A grande luta

Lenda do MMA brasileiro encara seu adversário mais improvável: um pedreiro

Adriano Wilkson* Do UOL, em São Paulo
Divulgação/Thunder Fight

* Trecho do livro "A grande luta" (Editora Todavia), que chega às livrarias em março e conta a história real de atletas de MMA em torneios brasileiros, longe dos holofotes do UFC. 

Às vezes o MMA parece uma simples dramaturgia, na qual os personagens se digladiam em duelos odiosos sobre o palco, mas na coxia se refestelam satisfeitos com a reação que causaram no público. Só que às vezes o teatro pega fogo e todos correm desesperados, e você não sabe se deve tentar salvar a vida ou se o incêndio é só uma reviravolta preguiçosa do roteiro. 

Paulista de Taboão da Serra, Flávio Álvaro foi até a última fronteira do MMA e voltou para contar. Fez seu nome como o rei do Rio Heroes, um torneio controverso que acabou proibido. Dois homens se enfrentavam sem luvas nem regras, e sobretudo nenhum senso de preservação da espécie. Longe de ringues ou octógonos, cercados por outros lutadores, eles se agrediam até um deles desistir ou apagar. Era uma espécie de Clube da Luta, só que real, transmitido pela internet, sob o sistema de pay-per-view. Flávio foi campeão e ganhou dinheiro. Criticado por quem julgava esse tipo de luta nefasta ao MMA, que tentava se vender como um esporte sério, ele sempre alegava que precisava pagar as contas e comprar remédio para a mãe doente. Com 59 lutas oficiais no cartel, o “Legendary” chegou à pesagem do Thunder Fight, um importante torneio de São Paulo, ameaçando o adversário.

Maurício Facção, que ficou o tempo todo de touca ninja, só mostrando os olhos apertados, também tinha um nome a zelar. Dono de cinturões de torneios brasileiros, em entrevistas recentes afirmara que ia dar “uma surra no velhote” – o outro era apenas quatro anos mais velho que ele. Facção era conhecido por promover o que se chama de trash talking, a arte de provocar os adversários via imprensa ou redes sociais. Na preparação para a luta, publicou um vídeo tecnotosco no qual aparecia segurando uma corrente em cuja ponta estava a cabeça de Flávio. Quando o Thunder Fight anunciou a luta, muitos fãs e especialistas não demoraram a dizer que era o combate mais aguardado do MMA nacional.

Mineiro de fala mole, Facção estava acostumado a sentar o verbo, mas a luta seria em São Paulo, terra de Flávio Álvaro. A pequena sala da pesagem em um hotel na capital ficou lotada de torcedores e amigos do Legendary. “Seu lixo”, gritavam na orelha de Facção, que evitava responder. “Vou trazer minha mãe para bater em você, seu merda!”

Flávio Álvaro foi o primeiro a se pesar. Subiu nu na balança, enquanto o funcionário Magno Wilson tentava ler o resultado. Foi o único momento na tarde em que houve silêncio. De onde eu estava, só conseguia ver o rosto do lutador, o olhar impassível mirando o nada, os braços cruzados nas costas, a postura ereta e militar. A luta seria em peso combinado, 68,5 quilos, uma marca intermediária entre categorias oficiais. Magno teve dificuldade em aferir o peso. Mais tarde, ele me contou que o lutador ficou o tempo todo se mexendo, movendo o corpo e os pés numa tentativa de ludibriar a aferição.

Reprodução/Facebook Reprodução/Facebook

O lutador de MMA Flávio Álvaro, o Legendário

Primeiro, Magno anunciou que Flávio estava com 70 quilos, mas não tinha certeza. Fez outra tentativa. Na nova medição, o lutador já estava cinco quilos mais leve. Quando Magno anunciou os 65 quilos, muito abaixo do limite, a torcida fez a festa, comemorando o sucesso do atleta. Flávio ergueu o dedo do meio para o rival. “Seu arrombado”, disse um torcedor colado em Facção. “Você vai morrer amanhã, seu lixo.”

O mineiro protestou, inconformado com os cinco quilos de diferença entre uma pesagem e outra. “Vamos de novo”, disse Magno. Mas antes que ele pudesse pedir qualquer coisa, Flávio se afastou, desatarraxou a tampa de uma garrafa de plástico e bebeu seu conteúdo rapidamente, boicotando qualquer pesagem. Facção, considerando o gesto uma tentativa de burlar as regras, recusava-se a subir na balança. Enquanto conversava com Magno, Flávio se aproximou pronto para dar o bote. “Vai tomar no olho do cu, seu cuzão”, disparou. Um membro da organização precisou contê-lo.

Sob a máscara ninja, a voz do mineiro saía abafada, mas ele pareceu pedir um pouco mais de profissionalismo ao rival.  “Profissional é o caralho”, rebateu Flávio. “Sobe logo nessa balança!”

A cada manifestação do lutador, a torcida de Flávio irrompia em xingamentos e gritos de guerra. Aos poucos, diminuía a distância segura entre o homem e a turba. “Está peidando? Amarelando assim na cara dura?”, disse um sujeito. A cada grito, um passo em direção ao atleta. O ambiente ficou tóxico, uma pequena fagulha causaria uma explosão. No meio do fogo cruzado, Magno tentava negociar uma saída diplomática.

Até que Flávio pediu licença e começou um discurso. “Eu saí de 88 quilos para essa luta. Hoje na Bodytech cheguei com 73 e só saí de lá com 68,5 que nem um homem. Eu nunca estourei uma pesagem, a não ser no dia que minha mãe morreu, que estourei duzentos gramas.” E se dirigindo a Facção: “Aceita a luta. Amanhã você vai apanhar que nem uma mulher.”

A torcida, mulheres inclusive, aplaudiu e gritou. Mas ainda tinha mais. “Sabe qual é o medo da puta?”, perguntou Flávio Álvaro. “Que eu falei que se eu batesse 66 eu ia pegar ele de cotovelo. Amanhã eu vou lhe pegar de cotovelo”, disse ele. “De cotovelo!”

Os dois se puseram frente a frente, e Magno rapidamente se meteu entre eles para evitar um confronto físico. Quando finalmente Facção se convenceu a subir na balança, Magno anunciou seu peso: 66,8 quilos. Sob insultos e ameaças de morte, ele encarou Flávio Álvaro e outra vez os dois estiveram perto de resolver no braço.

O público se dispersou aos poucos. Flávio saiu com a torcida, Facção continuou discutindo com Magno. Em algum momento, ele aceitou as condições para a luta, o que incluía uma compensação financeira, e voltou para seu quarto.

No dia seguinte, horas antes da luta, quando as funcionárias do hotel abriram o quarto para a arrumação diária, tiveram uma surpresa. Sem avisar ninguém, Maurício Facção tinha deixado o hotel e voltara para Belo Horizonte. A luta mais esperada do Brasil, de repente, estava cancelada. 

Ao saber disso, Magno respirou fundo e pegou seu telefone. Os ingressos estavam vendidos, o torneio seria transmitido ao vivo na tevê. Se Maurício Facção dera no pé, era preciso encontrar alguém para enfrentar Flávio Álvaro, o Legendário.

Vitor Mayer/Divulgação Vitor Mayer/Divulgação

O lutador de MMA Clécio Bruto

O ginásio Mané Garrincha, no bairro do Ibirapuera, com suas paredes brancas e frias, tem um quê de hospital. Clécio chega ao vestiário sob as arquibancadas, senta-se e mantém a espinha ereta, as pernas abertas encavaladas no banco. Seu treinador senta a sua frente do mesmo jeito, inspecionando e massageando suas mãos.

São mãos duras, rígidas e grossas, à primeira vista incapazes de movimentos delicados. Mãos de quem passou os primeiros anos de juventude agarrando galos pelos pés e pelas asas, incitando-os a brigar em rinhas sangrentas que se estendiam pelas tardes quentes do sertão baiano. Clécio olha para elas com atenção, aperta os ossos, sente as articulações e o movimento dos dedos, enquanto seu treinador as enrola em gaze – as mãos de um lutador são seu principal instrumento de trabalho.

Antes da luta, as mãos dos atletas recebem tratamento especial. Sob as luvas, um amontado de gaze e esparadrapo funciona como proteção; cada pedacinho de gaze é posicionado para proteger uma parte específica; cada volta de esparadrapo é feita de acordo com a anatomia de cada um. Só alguém que te conhece muito pode enfaixar suas mãos.

Um lutador que prefira trocar socos vai achar melhor uma bandagem mais densa, mais protetiva, do contrário qualquer sequência de golpes mais intensa pode acabar com suas mãos. Um lutador especializado em técnicas de agarre, por outro lado, vai preferir mais mobilidade nos dedos e, portanto, uma proteção mais frouxa, que lhe garanta liberdade de manuseio. Processo lento, delicado e de certa forma íntimo, a bandagem é também uma oportunidade de atleta e treinador se olharem nos olhos e repassarem as últimas orientações antes da entrada no octógono.

Com frequência é também a última chance do lutador para vencer o medo.

Tem lutador que treme, tem lutador que se fecha em silêncio, tem lutador que boceja e pensa que está com sono, mas na verdade o bocejo é seu coração acelerando as batidas e pedindo ao corpo mais oxigênio porque mais tarde pode faltar.

Mas nessa noite de sexta-feira, Clécio está estranhamente calmo. Seus olhos pequenos quase se fecham quando ele sorri, suas pálpebras já naturalmente recurvadas se inclinam ainda mais para baixo enquanto as bochechas sobem. Ele tem a constituição firme de um trabalhador braçal, a pele morena e o cabelo rente à cabeça.  O maxilar grande contrai quando ele aperta os dentes, o nariz um pouco largo fica ainda mais largo quando ele respira fundo; a boca delicada e os lábios finos se movimentam na velocidade doce de sua prosódia levemente nordestina. Parado, ele parece aquelas cabeças antiquíssimas cravadas nas pedras vulcânicas da Ilha de Páscoa. Quando se mexe, quando sorri, quando fala sobre seu dia ou sobre seu passado na Bahia, Clécio transmite ingenuidade e simpatia, um jeito de primo do interior que não usa relógio.

Lindeclécio Oliveira Batista, nascido em Cafarnaum, na Bahia, cidade com 17 mil habitantes, virou Clécio “Bruto” Batista no MMA de São Paulo, o que é estranho porque não parece haver pessoa menos bruta do que Clécio Bruto. “Acho que é mais pela vontade”, ele me disse, quando comentei o paradoxo.

Aquele tinha sido um dia incomum. Vivendo em São Caetano do Sul, na região metropolitana de São Paulo, ele acordou às quatro da manhã para trabalhar. Normal. Foi de bicicleta à casa da mãe, onde um colega lhe daria uma carona até o serviço. Como sempre. No canteiro de obras, passou a manhã carregando latas de 25 quilos da massa corrida que seria aplicada no prédio em construção, em Osasco. Tudo bem, ele está acostumado com o trabalho no canteiro.

Divulgação Divulgação

Depois do almoço, seu celular tocou.

Soube que Maurício Facção fugira para não enfrentar Flávio Álvaro, o Legendário. Flávio tinha 40 lutas, treze centímetros e pelo menos quinze vezes mais fama que Clécio Bruto. Flávio tinha treinado duro nas últimas semanas, preparando-se para o combate mais aguardado do ano. Clécio havia se exercitado com as latas de massa acrílica. Flávio só tinha perdido dez das suas 59 lutas anteriores e fora campeão do lendário Rio Heroes; Clécio, aos 26 anos, tinha acumulado um cartel irregular de dez vitórias e nove derrotas.

Qualquer um que apostasse seu dinheiro em Clécio Bruto contra Flávio Álvaro seria considerado louco. E, no entanto, ao ser questionado se gostaria de enfrentar Flávio Álvaro naquela mesma noite, Clécio – como se tivessem perguntado se ele iria pedir pizza para o jantar – disse sim.  "Só se for agora", ele disse, para ser exato.

Quando chegou sua hora, Clécio Bruto caminhou até os fundos do ginásio e aguardou paciente o fim da segunda luta mais importante da noite. Seu treinador não precisava falar muito, ele já sabia o que fazer quando estivesse frente a frente com Flávio Álvaro. Enquanto o lutador balançava o corpo, enquanto fechava os olhos em uma oração silenciosa pedindo a proteção de Deus, o treinador e alguns colegas assistiam à outra luta no octógono. Quando ela acabou, Clécio se preparou para subir, mas então percebeu que algo não estava nos conformes.

Ele cochichou alguma coisa aos membros da equipe que o cercavam e uma onda de preocupação tomou conta de todos. “Ele esqueceu a coquilha”, disse o treinador, com um risinho nervoso. Coquilha é o protetor genital que atletas de MMA usam. Obviamente, golpes nas partes íntimas são proibidos em qualquer arte marcial, mas quem está disposto a arriscar? Feito de material resistente e tiras de plástico que se prendem ao redor da cintura, esse curioso equipamento esportivo poderia ser confundido com algum item vendido em sex shops. Todo lutador sabe que é praticamente impossível lutar sem uma coquilha entre as pernas. Como Clécio Bruto pode ter esquecido de vesti-la antes da luta mais importante de sua carreira é um mistério ainda sem explicação. “É muita adrenalina”, arriscou o treinador.

Um rapaz foi correndo à arquibancada buscar uma coquilha para Clécio. A luta anterior já tinha terminado e os atletas se preparavam para sair do cage. Em poucos segundos, a locutora anunciaria o principal combate da noite para satisfação dos milhares de pessoas que aguardavam ansiosamente por aquele momento, fosse no ginásio, fosse em casa, pela tevê.

“Não dá para subir sem?”, perguntei ao treinador. “Não dá”, ele responde. “Na minha época não tinha coquilha. A gente colocava meia, mas não resolvia. Tive que fazer cirurgia para conseguir ter filho porque o médico disse que meu esperma tava tudo morto.”

Mas o MMA é um esporte coletivo, e assim a salvação de Clécio vem das mãos de um colega que já havia lutado e não precisaria mais se proteger. Clécio recebe o equipamento e rapidamente o ajeita sob a sunga.

Antes de subir, abraça cada um dos homens que o acompanham e ouve atento o discurso do treinador ao pé do ouvido. Quando seu nome é anunciado e a música começa a tocar, o treinador diz: “É a luta da sua vida. Vai se divertir.” E ele sobe.

A música não tinha letra. Era uma orquestra de violinos frequentemente escolhida por lutadores nessas ocasiões, uma melodia que transmite um senso de motivação, coragem e heroísmo, justamente o que Clécio precisava para derrotar uma lenda. À frente de sua equipe, ele caminha diante do público de modo acanhado, tem o rosto besuntado de vaselina e abraça novamente os amigos. Dentro do octógono, tem uma visão privilegiada do espetáculo de terror armado por seu adversário.

Divulgação/Thunder Fight Divulgação/Thunder Fight

Flávio Álvaro aparece com o rosto encoberto. Sua equipe, também mascarada, adula-o como se ele fosse o soberano de um universo habitado por criaturas macabras. À frente da comitiva, o lutador caminha com passadas firmes e arrogantes, vestido com máscara e camiseta de caveira. Outras caveiras, cachorros sanguinários e palhaços diabólicos compõem o séquito. São muitos, mais do que a organização do evento permite. Um funcionário tenta barrar algumas criaturas, mas Magno permite que o show prossiga. Atrás deles, o telão com o nome do lutador se enche de imagens de chamas e descargas elétricas. Os torcedores urram. E Flávio Álvaro, ao tirar a máscara e a camiseta, revela o corpo negro e musculoso, brilhando sob a luz ofuscante do ginásio, pronto para destruir Clécio Bruto. Clécio reage como se não fosse com ele. 

Divulgação/Thunder Fight Divulgação/Thunder Fight

O árbitro os chama ao centro do octógono, e Flávio Álvaro aproxima seu rosto ao de Clécio, e o mira do alto, sem piscar, como a tentar agredi-lo com os olhos, aquele olhar assassino que ele vem ensaiando há dias e lançando em quem ousar desafiá-lo. Clécio escuta as últimas instruções do juiz impassível, o semblante sério e distante, calmo e resignado, com expressão de quem não conseguiu descer do trem na sua parada e espera para desembarcar na próxima. O árbitro dá o sinal, e Clécio parte para cima de Flávio de uma maneira tosca, como um cavalo que se desamarrou da carroça mas ainda não aprendeu a correr sem o peso dela; Flávio dá um passo para trás, talvez surpreso com a iniciativa; retoma uma posição agressiva e bate de volta. E eu penso que o massacre vai começar e temo pela saúde de Clécio, porque àquela altura eu já não consigo deixar de gostar dele, admirar sua coragem e sua resignação diante do abismo. Sinto o cheiro de sua derrota e torço para que seu fim seja ao menos rápido e indolor.

Mas eu estou errado.

“Isso parece meio desigual, né?”, comenta Caio ao meu lado, um lutador do time de Guarulhos que está fazendo um bico na produção. E parecia. Clécio, muito menor, aparentemente assustado, diante de um monstro esculpido em mármore. Ele tenta acertar socos, mas Flávio mostra não se incomodar com eles e responde na mesma moeda. Flávio tenta derrubá-lo e, embora seja mais alto e aparentemente mais forte, não consegue levar ao chão o adversário, que planta os pés no tatame e evita a queda. Em mais uma tentativa sôfrega, Clécio arma uma sequência de golpes que forçam o adversário a se aproximar da grade, mas de repente, no meio do caos de braços e corpos se movendo rapidamente, uma das mãos de Flávio acerta o rosto de Clécio, e ele se desequilibra e cai no chão. Indefeso, tenta se agarrar às pernas de Flávio, que se projeta sobre o outro golpeando a lateral de seu crânio. Uma, duas, três vezes.

Eu achei que era o fim.

Mas eu estava errado outra vez.

Divulgação/Thunder Fight Divulgação/Thunder Fight

Clécio se levanta e encontra o caminho até o corpo do rival. Ele acerta um golpe, e depois outro, e começa a se sentir mais confortável. Quando Flávio o segura pelo pescoço, diminuindo a distância entre os dois para proteger sua cabeça, Clécio mira no abdômen, acertando cruzados e joelhadas que o oponente sente como se fossem facadas. Para se defender de uma rajada de fúria, Flávio ergue os braços sobre a cabeça e seu corpo institivamente se movimenta para trás – e ele perde o equilíbrio e tropeça, convidando Clécio a prensá-lo contra a grade.

“Ele sentiu sua mão, ele tá com medo”, diz o treinador de Clécio no intervalo. “A luta é sua.” Clécio tem 26 anos, e isso deve fazer alguma diferença. No segundo round, a juventude e os pulmões começam a falar mais alto. Sem alternativa, Flávio agarra Clécio e o leva para grade, tenta ganhar tempo para respirar ou para descobrir algum ponto fraco, mas Clécio adota uma estratégia inteligente e começa a chutar a perna de Flávio com força, no mesmo ponto, uma, duas, doze vezes, levando a mesma parte do músculo ao limite extremo. A cada chute, a torcida de Clécio grita muito e a resistência de Flávio desmorona um pouco.

E então, no terceiro e último round, um golpe na base daquela fortaleza engendra uma tragédia. Os dois estão no centro do octógono. Clécio chuta a parte externa da perna de Flávio, e depois chuta a parte interna. Os dois se agarram. Clécio acerta um soco na lateral da cabeça e depois um por baixo, em direção ao queixo, encontrando o único caminho possível no meio dos braços defensivos de Flávio. Os braços, antes firmes, abrem-se e esparramam-se pelo ar. Antes que Flávio possa perceber o que está acontecendo, a mão direita de Clécio se move com força e acerta o rosto dele na altura do queixo. Desnorteado, Flávio cai com as costas no chão, e seus pés sobem institivamente como a se proteger da ameaça que se aproxima. Agora não há mais nada a fazer. Caído no chão, os braços estendidos ao lado do corpo, Flávio é uma tábua prestes a ser martelada por Clécio. Que bate uma vez. E bate duas vezes. O juiz corre para se colocar entre os dois, um gesto de clemência diante do terror, e agarra Clécio Bruto pela cintura levando-o para longe. 

Divulgação/Thunder Fight Divulgação/Thunder Fight

Clécio não parece acreditar. No ginásio ouve-se "The Eye of The Tiger", música que embala as vitórias de Rocky Balboa. Ele abre os braços como a abraçar o céu e urra para o alto. Seu protetor bucal escorrega. Um amigo invade o octógono para erguer o lutador do chão.

Quando Clécio Bruto sai do meio do amontoado de corpos que estão lá para celebrar sua vitória, ele está chorando. Mas não é um choro suave, uma lágrima que escapa sorrateira do canto dos olhos: é o pranto de uma criança que se perdeu dos pais no parque de diversões. Com os olhos inchados de choro e violência, Clécio abraça Flávio Álvaro, derrotado e impotente, e depois se ajoelha a seus pés, reconhecendo que acaba de superar uma lenda.

Divulgação/Thunder Fight Divulgação/Thunder Fight

Nos vestiários, o veterano é cercado por sua equipe e seus amigos. Ele pede desculpa pela derrota, diz que não se sentiu bem e fala das facadas que lhe rasgaram a carne a cada soco de Clécio na barriga. “Chegou uma hora que eu não queria mais estar ali”, ele diz. Sua expressão, antes tão ameaçadora, parece frustrada e humilde. Ele estava sem lutar havia dois anos e aceitara o combate com Maurício Facção para provar a si mesmo que ainda podia ser o Legendário do passado. Agora se ressente de ter enfrentado um adversário mais jovem e que não precisou passar pelo desgaste da perda de peso e da desidratação.

“Você deu seu melhor”, dizem os atletas de sua equipe. Todos se reúnem em volta do ex-campeão para uma última homenagem. Em uma só voz, puxam um "Parabéns a você" e dão a Flávio Álvaro ao menos um motivo para sorrir esta noite. No dia seguinte será seu aniversário de quarenta anos.

Divulgação/Todavia Divulgação/Todavia

O livro "A Grande Luta" , de Adriano Wilkson, acompanha a trajetória do lutador Acácio "Pequeno" dos Santos e seu sonho de chegar ao UFC. A narrativa também se detém sobre a história de outros lutadores de alguma forma conectados a Acácio e sua equipe. O livro foi produzido após a publicação de uma reportagem no UOL Esporte.

Curtiu? Compartilhe.

Topo