50 tons de Zé

Tom Zé completa 50 anos de carreira musical com medo da escalada do ódio e da falta de ética no Brasil

Adriana de Barros e Guilherme Azevedo Do UOL, em São Paulo
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A palavra nefelibata, que significa aquele que vive nas nuvens, é perfeita para descrever o homem: Tom Zé flutua pelos cômodos do apartamento sóbrio e amplo, com dezenas de livros enfileirados nas estantes.

Opa, apareceu através da porta (ou coxia), de camiseta e sapatos vermelhos. Opa, sumiu de novo. Vai pela cozinha, vai pela lavanderia, some, ninguém mais vê.

A estatura mediana, o corpo magro e a mão delicada reforçam a impressão de que ele não anda, plana. Revogada a lei da gravidade, o homem é astronauta. Neste caso, um caminhante espacial que completa 50 anos de carreira, do lançamento do primeiro disco, e 82 anos de vida no próximo dia 11 de outubro. Pai de um filho, avô de dois netos, este é Antônio José Santana Martins, o nome de batismo.

Tom Zé falou ao UOL por cerca de cinco horas. Adentramos o mundo, os sonhos e os medos de um dos grandes compositores da história da música brasileira.

Pai do tropicalismo, movimento de renovação da música a partir do fim dos anos de 1960, autor de canções que celebram a cidade e seus habitantes, sempre duvidando do que propagam por aí como certo. Tom Zé nunca teve vocação para manada.

O artista voltou a tratar de política, recuperado (ou quase) dos ataques continuados que recebeu por seus posicionamentos no Facebook.

"O que temos medo é de um acirramento da violência. Todo mundo está torcendo para ter um segundo turno para que possamos eleger um cara que não seja o Bolsonaro, que é um Trump brasileiro".

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Contra o 'Bolsontrump'

Para Tom Zé, o que mais mete medo é a possibilidade da eleição de Jair Bolsonaro (PSL) e o aprofundamento da violência na sociedade.

E apesar de acreditar que o poder tenha "destrambelhado" Luiz Inácio Lula da Silva, não deixa de reconhecer o legado do petista.

"O governo de Lula [2003-2010 mudou tanto o interior do Brasil, que uma vez saí de Fortaleza para uma cidade do Rio Grande do Norte e perguntei: 'O que é ali?'. E responderam: 'É uma piscina de peixe'. 'Pera aí, piscina em um lugar que só se fala de seca, criar peixe e ainda vender caminhão de peixe? Onde eu estou?'

Em Irará (cidade natal do compositor, na Bahia) também tem uma coisa muito interessante, minha irmã passou um tempo lá e conheceu um médico cubano que está lá. Ela me fala que o amor das pessoas pelo médico é inacreditável. O interior do Nordeste é muito amoroso com as pessoas.

Que esperança eu tenho? Teve um tempo em que eu dizia que a eleição ia mudar tudo. Não vai mudar, porque na base fica tudo igual. E outra coisa é que essa eleição tinha a única coisa que todo mundo estava de acordo: Lula não pode se candidatar. Isso já está escrito há muito tempo, já está no não verbal. Essa coligação é o que chamam de frente ampla.

Neusa não fala o que eu falo. Acharam um motivo para o qual ele também se beneficiou. Como disse [o sociólogo] José de Souza Martins [em entrevista ao UOL], o poder é tão degenerador, que até o pobre do Lula fez alguma coisa para achar. Se fosse considerar o que ele tirou de benefício para ele com o que os outros tiram, não é nada. Mas não vão falar disso. Quem rouba pouco tem dinheiro, quem rouba muito tem dinheiro, aquilo ali foi o bastante para fazer o que todo mundo sonhava: não ter o Lula na eleição. E conseguiram. O objetivo foi bem-sucedido.

Medo da violência

Então, veja bem: o que temos medo é de um acirramento da violência. Todo mundo tá torcendo para ter um segundo turno para que possamos eleger um cara que não seja o Bolsonaro, que é um Trump brasileiro, o 'Bolsontrump'. Não é brincadeira a violência.

Olho na rua e penso: se mudasse para um regime de violência e estivesse procurando pessoas para bater nos outros, a rua tá cheia. Pessoas que têm essa capacidade, essa doença de fazer isso. Tem gente que acha que é justo, em nome do Deus deles. É engraçado que no meio de nós vive tudo isso.

Outra coisa que dói muito: quantas pessoas são levadas ao crime pela fome? Se separasse e tirasse das cadeias quem entrou pela fome, as cadeias não estavam superlotadas.

"Lula bota no bolso todo doutor"

Somos vários Brasis. E um Brasil como o de São Paulo, que na verdade veio da Europa, não sabe que diabo é aquele Nordeste. Quem assina meu cheque novamente é Euclides da Cunha. O Nordeste é um lugar onde muitas vezes circula uma inteligência muito sofisticada. O Lula é um homem assim. Não tô dizendo que ele é o bom e os outros são ruins, tô falando de humanidade. Não se pode deixar Lula subir no palanque que ele bota no bolso todo doutor de universidade.

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"Eu não ando com faca na rua"

Em 2013, Tom Zé foi alvo de perseguição nas redes sociais e na mídia pela locução que fez para comercial da Coca-Cola com o tema da Copa do Mundo de 2014, no Brasil. Afinal, ele tinha se vendido para o capital? O músico reagiu aos apupos com um disco colaborativo lançado nas redes, "Tribunal do Feicebuque".

Depois viriam mais críticas por causa do posicionamento político de Tom Zé, por exemplo, contra o presidente Michel Temer (MDB).

"Eu, de repente, por acaso, descobri que existem redes sociais. Porque foi uma ocasião e a gente fazia música sobre as coisas que aconteciam. Às vezes eu faço diretamente, lia no jornal e fazia. Aí um dia disseram: 'Esse rapaz é capaz de se tornar perigoso'. Saiu uma ordem para dizer: "Caiam em cima dele". Aí vieram 3 milhões, eles são organizados, 3 milhões xingando a mãe e o pai, a puta que o pariu, desmoralizando, esculhambando.

Quando eu cheguei em casa, encontrei a Neusa naturalmente desesperada, que a gente não tá habituado a viver num mundo desse. Aí, pelo amor de Deus, apagamos tudo, apagamos músicas, apagamos tudo e acabou.

Fiquei intimidadíssimo. Eu não tenho guarda-costas. Outro dia fiz até algo grosseiro com Caetano [Veloso] e com a mulher dele, a Paula [Lavigne]. Eu não sou casado com filha que tem família de advogado, como Caetano é, uma moça legal, com uma família de advogado. Aqui só tem faca de cozinha. Eu não ando com faca na rua.

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Lições de Irará

Na "medieval Irará", a cidade natal, Tom Zé aprendeu ouvindo o sertanejo, ao lado do pai e na mesa do avô

"Eu nasci numa cidade que tinha 3.000 habitantes em 1840 e 3.000 habitantes em 1940. Eu era criança e meu pai [Everton] tinha uma loja. Então aprendi tudo quando trabalhava do lado [dele]. As crianças trabalhavam, isso naquele tempo não era crime. O trabalho do pai, a criança fazia. Na Idade Média em que a gente nasceu, você ia aprender o trabalho do pai, continuar o trabalho dele.

Meu pai tirou a sorte na loteria. Pobre demais, ele tirou uma sorte na loteria em 1925. Com esse dinheiro, ele casou com a filha de um coronel, uma moça de que ele gostava. Essa criatura é a mãe de dois irmãos meus. Ela teve uma espinha inflamada, não existia antibiótico e morreu. Aí ele se casou com minha mãe [Helena].

Meu avô era fazendeiro, meu pai era dono de loja, que já é uma coisa importante, era considerado rico. Mas não era, era apenas um homem que, tendo ganho dinheiro, pôde trabalhar dentro de uma casa, que era uma loja. Trabalhou até a velhice para sustentar os sete filhos que teve: cinco de minha mãe e dois da primeira mulher dele.

Uma pessoa estudar era muito caro, e meu avô botou as filhas moças para estudar em 1930. Eu tava doido para ir na Bahia agora, porque agora que veio essa pergunta: por que foi que meu avô botou as meninas para estudar? Ninguém botava as moças para estudar porque era perder a moça, a moça tava perdida ou pior. E meu avô botou. Todo mundo em Irará fazia primário, que já era um luxo. Tinha um curso maravilhoso, com bons professores. Todo mundo lembra o nome dos professores, eu lembro o meu. A gente guarda como se fosse um anjo protetor, um guia."

"Pobre adora pagar, não gosta de dever a ninguém"

"Agora uma coisa que ninguém pode entender direito era a ética que existia em Irará. Primeiro, não existiam latifúndios em Irará. Eu só posso falar de mim com aquele tipo de vida que aprendi lá. Eu sou aquilo. As pessoas têm duas, três tarefas de terra [tarefa é uma medida agrária equivalente, na Bahia, a cerca de 4.000 metros quadrados], que é mais ou menos um quarteirão, onde mora todo mundo e todo mundo é miserável. Hoje quem não faz três refeições, como em Irará nunca se fez, é miserável. Essas pessoas eram nossos fregueses, e o principal produto lá era o fumo. Mas tinha um problema: lá tem seca. A cada três anos, chove um. Nos três anos de seca, o comprador não tem dinheiro para pagar o débito na loja.

Às vezes a pessoa tirava todo dinheiro que tinha do bolso e botava no balcão. E meu pai ajudava a calcular o que é que a pessoa poderia precisar. Não me lembro direito das coisas, mas vi meu pai fazendo esse trabalho de economista para a gente da roça. Era como a Itália no século 15, 16. Não tinha banco, não tinha juro.

Pobre adora pagar, não gosta de dever a ninguém. Entrava na loja com alegria para pagar os três anos que tava devendo. Eu nasci em 1936 e assim era nossa vida, eu só sei falar dessa vida. Meus tios eram comunistas e as tias eram comunistas católicas, quer dizer, comunistas de merda [risos]."

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A palavra é a moeda do sertão

"O homem da roça, segundo Euclides da Cunha, gosta de conversar porque a palavra é a moeda mais valiosa nesse mundo pobre. Nos sertões de Pernambuco se mata quando a pessoa faz coisa errada numa fazenda. Em Irará nunca se falou em coisa como tal.

Eu comecei a conversar com o homem da roça porque ele ia comprar e sentava meia hora para conversar. O prazer de conversar no Nordeste é o mesmo que eu tô tendo aqui agora. No sertão, a principal moeda que circula é a língua portuguesa falada no século 16. Eles não falam nossa língua. A que se fala no interior, e criança aprende rápido, eu aprendi no balcão da loja. Quem fala essa língua é Guimarães Rosa, se você abrir em qualquer página [de livros dele].

Alguma coisa aconteceu dentro de mim, nesse momento eu passei a ser intelectual. Alguma coisa dentro de mim gostava de ouvir aquelas pessoas falarem. Eu gostava do tipo de pessoa. Eu via aquilo, mastigava em casa, aí vem Euclides e diz: o sertanejo, apesar de ter ficado analfabeto, procede como um cientista.

Aí eu tinha essa educação extremamente sofisticada na loja e comecei a ficar amigo. O freguês é uma coisa bem tratada. As pessoas gostavam de ser atendidas pelo dono da loja, que era meu pai. Só tinha produto para o homem da roça, de fazer roupa. Naquele tempo todo mundo tinha uma máquina Singer. E toda dona de casa sabia costurar."

O saber está servido

"O jantar era às 18h na casa do meu avô Pompilho e, às 21h, que era considerada alta madrugada, alguém tirava as crianças. Eu saía quase chorando, muito triste. Quando me tiravam, eu tava com febre de tanto encantamento que tinha de prestar atenção naquelas conversas. A conversa era sobre imaginar instituições que tratariam o dinheiro do Brasil quase como se o mundo fosse Irará."

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Neusa gosta de dizer que eu vou para Paris, Alemanha e em todo lugar eu vou para Irará, só vou para Irará

Tom Zé

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Sucesso, ostracismo, redenção

Tom Zé foi da glória ao esquecimento, até ser resgatado por um gringo meio doidão

"Grande Liquidação", 1968: O disco inaugural

O disco traz "São São Paulo, Meu Amor", uma das canções que marcariam a carreira de Tom Zé, ganhando com ela o festival da canção da Record em 1968, grande trampolim para um artista. "Porém com todo defeito/ Te carrego no meu peito/ São, São Paulo/ Quanta dor/ São, São Paulo/ Meu amor", cantava o músico.

"Se eu vim morar em São Paulo, tenho que contar a história de São Paulo. Quando eu tava na Bahia, fazia música sobre as coisas que eram reportagens. Por isso eu dizia que era jornalismo cantado. Quando eu vim para São Paulo, eu dizia: 'Bom, agora eu tenho que aprender o que tem aqui'. Aí entrei no cinema para ver "São Paulo S/A", do Luís Sérgio Person. Saí de lá tremendo de frio porque o filme era tudo o que eu precisava ver para entender onde estava.

Naquele tempo, quando uma pessoa queria fazer compra, ia para casa, trocava de roupa, passava perfume e ia para o centro de São Paulo comprar. Então, o assunto do crediário foi o primeiro que rabisquei. Outra coisa: São Paulo é uma cidade muito famosa por trabalhar. É quase um orgulho da cidade.

Na época, quando encontrava uma pessoa que não conhecia, a boa maneira era no primeiro, segundo ou terceiro assunto ela começar a falar mal de São Paulo. Eu nunca tive esse hábito. Aí comecei a registrar e dizer que todo mundo tem que falar mal de São Paulo para saber que está por dentro das coisas. Falar mal de São Paulo era estar por dentro.

Uma vez estava num táxi, indo para a casa de Caetano [Veloso, que também morava em São Paulo] e vi um adesivo num carro da frente: "Não buzine que eu estou paquerando". Eu disse: "Meu Deus, numa cidade dessa, onde trabalho é tido como orgulho e marca registrada, esse cara vai ser agredido na rua!". É claro que não foi, o mundo estava mudando na minha presença.

Eu comecei a pegar coisas que eram da civilização, da maneira como o valor monetário circulava. O disco é todo sobre isso."

"Estudando o Samba", 1976: O disco redentor

Depois do esquecimento de quase duas décadas, o disco foi o responsável pelo resgate do artista. Seu salva-vidas foi um músico com cara meio de doidão, chamado David Byrne, fundador da banda Talking Heads, que lançou Tom Zé mundialmente no fim dos anos 1980]. Thanks, man!

"Tudo o que eu faço são estudos. 'Estudando o Samba' foi por acaso. Eu comecei a gravar um disco em 1975, fiquei em dúvida no nome. Tinha 'Estudando o Samba' ou 'Entortando o Samba'. Achei entortando muito sofisticado. Preferi o estudando porque aquilo era popular. Eu tinha quase certeza de que o que eu estava fazendo tinha valor. Um dia peguei 'Estudando o Samba' e disse que fiz de qualquer jeito para fazer [o poeta e crítico] Décio Pignatari escutar e falar mal. Aí ele me disse que não viu nada demais, que não era tão ruim.

Quando descobri que estava fazendo um disco bom, porque não sou tão louco, pensei em fazer uma armadilha na capa. Tive a ideia de fazer um rodapé de corda e arame farpado na capa. Porque o samba vive chefiado, guardado, protegido por grandes intelectuais sambistas. É o Rio de Janeiro, o Carnaval.

Fui lá, comprei corda e arame farpado. No mais, disse que não colocaria fotografia minha, não colocaria quase meu nome. David Byrne entrou numa loja de disco e ele queria fazer um disco com duas músicas de samba de cada pessoa. Aí viu e estranhou arame, corda e comprou. Era o único que tinha na loja. Aí fui salvo. Aí eu tô respondendo se sou anticultura.

Eu vivo assim, jogando armadilhas. Foi como fiz uma pessoa encontrar minha garrafa no oceano. É isso, a armadilha era um anzol. David Byrne mordeu o anzol.

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Ô, Neusa, qual é a palavra que eu costumava dizer mesmo?

A pergunta aí de cima é frequente no discurso de Tom Zé. Nefelibata, o homem anda esquecido nas nuvens desde o dia em que nasceu. Então Neusa Martins, sua companheira há 50 anos, sempre acode, recordando o termo preciso, preenchendo lacunas, tornando-se um.

"Uma tarefa a que Neusa se dedica maternalmente, carne de minha carne." "Filho", "Filhinho", são a forma como a mulher o trata. E aqui e ali ele deixa escapar um "filha" também.

Difícil imaginar Tom Zé sem Neusa, que também é sua empresária, organizando agendas e contas.

Na conversa com o UOL, Tom Zé falou assim da mulher:

"Como os amigos do pai dela viam Neusa lendo determinados livros, diziam: 'Seu Augusto, você deixa sua filha ler esse tipo de livro?'. E ele respondia: 'O espírito não tem idade'. Que maravilha!

Eu, quando casei com Neusa, não sabia que ela era tão dedicada a pensar, ler, conhecer. Ela conhece tudo do teatro brasileiro da década de 1950, 1960. Às vezes eu sou entrevistado por pessoal de teatro, ligo para ela e em dez minutos ela me diz tudo o que preciso saber para parecer uma pessoa culta.

Aqui em casa eu sou analfabeto e ela, a pessoa culta. A verdade é essa. Neusa não gosta que eu fale isso porque ela fica acanhada. Toda hora estou perguntando a ela, agora também sobre mim".

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O mestre alemão e o "Homem da Mala"

Neste momento da entrevista, Tom Zé recorda passagens musicais da juventude e dois grandes mestres: o compositor clássico alemão Hans-Joachim Koellreutter, que veio para o Brasil em 1937 fugindo do nazismo e foi professor de Tom Zé na faculdade de música da Universidade Federal da Bahia; e a figura popular do "Homem da Mala", o vendedor popular das feiras do Nordeste.

"Naquele tempo [da faculdade], Koellreutter tinha um negócio de pescar alma. Ele gostava de meter susto nas pessoas. Ele entrou na sala, jogou os livros e disse um dia: 'Música não é a interpretação dos sentimentos humanos através do som'. E ficou calado. Como assim? Era o contrário de tudo que se dizia. Eu tomei um susto filha da puta. Ele olhou para mim e me viu espantado. Foi nesse dia que virei estudante de música sem saber.

Em outras circunstâncias tentei estudar música, quando era criança. Eu entrei para estudar saxofone. Um dia o diretor da escola veio me dizer que eu não poderia continuar estudando porque o povo tava dizendo que eu era filho de rico e não iria querer tocar na rua. Eu fui para casa desmantelado, como se fosse um crápula da sociedade. Veio um complexo de inferioridade das guerras do lado de casa, que me criaram indefeso.

Um dia o povo da cidade passou todo cantando uma música minha, sobre os loucos de Irará. Quando passou por mim, me escondi e fiquei olhando. Eu não ia me expor a uma coisa daquela. Aquilo me deu confiança e tive um estremecimento de que um dia teria que subir no palco. No outro dia passei a tomar providência: fui estudar numa escola de palco, que era o vendedor de rua, o 'Homem da Mala'.

O "Homem da Mala" é aquele que põe a mala na rua, não tem palco nem nada. Ele chega com aquela intuição, aquela loucura. Ele chega com uns remédios na mala, fitoterápicos, acha um lugar bom e de repente o artista está dentro dele, só falta manifestar, pega um remédio e começa a falar. Aí começa o espetáculo, aparece uma, duas pessoas. Ele se torna um grande palhaço. Eu fui estudar isso, tomava nota, e me serviu muito na televisão. A piada só funciona com algo que acontece na hora. Várias coisas ele me ensinou. Eu vivo tentando fazer a pessoa rir".

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Tem hora que a pessoa diz que eu sou vanguardista. Eu fico contente. Mas, se eu pensar direito, fiz pensando no passado. Eu não sou vanguardista, sou retaguardista

Tom Zé

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Tropicalismo: uma nota de mágoa

Difícil não achar que há um tom, embora escondido, de queixume quando Tom Zé se refere aos companheiros baianos que, com ele, criaram o que ficou conhecido como tropicalismo, movimento que renovou a música e a cultura brasileira no fim dos anos de 1960 e ao longo dos anos de 1970. O músico de Irará teria ficado em posição inferior à dos demais, praticamente esquecido.

Ao UOL, Tom Zé repassou o movimento e ainda louvou a bossa nova, que antecedeu o tropicalismo e o influenciou:

"Gilberto Gil e Caetano Veloso eram sofisticados, eu era a barbárie. No entanto, as músicas malucas que fiz, eles colocaram no telhado do tropicalismo. Quando eles saíram [foram para o exílio, na Europa, perseguidos pela ditadura, em 1969; e Tom Zé permaneceu no Brasil], eu continuei fazendo a barbárie. Quando Gil e Caetano foram para a Europa, foram lá falar mal de mim para eles e eles acreditaram nisso. Todo mundo ia lá falar mal achando que, me tirando da tropicália, ia ter espaço. Me tiraram e não teve espaço para ninguém.

Caetano às vezes fala [da importância de Tom Zé para o movimento]. Gil, esquece, não existe. Não digo que Gil é ruim por ficar calado. Ele tem no contexto psicológico dele, eu fiz 30 anos de psicanálise, mas não é por isso que vou psicanalisar Gilberto Gil. Não sei psicanalisar a mim, quanto mais Gil. Mas ele tem um sentido que é humano e é uma fortaleza na pessoa, o sentido de competição. Tem alguma coisa no intuitivo dele".

Orgulho da bossa

"A bossa nova foi tão forte, capaz de romper as fronteiras e ser amada em lugares de cultura muito mais sofisticada. O Brasil era exportador de matéria-prima em 1957 e, com a bossa nova, em 1958, passou a exportar arte, que é o grau mais alto da aptidão humana. Em nenhum país, nem da história antiga nem da modernidade aconteceu uma coisa dessa. Por que o país tá metido num rolo desses agora? Um país com tanta capacidade... A bossa nova era um misto de trabalho carioca com nordestino. João Gilberto [baiano], com Tom Jobim e Vinicius [de Moraes, nascidos no Rio]. Que mal tem trabalhar junto essas coisas?"

O tímido, na hora que passa para o outro lado, no palco, não pisa no fio, não bate no microfone, é uma possessão. Você está em cima do palco com todas as suas faculdades mentais ativas, prontas para responder a cada coisa. Sou muito mais rápido para responder no palco do que numa conversa normal. E pessoa que responde rápido, a plateia começa a se entusiasmar com aquilo.

A música viciou a plateia a não usar a racionalidade. Então, como eu não sou cantor, não posso ganhar atenção do público pela emoção, ou coisas do mundo do amor. Eu não faço amor para o contemplativo, mas para o cognitivo. Digo: "Então, vou precisar que vocês usem uma coisa que vocês têm e quando entram para ver música jogam fora". Faço coisas que, pensando, dá prazer de descobrir.

Todo mundo já fez um disco que satisfez completamente o coração e os ideais. Eu não tenho esse disco. Eu tenho discos em que pensei 100% de ideias e só coloquei neles 60%. É uma armadilha de Deus para eu não parar nunca.

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"Não espero vida após a morte"

Sempre diz que não, mas desta vez admitiu que tem certo temor da indesejada das gentes. O temor, contudo, temperou de orientalismo, que dá certo conforto contra a angústia do fim.

"Olhe, para falar honestamente, de vez em quando você tem medo da morte. Aqui em São Paulo, que é uma cidade oriental, esse negócio de morrer, diz que você vai com o que tem de útil e passa a ser parte da propriedade espiritual do mundo. Eu li uma criatura, um oriental, e quando uma pessoa pergunta sobre vida após a morte, ele diz: 'Como você pode querer vida após a morte? Quantas pessoas você é?'. Por exemplo, você junto do repórter é uma pessoa, junto das meninas na rua é outra, junto das meninas no puteiro é outra. Eu também sou um pouco assim, não espero vida após a morte.

Dizem que quem vive e continua vivo após morto é quem é uma coisa só. Que, diante de tudo, é uma coisa só. Eu não tenho esse caráter.

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Não, eu não sou cristão, não sei se acredito em Deus. São Paulo é uma cidade oriental e aqui tem vários outros tipos de coisas que tomam conta da vida, do planeta, do mundo. Dizem que estamos no sétimo universo.

Tom Zé

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