Barbárie olímpica

Morte de Marielle é o fundo do poço do Rio de Janeiro da Olimpíada, marcado por corrupção, falência e terror

Márcia Foletto/Agência O Globo
MARCOS BRINDICCI/REUTERS MARCOS BRINDICCI/REUTERS

Marielle Franco morreu na noite de 14 de março de 2018, com quatro tiros na cabeça, dias depois de denunciar a violência policial no Rio de Janeiro. Não é exagero dizer que esta é a consequência de uma história que começou há nove anos, quando um grupo de engravatados foi à Dinamarca atrás do direito de chamar o mesmo Rio de Janeiro de “sede olímpica”.

Era um evento de gala para ratificar o projeto de um grande país, começando por uma maravilhosa cidade. Em 2016, a pira olímpica foi armada na frente da igreja da Candelária, onde 23 anos antes uma chacina vitimou oito crianças de rua, alvos da brutalidade policial, e colocou o Rio de Janeiro no mapa da violência mundial. Era uma mensagem para o mundo, que tanto tinha se chocado nos anos 1990, de que a barbárie havia passado.

Não passou. Nos últimos anos, o Rio teve três ex-governadores presos, e cinco dos últimos sete que ocuparam o Palácio Guanabara respondem a questões na Justiça – os outros dois estão mortos. A corrupção, que passou pela Olimpíada, anda de mãos dadas com a enorme crise financeira que fez o Estado desidratar. Dos R$ 17 bilhões em dívidas que a cidade acumulava em 2017, 41% vinham só de obras de mobilidade urbana dos Jogos. Atrasos seguidos de salário no funcionalismo público e sucateamento das forças policiais, entre outros fatores, contribuíram para a criação do cenário de violência que justificou a polêmica intervenção militar.

Foi essa operação que Marielle (PSOL-RJ), quinta vereadora mais votada do Rio de Janeiro, foi incumbida de relatar na Comissão da Câmara Municipal que vai acompanhar as ações do Exército. No último fim de semana, ela denunciou o 41º BPM (Batalhão da Polícia Militar) de Acari, na zona norte do Rio, que estaria “aterrorizando moradores”. “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”, escreveu a vereadora, negra e nascida na Maré, um dia antes de o carro em que estava ser alvejado, matando ela e Anderson Gomes, o motorista que a levava.

Marielle e sua história mostram que a Olimpíada, e tudo o que ela representava, deu errado.

Os Jogos Olímpicos foram uma plataforma para cometer outros delitos. Por meio dos Jogos chegou muito dinheiro público e privado para construir o metrô, para construir estradas e muitas outras obras que serviram de instrumento para ganhar mais dinheiro ilícito

Fabiana Schneider

Fabiana Schneider, procuradora que levou Carlos Nuzman à cadeia, ao El Pais

Danilo Verpa/Folhapress Danilo Verpa/Folhapress

Segurança falhou na Rio-2016. Depois disso, só piorou

Em 2016, a dois meses dos Jogos, o Rio de Janeiro decretou estado de calamidade pública, àquela altura com um rombo de R$ 19 bilhões em suas contas. A Olimpíada teve o maior esquema de segurança da história do país, com mais de 85 mil agentes envolvidos. Parte deste efetivo, formado pela Força Nacional, foi instalado em casas sem mobília e com atrasos de salário. Para ter gás e internet, os policiais tinham de negociar com as milícias das comunidades em que estavam, cenário rotineiro para os moradores daquelas regiões.

Se a segurança funcionou aos tropeços na Olimpíada, que viu bala perdida em área de competição e ônibus da organização ser alvejado em via expressa, imagina o que o carioca comum sofreu no dia a dia? Foram 120 mil roubos registrados no Estado do Rio de Janeiro em 2010. No ano passado, esse número subiu para 231 mil. 2017 ainda teve recorde na apreensão de fuzis (499) e 40 mortes violentas para cada 100 mil habitantes, maior índice desde 2009. Os dados são do ISP (Instituto de Segurança Pública).

Feminista, negra e "Cria da Maré". Quem foi Marielle?

Arte/UOL Arte/UOL

Os homens por trás da Rio-2016

As fotos acima foram tiradas em 2 de outubro de 2009, quando o Rio de Janeiro foi eleito cidade-sede da Olimpíada de 2016. A comitiva recheada de políticos comemorou a escolha que prometia mudar a Cidade Maravilhosa e o país para melhor. Hoje, quase ninguém escapa do escrutínio da Justiça. 

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    Carlos Nuzman

    Foi apontado como suspeito de intermediar a compra do voto do representante do Senegal no COI para a escolha da cidade do Rio de Janeiro. Foi preso e solto por um habeas corpus, mas é acusado de corrupção passiva, organização criminosa, lavagem de dinheiro e evasão de divisa.

    Imagem: Taís Vilela/UOL
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    Lula

    O ex-presidente lida com uma série de acusações. Foi condenado, em segunda instância, a 12 anos e um mês de prisão por receber vantagens indevidas na aquisição de um tríplex em Guarujá. O petista ainda é réu por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do sítio em Atibaia.

    Imagem: Raul Spinassé/Agência A Tarde/Estadão Conteudo
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    Sérgio Cabral

    Segundo o MP-RJ, o ex-governador do Estado teria recebido mais de US$ 10 milhões (R$ 37 milhões) em propinas em esquema que envolveu a compra de votos para a escolha do Rio como sede da Olimpíada. Responde a 21 processos, foi condenado em cinco deles e sua pena chega a cem anos.

    Imagem: Reprodução de vídeo
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    Eduardo Paes

    O ex-prefeito do Rio não foi envolvido diretamente em nenhum desdobramento da Lava Jato, mas seu legado na preparação da cidade para receber a Olimpíada já foi atingido em cheio. Um ex-assessor direto disse ter pago propina para comprar votos de membros africanos do COI para a escolha do Rio.

    Imagem: PAULO CARNEIRO/AGÊNCIA O DIA/AGÊNCIA O DIA/ESTADÃO CONTEÚDO
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    Cesar Maia

    O ex-prefeito do Rio foi envolvido em uma investigação sobre o filho, Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara dos Deputados. O político teria pedido à OAS doações eleitorais no valor de R$ 1 milhão em 2014, dinheiro que foi repassado oficialmente à campanha do pai ao Senado.

    Imagem: Carlos Monteiro/Futura Press/Futura Press/Estadão Conteúdo
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    Orlando Silva

    Ministro do Esporte à época da escolha do Rio como sede olímpica, Silva deixou a pasta em 2011, desgastado por denúncias em um caso de corrupção. O político do PCdoB foi acusado de ter participação em um esquema de desvio de dinheiro público do programa Segundo Tempo.

    Imagem: Flávio Florido/UOL
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    João Havelange

    Ex-presidente da Fifa e membro do COI, morreu em agosto de 2016. Em 2011, teve de renunciar ao cargo no COI para evitar uma possível expulsão em razão de denúncias de corrupção. Havelange foi acusado de receber US$ 1 milhão em troca que a agência ISL conservasse os direitos de transmissão da Copa do Mundo.

    Imagem: AFP PHOTO / OLIVIER MORIN
Lalo de Almeida/ Folhapress Lalo de Almeida/ Folhapress

Violência não perdoa os atletas da cidade olímpica

No papel, o Rio de Janeiro pós-olímpico deveria ser um celeiro de novos talentos, com infraestrutura e profissionais capacitados para toda uma nova geração de atletas olímpicos. Na prática, o caos que assola a cidade afeta também os esportistas que precisar tentar sobreviver a ela. O relato abaixo oculta a identidade das vítimas para evitar qualquer tipo de retaliação, mas todas as histórias são reais. 

Roberta, atleta de seleção brasileira, perdeu dois primos na Cidade de Deus nesta semana. Roberta chorou os corpos velados em caixão fechado, mas não pode falar deles, não assim publicamente. Roberta não se chama Roberta. Se a voz de Marielle foi tão facilmente calada, imagine a dela.

Flávia, que também não chama Flávia, teve um notebook furtado. Estava saindo de casa, indo treinar. Conseguiu reavê-lo quando procurou quem manda na comunidade. O computador foi devolvido, mas ninguém entrega a ela qualquer sensação de segurança. Foi embora do Rio.

Fernando, que não se chama Fernando, é do Exército. Terceiro sargento. Já bateu continência no pódio, mas prefere que ninguém saiba disso na comunidade e esconde o documento que o identifica como militar. Já perdeu as contas dos treinamentos que perdeu por estar ilhado em casa, nos tiroteios entre bandidos e bandidos. Não quer virar estatística na favela. Também foi embora do Rio. O Exército, consultado, achou melhor mesmo.

Rodrigo, que não se chama Rodrigo, teve o carro parado numa blitz. O policial tentou plantar alguma coisa no veículo, ele percebeu. Atleta limpo, que passa constantemente por exames antidoping, reclamou de quem tentava manchar sua reputação por um suborno. Conseguiu se livrar porque um primo também é policial, de patente superior. Voltou para casa em paz, mas nem tanto. Quer preparar as malas, mas a bolsa não dá conta.

Camila, que não se chama Camila, fez um relato parecido esses acima a um jornalista. O relato dela, tratada por nome e sobrenome, saiu no jornal. Pra favela, ela não pode voltar mais, ainda que seja lá a sua casa, a única que conquistou em anos dedicados ao esporte. Sua história, hoje, é publicada sem assinatura, como de outros atletas que aceitaram falar com a reportagem.

Ninguém quer ter a vida interrompida como Marielle.

Raphael Mesquita/PHOTO RIO NEWS Raphael Mesquita/PHOTO RIO NEWS

Olimpiada foi "último respiro", diz Canto

Não é à toa que Flávio Canto chamou seu instituto de "Reação". Naquele comecinho dos anos 2000, era necessário reagir de alguma forma no Rio de Janeiro. "Construir", como ele diz. A empreitada teve sucesso. São 1.500 alunos atendidos atualmente, uma campeã olímpica formada, milhares de jovens que tiveram uma oportunidade. Só quem não reagiu foi o Rio de Janeiro. Até levantou, quis engatinhar e chegou a erguer a cabeça com a Olimpíada, mas sucumbiu de novo.

"A gente até teve um respiro de esperança com a UPP, mas aí não teve na segunda parte. Quando o governo devia entrar na comunidade de fato, acabou o dinheiro", lembra o ex-judoca.

É como se a gente tivesse regredido. A Olimpíada foi o último respiro, parecia que tudo ia acontecer. Estou voltando no tempo

Rafaela Silva, sua pupila, recentemente reclamou nas redes sociais de uma abordagem policial. Esperava apoio, foi criticada. "A gente está vivendo esse momento doido. Você fala uma coisa e parece que você está criticando outro lado. A gente vê morrer um policial por dia, mas se critica uma coisa errada, parece que é toda a instituição polícia. Acho que a Rafaela não está preparada para viver isso e tento proteger ela sempre que posso", opina Flávio.

É a referência do descaso. Com o esporte, com o dinheiro público, a negligência com o futuro das pessoas... Isso é fruto de um planejamento feito para se furtar. O Brasil foi furtado e o esporte foi a ferramenta para que isso ficasse apagado

Diogo Silva

Diogo Silva, lutador de taekwondo e medalhista do Pan-07, disputado no Rio de Janeiro

Acervo Pessoal Acervo Pessoal

"Se começam os tiros, os pais mandam: 'Não deixa sair da academia'"

Depoimento de Raff Giglio, do Instituto Todos pela Luta, que atende jovens da comunidade do Vidigal:

"Continua sendo uma luta do bem contra o mal. Infelizmente o Rio, assim como a política nacional como um todo, está uma coisa lastimável. O que a gente faz é tentar ajudar a comunidade fazendo o que o poder público não faz. Ele não oferece oportunidade por meio do esporte. Projetinho de prefeitura, quando tem, é para inglês ver, é enganação.

No Vidigal, eu não lido com eles (os chefes do tráfico). Eu não me meto com eles, e eles não se metem comigo. Mas agora volta e meia a gente escuta coisas que não tinha, volta e meia tem tiro. Temos um grupo dos pais do projeto. Se começam os tiros, os pais já mandam: 'Não deixa sair da academia, não'. 'Deixa que eu vou buscar'. A gente tem de ficar entre nós passando notícia, avisando que parou o tiro.

Para mim, dá na mesma. Continuo fazendo a mesma coisa. Com bandido sem bandido, com tiro sem tiro. Recebi essa missão de tocar esse trabalho. Não quero saber. Tem dinheiro? A gente faz. Não tem? Faz também. Não vou parar por causa de nada. Político ou bandido"

AFP PHOTO / MAURO PIMENTEL AFP PHOTO / MAURO PIMENTEL

Sucateamento do Rio de Janeiro não perdoou nem o futebol

O caos do Rio de Janeiro não permite nem pão e circo. No ambiente de corrupção, falência e violência, até o futebol carioca foi sucateado. Em grandes clássicos, tornou-se comum ver brigas de torcida organizadas virarem tragédia. No ano passado, por exemplo, o botafoguense Diego Silva dos Santos foi assassinado com golpes de espeto de churrasco antes de um jogo no Engenhão.

Em um clássico em São Januário, vascaínos revoltados com a derrota para o Flamengo invadiram o gramado e provocaram tumulto, amedrontando todo mundo que estava nas arquibancadas, inclusive crianças. No fim do ano, flamenguistas transformaram o entorno do Maracanã em praça de guerra, agredindo argentinos do Independiente e causando tumulto ao fim do jogo, após a derrota rubro-negra.

O Maracanã, aliás, é um caso à parte. Fruto de uma licitação contestada no meio da reforma para a Copa do Mundo, hoje está nas mãos da iniciativa privada. Como jogar lá custa caro, a tradicional casa do futebol carioca está quase sempre inativa.

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