra. “Fui lá e comprei tudo em comida, a gente passava muita fome.”
Com um cartel de seis vitórias e quatro derrotas no MMA profissional, Cabeça ainda está distante do sonho de ser um grande campeão e conseguir dar uma vida confortável para a mulher de 20 anos, o filho de um ano e meio e o irmão mais novo, que ficaram no Pará torcendo por ele.
Encontramos Gilson Lomanto na semana em que ele defenderia seu cinturão do Thunder Fight, um dos maiores torneios de São Paulo. Lomanto é conhecido como o “Bom Pastor”. Ele é evangélico e tem a fala calma, paciente e incisiva de quem um dia pretende subir ao púlpito para espalhar a palavra.
Mas quando não está falando, Lomanto está dando socos, chutes e se defendendo de quedas. Ele começou ainda jovem no litoral paulista quando, um dia, ouviu uma voz falando dentro de sua cabeça. “Era Deus”, diz. “Ele colocou no meu coração o desejo de lutar.”
Foi atacado por uma virose na véspera de uma luta importante e temeu que a doença pudesse atrapalhá-lo. Por um golpe de sorte, a luta acabou adiada em uma semana. Ele conseguiu se recuperar e vencer. “Foi Deus, com certeza”, afirma.
Filho de uma família pobre, veio à capital tentar a vida e hoje dorme em um beliche no alto da academia na periferia. Para repor o que as lutas lhe deram, ministra aulas de artes marciais para crianças carentes da região. Quando nos encontramos, estava confiante em conseguir sua 11ª vitória na carreira. Dias depois, acabou vivendo sua sétima derrota, por submissão, para Lucas Mineiro, ex-lutador do UFC.
O treino acontece três vezes por dia durante nove horas. Preparação física, técnicas de chão, luta em pé, nutricionista, fisioterapeuta e fisiologista. Suplementação, alimentação e turnos de descanso sob medida. Assim é a rotina de Anderson “Berinja” dos Santos, lutador profissional de São Paulo.
Ele vive para o MMA, tem patrocínios e bolsas, mas ainda não ganha dinheiro suficiente como atleta. “Nas horas vagas dirijo para o Uber para reforçar a renda em casa e também dou aulas artes marciais”. Aos 31 anos, soma 15 vitórias e quatro derrotas como profissional. Os cerca de seis anos dedicados ao esporte já o levaram a fazer duas lutas nos Estados Unidos, a Meca do esporte. Berinja deve voltar lá em dezembro.
“Se eu ganhar posso pedir a disputa do cinturão na minha categoria [até 63 quilos]”, avalia. “Isso me daria uma visibilidade muito grande e quem sabe poderia me fixar nos Estados Unidos. Esse é o grande momento da minha carreira até agora.”
No final de outubro, enfrentou Thiago Tubarão no Gold Fight, evento promovido pela sua própria equipe, a Gold Fight Team, como franco favorito. O combate durou pouco.
Não fossem os filhos e o sonho tardio de ser campeão, o pedreiro Thiago “Tubarão” dos Santos Guimarães, de 30 anos, já teria desistido do MMA. Começou a lutar profissionalmente há quase dois anos e, por causa da idade, o atleta de Osasco (SP), foi desestimulado a continuar diversas vezes.
Ele acorda no início da manhã, todos os dias, para ir ao trabalho. Pega condução, trabalha o dia todo na construção civil e alimenta-se como dá. A partir das 21h, de cinco a seis vezes por semana, vai treinar por até três horas antes de voltar para casa e finalmente descansar.
As condições não são ideais: em sua academia não há octógono, o tatame é improvisado e existe apenas um saco de pancadas. Tubarão não tem patrocínio, não descansa bem, não tem dinheiro para suplementação alimentar e nem nutricionista, fisiologista, preparador físico ou fisioterapeuta.
Em outubro, com uma vitória e quatro derrotas no cartel, Tubarão enfrentou na base da força de vontade o maior desafio da carreira até então: o bem mais experiente e preparado Anderson Berinja, no Gold Fight. A luta acabou rápido.
Berinja finalizou Tubarão com um mata-leão aos 2m11s do primeiro round, depois que a luta foi para o chão. Antes, ele abriu cortes no rosto de adversário com quatro cotoveladas devastadoras.
“Se eu conseguisse treinar nove horas por dia, com toda a estrutura e apoio que nem eles, você ia ver só”, declarou o perdedor instantes após a derrota. “Não vou desistir e abaixar a cabeça nunca. Agora é treinar mais duro ainda e me preparar para a próxima.”
Laisa “Madame Dolores” Coimbra costuma se apresentar como cantora e percussionista em bares do interior do Paraná, mas ultimamente tem alimentado o sonho de virar lutadora profissional.
Em agosto, ela recebeu uma ligação com uma proposta curiosa: lutar, dali a dois dias, contra Taila Santos. Taila já competia havia três anos e tinha um cartel de 13 lutas e 13 vitórias, dez delas por nocaute. Por outro lado, seria apenas a segunda luta de Laisa (na primeira, tinha sido finalizada e machucado o ombro).
Enquanto a maioria das pessoas responderia à ligação com um sensato não, ela resolveu dizer sim. Descobriu apenas na hora da luta que cotoveladas estavam liberadas. O combate foi rápido. Laisa recebeu três socos no nariz. Quando baixou a guarda para buscar ar, respirou também o próprio sangue.
O juiz parou a luta, dando nocaute técnico. “Olha para ela”, disse o médico que a atendeu ainda desnorteada. “Ela é uma cavala e você, uma iniciante! Parabéns por ter vindo!”
“Estou engatinhando no MMA ainda”, disse Laisa, que tem uma empresa que vende salgados e uma filha de 4 anos, Ana Vitória. “Tenho muito a aprender.”
A perda radical de peso é uma tradição importada do boxe, mas no MMA ela desafia os limites do corpo humano. Alguns atletas chegam a secar até 20 kg em duas semanas.
Alimentam-se muito pouco e treinam duro para cortar calorias. No final, passam por um processo de desidratação radical, tomam diuréticos, vão suar em saunas ou em banheiras de água quente. Alguns chegam a desmaiar. Já houve casos de morte.
Mas por que eles fazem isso? A lógica é a seguinte: o atleta precisa estar no peso da categoria apenas no dia da pesagem, sempre feita na véspera da luta. Um lutador cujo peso normal é 90kg, por exemplo, prefere se inscrever na categoria até 77kg. Ele vai emagrecer 13kg, passar pela pesagem, confirmar a luta e então recuperar, em um dia, todo o peso que conseguir.
Quanto mais pesado ficar nesse dia entre a pesagem e a luta, mais vantagem terá no confronto. Qualquer quilo a mais faz grande diferença no octógono. O atleta mais pesado, embora menos ágil, tem golpes mais fortes e é mais difícil de derrubar.
A prática não é ilegal e, embora muitas vezes ponha em risco a saúde do lutador, é muito disseminada.
O médico Artur Acha atende há 20 anos lutadores de MMA e já comandou a parte médica de diversos eventos no Sul do país. Ele tem palavras duras contra o hábito de perda de peso radical antes das lutas: “Isso é uma atrocidade bárbara”.
Os médicos recomendam que uma pessoa normal perca no máximo meio quilo por semana. A um atleta, perder mais de 3kg por mês já pode significar ultrapassar o limite do saudável. “Mais que isso ele já começa a colocar em risco o bom funcionamento do organismo”, diz Acha.
Mas a principal fonte de preocupação é a desidratação. Como a recuperação de líquidos é mais fácil no período pós-pesagem, os atletas perdem muitos litros de água nas horas finais antes de subir na balança. “Isso pode levar a um caso grave de insuficiência renal”, afirma o médico.
Além do processo de perda de peso, os lutadores se submetem a outros riscos à saúde ao participarem de torneio menores. A ausência de exames de sangue pode submetê-los ao contágio de vírus como o HIV e o da hepatite. Para economizar, muitos promotores também deixam de contratar médicos e ambulâncias para fazer o atendimento em seus eventos.
Mais do que por dinheiro, eu luto pela glória de ser respeitado e pelos meus filhos. Quero ser um lutador campeão para que eles se orgulhem de mim e tenham um bom exemplo a seguir na vida quando crescerem
Realizei sonhos e conheci lugares e pessoas que nunca teria conhecido. Não me imagino fazendo outra coisa e sempre digo: quem faz o que ama não tem que trabalhar. Não considero a luta um trabalho, é uma paixão de tempo integral
Eu luto por que não quero que meu filho passe pelo que eu passei. Já passei fome, fui menino de rua, tive problemas com drogas e o MMA apareceu na minha vida para me salvar e me dar uma oportunidade de criar minha família