Cidade para todas

As políticas precisam ser pensadas também para o gênero feminino

Marcelle Souza Colaboração para o UOL, em São Paulo

Uma situação simples, como andar pela rua, pode mudar com a inclusão de uma variável: ser mulher. Seja porque a rua está escura, e isso pode levar insegurança a uma caminhada noturna, seja porque se locomover por calçadas irregulares com um carrinho de bebê requer destreza.

Nem sempre as políticas que tornam a cidade mais inclusiva para as mulheres são dirigidas especificamente a essa parcela da população. É o caso da iluminação pública --que beneficia todos os cidadãos-- ou do atendimento em creches e escolas de educação infantil --que é um direito das crianças entre 0 e 5 anos.

Em período de eleição nos 5.568 municípios brasileiros, não se veem com frequência propostas de candidatos com foco nas eleitoras. Especialistas em políticas para mulheres ouvidas pela reportagem do UOL esclarecem a importância do assunto e apontam as questões cruciais a se avaliar também na escolha do voto.

Além das ações práticas da prefeitura, do Estado ou da União, é preciso haver também mudança de mentalidade tanto dos eleitores quanto dos governantes --e isso passa pela presença das mulheres nos espaços de decisão, segundo a professora Lourdes Maria Bandeira, da UnB (Universidade de Brasília), ex-secretária de Planejamento e Gestão da Secretaria de Políticas para Mulheres (2008-2011) do governo federal.

Ela vê um passo anterior nessa questão: a necessidade do debate sobre gênero nas escolas, para que os estudantes tenham um aprendizado sobre a diferença e também sobre a importância de ser tolerante.

"A política municipal é o espaço privilegiado para trabalhar e implementar programas que são importantes para as mulheres. Um exemplo é a epidemia da zika: tem que haver um diálogo com as mulheres para a prevenção do surto e para que a prefeitura conheça o que elas precisam", diz Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres.

Veja a seguir alguns pontos para aquecer a discussão sobre como municípios podem tratar com mais respeito as mulheres, que representam 52% da população brasileira.

Política de gênero é...

  • Vagas em creches e em escolas públicas

    Além de um direito da criança, as mulheres precisam desse tipo de apoio para poder trabalhar

    Imagem: Divulgação/Prefeitura de Florianópolis
  • Iluminação pública

    É uma questão de segurança: estudos comprovam que locais iluminados ajudam a inibir crimes

    Imagem: Julia Chequer/Folhapress
  • Acesso a métodos contraceptivos nos postos de saúde

    Apoio no planejamento familiar é essencial --muitas jovens deixam a escola por gravidez não planejada

    Imagem: Dado Junqueira/Folhapress
  • Transporte público eficiente

    Mulheres usam mais ônibus em seus deslocamentos e andam mais a pé, além de ser um ganho para toda a sociedade

    Imagem: iStock
  • Participação em cargos públicos

    Representatividade ajuda a fazer a diferença na proposição e na implantação das políticas para essa parcela da população

    Imagem: Fabio Braga/Folhapress
  • Políticas de saúde direcionadas

    As mulheres possuem necessidades específicas no posto de saúde ou hospital, como em casos de zika e pós-parto

    Imagem: Getty Images
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Violência

As prefeituras podem tornar a rotina diária das mulheres mais segura com medidas de infraestrutura. Se a segurança pública é dever dos Estados, os municípios podem fazer a sua parte com ruas bem iluminadas ou com apoio em situações de violência doméstica ou sexual.

"Para a mulher, uma rua iluminada faz muito mais diferença" diz Haydée Svab, engenheira especialista em gênero e transporte. "A percepção de segurança e de violência nos espaços públicos é muito diferente para homens e mulheres. Quando os depoimentos são masculinos, não fica tão marcada a questão da iluminação e do medo", afirma.

Eles [os homens] geralmente estão preocupados com o bem material. A mulher está muito mais preocupada com a segurança física  Haydée Svab, engenheira

Pesquisa recém-divulgada pelo instituto Datafolha mostra que 85% das mulheres têm medo de serem estupradas

Segundo esse levantamento, "além de afetar a saúde física e psíquica das vítimas diretas, o medo do estupro se coloca como um elemento permanente na vida das mulheres em geral, limitando suas decisões e seu pleno potencial de desenvolvimento e de sua liberdade".

É também de responsabilidade do município e de seus parceiros (organizações não governamentais e sociedade civil) o atendimento e o acolhimento das vítimas de violência.

"Quando se fala de violência contra as mulheres, também é muito importante que o município crie espaços de discussão e implementação da Lei Maria da Penha", afirma Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres Brasil.

Além disso, a rede municipal de saúde deve estar apta a atender vítimas de estupro, oferecendo tratamento imediato contra DSTs e contracepção de emergência. Nas maiores cidades, hospitais do município também estão --ou deveriam estar-- habilitados a realizar a interrupção legal de gestação (permitida em caso de estupro, risco de morte para a mãe e anencefalia fetal).

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Creche e pré-escola

Procurar uma vaga para um filho com menos de cinco anos em muitas cidades do país costuma ser uma dor de cabeça para as famílias.

Até o final de 2016, uma lei obriga que todas as crianças de 4 e 5 anos estejam na pré-escola. Além disso, há uma demanda por 3,5 milhões de novas vagas em creches, para bebês de 0 a 3 anos até o ano de 2024, segundo o PNE (Plano Nacional de Educação). O cumprimento de ambas as leis é responsabilidade do município. 

Enquanto as prefeituras ignoram a lei, muitas mulheres são obrigadas a deixar o trabalho ou a assumir gastos extras porque não têm com quem deixar os filhos.

A situação se complica uma vez que existem ao menos 20 milhões de mães solteiras no Brasil, e elas dependem ainda mais dessas políticas. O dado é de uma pesquisa de 2015 do Instituto Data Popular.

Segundo estudos, um aluno que tenha frequentado creche e pré-escola tende a permanecer na escola e ter bom desempenho --mais um motivo para a urgência de ação nessa faixa etária. 

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Saúde da mulher

Entre as causas mais frequentes de mortes das mulheres brasileiras, estão o câncer de mama e o de colo de útero, que podem ser detectados precocemente, aumentando a chance de cura. 

As principais causas da mortalidade materna são a hipertensão arterial, a hemorragia, as complicações decorrentes do aborto realizado em condições inseguras, a infecção pós-parto e as doenças do aparelho respiratório.

Isso significa que as prefeituras deveriam oferecer serviços, exames e consultas obstétricas e ginecológicas de qualidade e com o menor tempo de espera possível, bem como ferramentas para o planejamento familiar e estrutura para partos e acompanhamento pediátrico e de pós-parto.

"A política municipal é o espaço privilegiado para trabalhar e implementar programas que são importantes para as mulheres. Um exemplo é a epidemia da zika: tem que haver um diálogo com as mulheres para a prevenção do surto e para que a prefeitura conheça o que elas precisam", diz Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres.

Atualmente, a prevenção da transmissão do vírus da zika, o acompanhamento de gestantes infectadas e das crianças com deficiências causadas pelo agente são novos desafios para os municípios brasileiros.

Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), o Brasil ainda não conseguiu atingir a meta de reduzir a mortalidade materna devido à altíssima taxa de cesáreas, ao excesso de intervenções desnecessárias, à falta de treinamento de equipes especializadas e à proibição do aborto. 

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Transporte público

Segundo a engenheira Haydée Svab, implementar políticas para tornar o transporte público mais eficiente também é uma forma de fazer política de gênero.

Isso porque 28% das brasileiras usam ônibus em seus deslocamentos diários, enquanto esse meio é utilizado por 19% dos homens. Elas também andam mais a pé (26%) do que eles (17%).

Por outro lado, os homens preferem usar a moto (13% deles contra 7% das mulheres) ou carro (23% contra 16%).

"Eu acho que as discussões sobre a cidade deviam começar da calçada. As mulheres são as que mais andam a pé, são as que mais usam o transporte público, então você tem que dar condição de infraestrutura", diz Svab que pesquisa transporte e gênero. "Pensando na cidade, se eu tiver uma calçada em que passe uma mulher com um carrinho de bebê, eu posso ter uma calçada em que passe um cadeirante. Quando a gente fala da cidade para todos, é para todos, acessível."

Além de pensar na estrutura adequada para esses deslocamentos pela cidade, as prefeituras deveriam atuar na prevenção e no combate ao assédio nos ônibus. 

Segundo uma pesquisa realizada pelo Datafolha, 35% das mulheres dizem que já sofreram algum tipo de assédio no transporte público. Dessas, 22% disseram que a violência foi física, 8% sofreram assédio verbal e 4% ambos.

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Necessidade de transformação

A igualdade de gêneros é um dos objetivos do milênio estabelecidos pela ONU e tema de um levantamento feito todos os anos pelo Fórum Econômico Mundial --no último, divulgado em 2015, o Brasil ficou na 85ª posição de um total de 145 países.

No âmbito econômico, a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) defendeu que "o desenvolvimento é impossível" se as oportunidades continuarem desiguais para homens e mulheres.

A igualdade de gênero também está na Agenda 2030 da ONU, que tem 17 objetivos e 169 metas para o desenvolvimento sustentável das nações.

"Mulheres e meninas devem gozar de igualdade de acesso à educação de qualidade, recursos econômicos e participação política, bem como de igualdade de oportunidades com os homens e meninos em termos de emprego, liderança e tomada de decisões em todos os níveis", diz a Organização das Nações Unidas.

Votar em mulher resolve?

Se elas enfrentam tantos problemas no dia a dia, isso pode ser percebido como uma consequência do número baixo de mulheres prefeitas (12%) e vereadoras (13%) no Brasil.

As especialistas ouvidas pelo UOL apontam que essa falta de representatividade afeta o desenvolvimento de políticas de gênero, que se tornam ainda mais invisíveis aos olhos dos gestores municipais. Mas só a eleição de uma mulher não é suficiente para colocar em prática medidas que de fato afetem a vida das eleitoras.

"É importante que gente comprometida com a agenda da igualdade de gênero ocupe o cargo, que pense em como fazer para promover a igualdade na educação, na saúde, em como enfrentar a violência, e isso não é automático nem exclusivo das mulheres, essas são questões que homens e mulheres nos espaços de poder têm de colocar permanentemente em suas agendas", afirma Gasman.

Eduardo Anizelli/Folhapress Eduardo Anizelli/Folhapress

Cotas

Para saber quais são as demandas, as prefeituras precisam ouvir as mulheres e criar espaços de discussão, que podem ser conselhos municipais, secretarias ou coordenadorias de políticas para as mulheres, ou órgãos dentro das principais pastas para articular as ações para esse público.

Em algumas cidades, como São Paulo, uma lei determina que as mulheres ocupem no mínimo 50% dos espaços de participação e controle social.

"Eu acho que é interessante essa política de cotas, mas eu não acho que vai durar para sempre. Eu acho importante como indutor de transformação. Eu fui eleita pela quantidade de votos, não precisei das cotas, mas talvez eu não me candidatasse se estivesse sozinha, porque o espaço da política é muito hostil", afirma Svab, que é conselheira do Butantã, na cidade de São Paulo.

Esses espaços ajudam a discutir as especificidades desses grupos de cidadãs em um determinado município.

"Quando falamos de mulheres, falamos delas na sua diversidade, porque as especificidades são importantes, as brechas de acesso a serviços são enormes. Só de olhar os dados, você percebe que uma mulher negra ganha 300% menos que um homem branco, que as indígenas têm mortalidade materna seis vezes maior do que a média. É uma questão de não deixar ninguém atrás", afirma a representante da ONU.

"Esse movimento até a igualdade atinge toda a comunidade. Não é tirar dos homens e dar para as mulheres. A igualdade é um conceito que faz com que todo mundo ganhe", afirma Gasman. 

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