Por que somos tão cruéis?

Não é de hoje que maltratamos nossos vizinhos. Paraguaios são alvo de piadas e a última envolveu Romero

Karla Torralba e Luiza Oliveira Do UOL, em São Paulo
Daniel Augusto Jr. / Ag. Corinthians

Sim, precisamos admitir. Somos preconceituosos com o Paraguai. O país é sinônimo de falsificação e muamba. O time que fica para trás é cavalo paraguaio. A fronteira com Ciudad del Este tem mais contrabando que as outras. O atacante argentino de habilidade discutível também tem de ser paraguaio. 

O que para os brasileiros é apenas uma brincadeira corriqueira veio à tona nesta semana com a manifestação pública do atacante do Corinthians Ángel Romero. Após se explicar por chamar o Santos de time pequeno, o jogador reclamou de preconceito. Disse sofrer com xenofobia e ter um tratamento diferenciado por parte da imprensa apenas por ter nascido no país vizinho.

Seu compatriota, o também corintiano Fabián Balbuena, endossou o coro. “Tiveram reações de alguns ‘jornalistas’ tirando o foco do futebol e falando do nosso país, logicamente ele se sente triste e até sinto dó dessa pessoa, esse tipo de comentário, zoeiras, críticas, está afetando diretamente não uma família, mas todo um país. Se dirigir dessa forma a um país é muito grave. A zoeira tem limites”.

Mas por que o nosso vizinho sofre com o menosprezo dos brasileiros? A resposta vem do século XIX, quando eclodiu a Guerra do Paraguai.

John Gress/Corbis via Getty Images John Gress/Corbis via Getty Images

O preconceito começou na guerra...

O que ninguém imagina é que o preconceito foi criado no século XIX na fatídica Guerra do Paraguai. O Brasil havia se juntado aos aliados Uruguai e Argentina contra o país vizinho em um combate extremamente sangrento que durou seis anos, matou milhares de homens e se tornou o maior conflito armado do continente americano. Na época, a corte do Brasil precisava legitimar essa ação para a população e convencê-la de que estava fazendo o certo.

A realeza, então, passou a usar as revistas de grande circulação na época para disseminar a sua ideia de superioridade e difamar o inimigo Paraguai. Assim, acabaram construindo uma imagem negativa do país.

“A guerra foi desgastante não apenas pelo recrutamento, mas em função dos gastos e do endividamento porque o país tinha que levar as tropas para lá. A ação militar precisava se legitimar e a legitimação passava por um trabalho de discurso oficial do Império, que fosse traduzido em imagens.”, conta o jornalista e doutor em história íbero-americana, Mauro César Silveira, que analisou sete publicações da época e escreveu o livro “A Batalha de Papel: a charge como arma na guerra contra o Paraguai”.

As publicações, em sua maioria em tom satírico, tinham o intuito de atingir o país e usavam muitas imagens fortes e legendas para reforçar a ideia de superioridade. Assim, chegaram a quase toda a população.

“As revistas apresentavam Solano López (presidente paraguaio) como um tirano, cruel, monstro, que incorporava o demônio. E a referência ao povo era sempre no sentido de ser um povo ignorante, selvagem, índio, no sentido pejorativo. Os soldados paraguaios eram apresentados como ladrões associando a contrabando, falsificação, negócios escusos. Aparecia muito a palavra selvageria e barbárie no discurso do Império. Era a civilização que combate a barbárie”, conta.

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E se enraizou na nossa cultura

O tom de deboche em relação ao Paraguai se amplificou ainda mais com a vitória na guerra que terminou em março de 1870 e dizimou o país vizinho. Aos poucos, de geração em geração, o preconceito foi se cristalizando na sociedade brasileira. A forma como as relações comerciais na fronteira com Ciudad del Este são vistas hoje vem desde aqueles tempos e não reflete a realidade.

“A questão da falsificação surge de algumas charges na época dizendo que os paraguaios gostavam de praticar negócios escusos. Uma das imagens tem um policial, uma autoridade na rua e uma caracterização com um tentando furtar o objeto do outro. A imagem se referia não apenas a ações escusas, mas a trabalhar com coisas falsas. Traz ideia de fake, tudo meio torto, meio falso”, relata Mauro César.

“A fronteira com Ciudad del Este é como de qualquer país. A fronteira com a Bolívia tem contrabando de carro, drogas, armas, toda natureza. Mas não se cola essa imagem, se cola no Paraguai”.

Julian Herbert/PA Wire Julian Herbert/PA Wire

O cavalo paraguaio

Quem nunca usou a expressão ‘cavalo paraguaio’ para falar do time que dispara na frente do campeonato, mas perde força e logo é ultrapassado pelos outros na tabela? Mesmo inocente, o jargão tão comum no jornalismo esportivo também se refere a uma maneira pejorativa de tratar nossos hermanos.

A expressão também é um resquício da ‘Guerra do Paraguai’ nos dias atuais e começou a ser usada porque, historicamente, o Paraguai foi acusado de ter provocado o início da guerra e depois ter perdido de forma acachapante.

Outra versão bastante pertinente sobre o início da expressão é que as tropas paraguaias tentaram invadir a então província do Mato Grosso, hoje estado do Mato Grosso do Sul, durante a guerra. Mas os índios Guaicurus, que viviam em territórios brasileiros, eram cavaleiros que apoiaram as tropas tupiniquins contra os adversários. “Os Guaicurus, por uma questão de interesse da tribo, ajudaram a fazer correr os paraguaios e fizeram com que os cavalos recuassem”, conta o jornalista Mauro César Silveira.

Sim, somos preconceituosos

A gente nem percebe, a piadinha sai da boca de forma natural. Afinal, é normal fazer piada de paraguaio, né?! Até eles já se acostumaram...Mas não, o alvo da brincadeira não se acostumou. E não é a primeira vez que uma situação de preconceito com o Paraguai é exposta. Elas já aconteceram de outras maneiras: em vídeo, comentário e até em música.

  • Edmundo

    O ex-jogador e comentarista Edmundo quis ainda explicar a piada a Romero. "É só uma brincadeira que os brasileiros fazem quando a gente acha que alguma coisa é falsa, que a gente acha que veio do Paraguai. Não é preconceito. Eu cresci com as pessoas dizendo que as coisas falsificadas eram paraguaias, mas nada contra o país, muito pelo contrário".

    Imagem: Reprodução/FOX Sports
  • Revista Veja

    Em 2001, havia um "Made in Paraguai" como título de um quadro de uma matéria da revista Veja sobre um ranking de pirataria pelo mundo. O detalhe era que o país da América do Sul não fazia parte desta lista.

    Imagem: Tuca Vieira - 26.nov.2004/Folhapress
  • Mamonas Assassinas

    Da forma mais sutil, a música Pelados em Santos, dos Mamonas Assassinas cita o país. "Pos Paraguai, ela não quis viajar. Comprei um Reebok e uma calça Fiorucci. Ela não quer usar".

    Imagem: Reprodução
  • SporTV, em 2010

    O canal precisou se retratar após exibir uma reportagem "engraçadinha" sobre o país vizinho falando de uma promessa feita na Copa sobre Larissa Riquelme e citando alguns pontos do Paraguai.

    Imagem: Reuters
  • Estádio 97

    O estopim da atual polêmica envolvendo Romero aconteceu no programa de rádio, quando o comentarista Marcão falou sobre o corintiano após clássico contra o Santos. ""Ele [Romero] saiu de um país que é praticamente uma aldeia indígena onde ele morava. Eles movimentam a economia através de tráfico de drogas, de contrabando de arma, produtos ilegais", disse.

    Imagem: Daniel Vorley/AGIF

Relembre a piada que deu errado no SporTV em 2010

Tom Honan/EMPICS via Getty Images Tom Honan/EMPICS via Getty Images

Jogadores já foram chamados de muambeiros

Arce, Gamarra, Rivarola, Romerito, Edgar Baez, Gato Fernandez e outros paraguaios já passaram pelo futebol brasileiro e dificilmente escaparam das piadas sobre seu país. Três deles – Romerito (ex-Fluminense), Rivarola (ex-Grêmio, Palmeiras e América-RJ) e Edgar Baez (Santos) relembraram suas épocas de futebol brasileiro, quando “se sentiram em casa e aprenderam a conviver com as brincadeiras”.

“Muita gente no Brasil fala de Ciudad de este, da fronteira do Brasil, que tem muito muambeiro. Eu discuti com um amigo meu, ele fala sempre que Ciudad del Este é considerado lugar de muamba, contrabando”, relembrou Rivarola, que também ouvia esse tipo de coisa nos jogos. “Uma vez escutei disputando o Gauchão, sempre falam: ‘muambeiro, falsificado, paraguaio, fica mal’. Eu ficava magoado, mas tem que ficar quieto, não tem o que fazer, tem que se concentrar no trabalho”, completou o ex-zagueiro, que atuou por Grêmio e Palmeiras.

Campeão brasileiro pelo Fluminense em 1984, Romerito contemporizou as provocações. “Falavam: ‘Não me tragam uísque falsificado’ por causa da fronteira. Me falavam, ‘vai vender muamba lá’. Mas era parte do folclore, agora não pode mais falar. Eu recebia muitas ofensas, mas são parte do futebol. Dentro de campo isso é normal”, contou.

"Eu me senti muito em casa no Santos, com o pessoal do clube. Tenho amigos até hoje. Já joguei na Argentina e na Arábia e em nenhum lugar foi como no Brasil. Foram quase três anos no Santos e fui muito feliz. Na época que eu jogava me falavam de 'Paraguai falsificado', mas eu tomava como brincadeira. Nunca foi de ofensa. Sempre ouvia coisas, de companheiros de clube mesmo, mas nunca dei muita importância. Não adianta, a gente convivia juntos"

Edgar Baez, Ex-jogador do Santos nos anos 1990

Reprodução/Instagram Reprodução/Instagram

Larissa Riquelme: a mais lembrada do Paraguai

Oito anos se passaram desde que Larissa Riquelme surgiu na torcida paraguaia na Copa de 2010, mas a ilustre torcedora ainda é muito lembrada como símbolo do país no Brasil. Foi citada no polêmico comentário sobre Romero. “O que a seleção paraguaia fez para o futebol mundial? Lembro de Larissa Riquelme e olhe lá”, disseram os comentaristas.

Larissa respondeu. Ela agradece ao carinho que ainda recebe. Mas se incomodou com os comentários sobre seu país. “Eu apoio o que Romero disse. Nenhum jornalista deveria insultar o meu país. Quem é ele pra insultar o meu amado Paraguai? Eu estranho que alguns jornalistas falem assim de um país onde sempre foram bem tratados seja no âmbito esportivo e ainda mais no social”, disse.

A paraguaia explicou que nunca passou por algo assim no Brasil. “Quando fui ao Brasil, nunca passei por uma situação como a de Romero. Sempre me respeitaram e me senti em casa. Acho que os comentários foram uma maneira de chamar a atenção, mas muito infeliz. Ninguém pode difamar outro assim. E não faz mal recordar a história do Paraguai. Eu jamais falaria mal de um país”, comentou.

Desconhecimento do Paraguai

A crítica ao país demonstra um desconhecimento muito grande do que realmente é o Paraguai. Não me parece conveniente levar questões de futebol a outro nível, ao ponto de ofender uma nação irmã. Exaltaram as pautas negativas do Paraguai, quando todos os países têm suas luzes e sombras"

Ministro Enrique Luis Insfran Miranda, Consul Geral do Paraguai em São Paulo

O Paraguai é um dos países que mais obteve crescimento em todas os setores nos últimos anos, bem como, é um dos principais destinos de turismo, residência e de viagens a trabalho dos brasileiros, que usufruem do ótimo nível de vida"

Consul Geral do Paraguai em São Paulo

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