Trilhos do subúrbio

As questões que afligem moradores dos bairros onde o trem chega, mas serviços básicos faltam

Paula Bianchi e Taís Vilela Do UOL, no Rio
Fernando Maia/UOL Fernando Maia/UOL

Ao longo dos trilhos de trem que cortam ao meio o Rio de Janeiro a partir da Central do Brasil, no centro, até as bordas da capital fluminense, corre uma cidade que foge do cartão postal e que será, junto aos seus mais de  4,1 milhões de moradores –cerca de 65,5% da população do município, de acordo com o Instituto Pereira Passos--, o fiel da balança destas eleições.

O subúrbio carioca, que inclui a zona norte e parte da zona oeste, tem memórias e queixas comuns: transporte, saneamento básico, lazer, segurança pública e saúde são questões longe de serem resolvidas.

"São as áreas da cidade que mais demandam direitos públicos", diz o historiador e professor da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) Rafael Santos.

O próprio conceito de subúrbio, diz Santos, passa por uma disputa de representação --recentemente, um vereador apresentou um projeto de lei propondo transformar a região da Barra da Tijuca e do Recreio em "zona oeste-sul", dessassociando-a do restante da região oeste. "A cidade é mutante, as nomenclaturas que estabelecemos são políticas", diz.

Lar da Portela, dos bate-bolas, do viaduto de Madureira e de outras tantas manifestações culturais tipicamente cariocas, essa região esquecida é, de acordo com seus moradores, deixada de lado entre as prioridades da cidade, voltadas mais para a zona sul e o centro. Mas o que o subúrbio carioca quer?

O que o subúrbio quer?

Arte UOL
Domingos Peixoto/Agência O Globo

Segurança

Quando o tema é segurança, dois pontos se misturam na rotina de quem vive no subúrbio. A influência do tráfico, que ainda domina diversas áreas, e da milícia, presente principalmente na zona oeste.

Em alguns pontos, as duas forças convivem, à margem do Estado.

Em Vigário Geral, na zona norte, a reportagem filmava a passagem do trem do alto de uma passarela quando um jovem de camiseta preta que observava a cena avisou que era proibido fazer imagens ali. Com um radiotransmissor na mão, disse que "os homens" não liberavam o local.

Antes, uma moradora e o filho, assustados, já haviam alertado que era melhor abaixar a câmera. Em ao menos dois bairros da zona oeste, moradores confirmaram "pagar por segurança", numa referência a milícias.

Distante da região central, a área é, segundo dados do Instituto de Segurança Pública, a que mais registra casos de letalidade violenta --homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e homicídio decorrente de oposição à intervenção policial no subúrbio totalizaram 78% dos registros em toda a cidade em 2016. Roubos e furtos, principal preocupação dos moradores, também acontecem com mais frequência na região --70% do total de registros na cidade.

As zonas norte e oeste também registraram o maior número de tiroteios na cidade em setembro, de acordo com o aplicativo Fogo Cruzado, da Anistia Internacional. “A iluminação é ruim, alguns espaços ficam desertos à noite. Parece que é um bairro que está fora do mapa”, diz a cabeleireira Soni Cristina, 55, moradora de Cordovil, na zona norte.

A Polícia Militar informou, em nota, que "continuará intensificando operações e ações para apreender armamentos que provocam crimes de letalidade violenta e aperfeiçoando o emprego do efetivo para reduzir os índices criminais" na região. Além disso, informou que, ao longo do mês de outubro, 183 policiais reforçaram a segurança no subúrbio.

Fabiano Rocha / Extra / Agência O Globo

Saúde

Não por acaso, os dois hospitais estaduais cuja gestão foi assumida pela prefeitura no começo de 2016 devido à grave financeira do Estado –o Albert Schweitzer, em Realengo, e o Rocha Faria, em Campo Grande--, ficam no subúrbio.

Segundo o ISU (Índice de Saúde Urbana), criado por pesquisadores da Fiocruz em parceria com a OMS (Organização Mundial de Saúde), as regiões norte e oeste são as mais carentes da cidade no âmbito da saúde pública, uma das principais reclamações dos moradores.

O ISU incorpora indicadores de diabetes, doenças do coração, câncer de mama, tuberculose, HIV, homicídios, acidentes de trânsito e mortalidade infantil com base em dados de mortalidade.

O levantamento mostra que, no Rio, a qualidade dos serviços de saúde está diretamente ligada à distância do centro e às condições socioeconômicas.

Assim como no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), o ISU vai de 0 a 1. Quanto mais perto de 1, melhor a situação de saúde do espaço. Enquanto na zona sul e nas regiões de Jacarepaguá, Barra da Tijuca, centro e Grande Tijuca, à exceção de alguns lugares, esse índice permanece alto (entre 0,88 e 1), em boa parte do subúrbio ele oscila entre médio (0,81-0,84) e muito baixo (0,00-0,77). 

"O preço médio por metro quadrado do apartamento de um bairro e sua distância do centro da cidade estão altamente correlacionados com o ISU", diz Martin Bortz, um dos autores da pesquisa.

O Estado decretou calamidade pública financeira e deixou de atender em tempo integral em diversas UPAs (Unidades de Pronto Atendimento), o que piora a situação da região. Apesar do esforço da administração atual, que criou as Clínicas da Família, reforçando o atendimento na região, as filas nos postos e unidade de saúde são constantes.

"Quem não tem plano [de saúde] leva seis meses para conseguir uma consulta. Médico é difícil. Quando a gente consegue, é a enfermeira que atende", diz a vendedora Lia Gomes, 36, moradora de Santa Cruz.

Procurada pelo UOL, a Secretária Municipal de Saúde afirmou que as zonas norte e oeste foram as que mais receberam investimentos na área nos últimos oitos anos. O órgão cita como principal exemplo as Clínicas da Família, mas não especifica quantas unidades foram inauguradas.

Fernando Maia/UOL

Transporte

Em dias bons, conta o pedreiro Valter Ferreira da Silva, 59, morador de Inhoaíba, na zona oeste, a cerca de 60 quilômetros do centro, é possível chegar até "a cidade", como é chamada a região central do Rio, em duas horas, usando trem. Em outros, a viagem chega a três horas. "É rápido", diz.

Nos fins de semana e feriados, os trens são ainda mais raros. A demora se deve a interrupções na linha, falta de energia e até tiroteios em favelas vizinhas aos trilhos.

Apesar das readequações feitas pela prefeitura e da construção de linhas de BRT, o sistema de transporte segue historicamente concentrado na zona sul e no centro, enquanto a maior parte da população vive nas zonas norte e oeste. Por lá proliferam as vans, nem sempre regularizadas e muitas vezes controladas por milícias, e os mototáxis.

O próprio BRT já opera acima de sua capacidade. Inaugurado em 2012, o corredor Transoeste, que vai de Santa Cruz até a Barra da Tijuca, recebe cerca de 17 mil passageiros por hora em horários de pico. O sistema foi projetado para transportar até 15 mil pessoas por hora.

O preço das passagens é outra limitação. Uma viagem de ônibus sai por R$ 3,80 e não há integração com a tarifa de metrô, que custa R$ 4,10. Já o trem sai por R$ 3,70 –valor que, para quem usa o Bilhete Único, permite pegar mais dois ônibus em até duas horas.

A Secretaria Municipal de Transportes foi procurada pelo UOL, mas não comentou as reclamações dos moradores do subúrbio.

Fernando Maia/UOL

Saneamento básico

Entre janeiro e setembro o Rio registrou, no total, 24.960 casos de dengue, sendo que ao menos 10.099 (40,5%) foram no subúrbio. 

“Há um forte vínculo entre sistemas de saneamento deficientes e o surto atual do vírus zika, bem como a dengue, a febre amarela e o chikungunya, sendo todos eles transmitidos por mosquitos”, afirma o relator especial das Nações Unidas para o direito humano à água e ao saneamento, Léo Heller, em comunicado divulgado pela organização alertando sobre o tema no começo do ano. 

De acordo com Ana Lúcia Britto, do Observatório das Metrópoles da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a distribuição do saneamento na cidade é desigual. O maior deficit de coleta de esgoto aparece nas favelas e na zona oeste, área de ocupação mais recente.

A área, diz, concentra também a maior parte dos condomínios do programa habitacional do governo federal Minha Casa, Minha Vida de quem recebe até seis salários mínimos por mês.

Longe das áreas mais turísticas da cidade, é comum encontrar valões e esgoto a céu aberto, muitas vezes próximos a pilhas de lixo, o que coloca a ocorrência de enchentes na lista das preocupações dos moradores.

“Desde os tempos dos meus pais que eu sofro com enchente. Eu já nasci dentro da água”, diz o aposentado Gabriel Gomes Moreira, 72, morador da Pavuna, na zona norte, e vizinho a um córrego que enche toda vez que chove.

A Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos) informou que, na zona norte, apenas as favelas não têm saneamento e que a responsabilidade na zona oeste é da prefeitura. procurado, o órgão municipal não respondeu à reportagem.

Fernando Maia/UOL

Lazer

Na última gestão municipal, o subúrbio ganhou o Parque de Madureira, na zona norte, e, mais recentemente, o Parque Radical, em Deodoro, na zona oeste, um dos legados das Olimpíadas. Mas ainda é pouco, dizem os moradores, que veem boa parte dos espaços de lazer da cidade concentrados no centro e na zona sul.

A maior parte das famílias ouvidas pela reportagem do UOL considera as praças mal conservadas e reclama que é preciso ir longe para encontrar locais adequados para os filhos brincarem ao ar livre.

A artesã Marilena Soares Ramos, 51, moradora de Paciência, na zona oeste, cita o recém-inaugurado Museu do Amanhã, na zona portuária, ao lembrar que não há nenhum espaço cultural do mesmo porte sendo construído em sua vizinhança. "Museu não tem, teatro não tem, cinema só no shopping", diz.

Shoppings, aliás, que são o principal local de lazer da população na região, segundo aponta uma pesquisa realizada pelo Datafolha em 2013 --em seguida vem o cinema. Entre os motivos, diz o historiador e professor da Uerj Rafael Santos, estão a precariedade, distância e custo para chegar até outros espaços da cidade.

A Secretaria Municipal de Cultura diz que desde o começo da gestão procurou dar atenção especial à região e cita, além do Parque de Madureira e do Parque Radical, a incorporação do Centro Cultural João Nogueira, o Imperator. A prefeitura lembra ainda a inauguração de quatro arenas cariocas na zona norte em 2012 e a gestão das lonas culturais na zona oeste e na Ilha do Governador.

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