Território hostil

Alunas da USP, maior universidade do país, convivem com o medo da violência --a mais temida é a sexual

Helder Ferreira Do Eder Content, em São Paulo
Cacalos Garrastazu/Eder Content/UOL

Sofia, que cursa história, evita caminhar pelo campus à noite desacompanhada. Quando está só, se sente ameaçada pela presença de qualquer homem, mesmo que este seja um integrante da Guarda Universitária ou um policial militar.

Bruna, de ciências biológicas, interrompe experimentos no laboratório para garantir uma carona, com medo de ficar sozinha no ponto de ônibus.

Luana, da oceanografia, deixou de ir às aulas de capoeira com pavor de passar perto do "matão" da Cidade Universitária. Todas elas são estudantes da maior universidade pública do país, e também a mais importante, a USP (Universidade de São Paulo). Todas conhecem histórias de abuso sexual. Todas têm medo de serem estupradas.

Relatório recém-finalizado da Comissão contra a Violência de Gênero do Conjunto Residencial da USP (Crusp), ao qual a reportagem teve acesso com exclusividade, confirma que o medo se estende à moradia estudantil (leia o documento completo neste link: download.uol.com.br/noticias/relatorio-da-comissao-de-violencia-de- genero-no-crusp.pdf).

Ao analisar casos de violência sexual, física, moral e psicológica contra moradoras, o grupo concluiu que a maioria das ocorrências não são reportadas ou não são registradas formalmente pela Superintendência de Assistência Social (SAS), o órgão encarregado da universidade.

De 17 denúncias registradas entre 2009 e 2016, apenas três foram apuradas. E nenhuma resultou em punição aos agressores --alguns deles, reincidentes. A comissão conclui que a SAS não respeita nem sequer a Lei Maria da Penha, que poderia proteger as estudantes contra a violência doméstica praticada por seus parceiros.

Questionado sobre os casos de violência ocorridos no Crusp, o superintendente de Assistência Social, Fábio Guerrini, disse que repudia enfaticamente qualquer tipo de violência contra a mulher e que está tomando providências no âmbito administrativo. "Foram instauradas sindicâncias para apurar os fatos, com o acompanhamento da Comissão de Direitos Humanos da Universidade e o SOS Mulher da SAS", afirma. A SAS-USP é o órgão responsável pelo Crusp.

Ele ressalta que o sistema jurídico da universidade não permite a aplicação de penalidades drásticas, como desligamento de alunos, de forma sumária. "Após o devido processo legal, caso sejam confirmados os fatos e a sua autoria, as punições cabíveis serão aplicadas."

Os medos que as alunas têm

Depressão e síndrome do pânico

A antropóloga Silvana Nascimento, uma das integrantes da comissão, cita casos que vão da violência física à chantagem sexual. Um estudante foi acusado de empurrar a namorada do alto de uma escada, outro teria trancado a parceira no apartamento para que ela não saísse sem sua autorização. E há denúncias de que meninas foram obrigadas a fazer sexo com moradores do Crusp para conseguir uma vaga na moradia estudantil.

"Esse agressor, na maioria dos casos, não é expulso do Crusp e a vítima é obrigada a conviver com ele, que acaba sendo protegido, em detrimento da vítima. Não à toa, há inúmeros casos de depressão, síndrome do pânico e até mesmo suicídio entre as alunas que habitam o Crusp", afirma Silvana, sobre a dinâmica da violência no alojamento.

Mas o relatório revela claramente que os casos oficiais de violência de gênero no Crusp são apenas uma parte da realidade das moradoras da residência estudantil.

As integrantes da comissão --formada por Heloísa Buarque de Almeida e as professoras Ana Flávia d’Oliveira e Silvana, além de cinco alunas e duas servidoras-- levantaram outros 21 casos de violência no alojamento nos últimos dez anos, em conversas informais.

Já as assistentes sociais do Crusp estimam que ocorrem oito casos de violência doméstica ao ano, o que resultaria em 80 casos apenas deste tipo de abuso em dez anos.

Marcas da violência

Estudantes relatam como foram atacadas

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Ruas vazias

O ataque por um desconhecido não é o único medo das alunas nem representa a maior parte dos casos de violência contra mulheres no campus de São Paulo --uma área de 7,9 milhões de m², o equivalente a 1.100 estádios de futebol, com ruas vazias e escuras cercadas de farta vegetação.

Das três vítimas ouvidas pela reportagem, duas conheciam seus agressores. Um deles estuprou uma colega de escola após uma festa. O outro, um funcionário terceirizado, na função de vigia, era cumprimentado diariamente pela estudante em seu caminho para a aula. O terceiro agressor, esse sim desconhecido, tinha sido visto em uma festa momentos antes.

A professora Heloísa, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, explica que a maior parte dos casos de violência sexual se dá entre conhecidos, desfazendo o mito do agressor externo.

"Pode acontecer numa festa, numa república e, até mesmo, em sala de aula, por exemplo, quando professores assediam suas alunas", explica Heloísa, que também integra a Rede Não Cala!, grupo de docentes que luta pelo fim da violência de gênero dentro da universidade.

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As vítimas têm, no mínimo, o desempenho acadêmico prejudicado. Segundo o relatório, é comum que tenham reprovações, tranquem ou abandonem o curso, após a ocorrência da violência.

"A falta de respostas efetivas contra a violência por parte da universidade acaba por culpabilizar as vítimas, inibindo as denúncias e incentivando que as vítimas e outras colegas que se sentem ameaçadas saiam do Crusp", alerta o documento. Muitas alunas, que vêm de famílias de baixa renda, sem opção de moradia, desistem da universidade.

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Escracho das feministas

Dois anos após virem a público seis casos de estupro envolvendo estudantes da Faculdade de Medicina, a universidade ampliou os canais de acolhimento de denúncias de violações contra os direitos humanos e criou o "USP Mulheres", escritório que integra o programa da ONU HeforShe.

O principal objetivo é promover a igualdade de gêneros e o enfrentamento da violência contra as mulheres. Ainda assim, o número de queixas formalizadas não corresponde à totalidade do problema, de acordo com grupos feministas da universidade.

A estudante Sarah Botelho, integrante do Coletivo Feminista Lélia Gonzalez do curso de ciências sociais, diz que a grande maioria das vítimas deixa de formalizar uma denúncia. "É pouco divulgado um canal em que a vítima possa formalizar a queixa e os poucos casos denunciados quase sempre têm um desfecho infeliz, como o caso do estudante da Faculdade de Medicina", diz Sarah.

Ela se refere a Daniel Tarciso da Silva Cardoso, que foi absolvido pela Justiça, em fevereiro de 2017, da acusação de dopar e estuprar uma estudante de enfermagem em 2012, decisão da qual o Ministério Público recorreu.

Alvo de mais três denúncias formais de estupro, segundo informações da Rede Não Cala!, Cardoso concluiu o curso em outubro de 2016, após retornar de um período de um ano e meio de suspensão. Segundo a Faculdade de Medicina, ele ainda não colou grau e o processo está em análise pela reitoria da universidade.

Durante todo o processo, Cardoso sempre negou as acusações e afirmou que era inocente.

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Calouras alertadas do problema

Os coletivos feministas se organizam para acolher as vítimas de violência e alertar as demais estudantes sobre quem são os agressores. Alguns utilizam o "escracho", prática em que várias integrantes do grupo confrontam verbalmente o acusado em espaços públicos e forçam sua saída de festas.

O Coletivo Lélia Gonzalez costuma publicar notas de repúdio a atitudes machistas. "Infelizmente, por muitas vezes somos perseguidas e ameaçadas pelo agressor, correndo o risco de sofrermos processos judiciais por calúnia e difamação", afirma Sarah.

No início do ano letivo de 2017, alunas da Escola Politécnica, com apoio da direção da escola, divulgaram um vídeo nas redes sociais em que relatam abusos, alertando as calouras, aprovadas no último vestibular para uma das melhores escolas de engenharia do Brasil.

Segundo a Comissão de Direitos Humanos da universidade, desde dezembro de 2014 foram abertas 14 sindicâncias, sendo seis por denúncias de estupro e oito de assédio sexual. O número parece insignificante em comparação aos relatos não oficiais.

No mesmo período, os coletivos feministas da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Politécnica e de Ciências Sociais receberam, juntos, centenas de relatos de discriminação, assédio e estupro.

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O professor Gustavo Venturi, do departamento de sociologia, vai coordenar uma pesquisa para o "USP Mulheres" a respeito das relações de gênero, raça e sexualidade dentro da universidade.

"Sabemos da existência do problema, mas não sabemos a extensão dele. A ideia é jogar um pouco de luz nesses fatos para auxiliar a própria universidade e os setores envolvidos a desenvolver uma intervenção que permita enfrentar esses problemas de um modo mais pontual", diz Venturi.

O levantamento será feito por meio de um formulário que será disponibilizado em maio na internet, no qual estudantes poderão relatar casos de violência contra a mulher, racismo e homofobia.

Obstáculos para denunciar

Hoje, quando uma estudante deseja denunciar uma agressão, ela deve fazê-lo na diretoria da unidade em que seu agressor está matriculado.

A partir disto, é instaurado um procedimento investigativo interno --a sindicância-- em que três docentes e um servidor da instituição devem, após ouvir vítima, acusado e testemunhas, determinar se houve uma infração disciplinar --no caso, uma agressão.

Depois que a sindicância comprova que houve infração, é aberto um processo administrativo que pode punir  o agressor com uma advertência, uma suspensão ou com a expulsão --que precisa ser aprovada pela reitoria.

Há uma série de problemas nesse procedimento, alerta Heloísa Buarque de Almeida. Além da possibilidade de se prolongar por meses devido à disponibilidade dos integrantes da comissão e das testemunhas, é comum que a sindicância coloque vítima e agressor frente a frente.

"O estatuto foi feito pensando em infrações disciplinares como colar em provas, plágio, atrapalhar sala de aula, bater boca com o professor. Ele não é preparado para casos de violência sexual", explica. "Há casos em que a punição que um agressor teve foi a mesma que uma aluna teve por colar numa prova, por exemplo."

Para ela, a escassez de denúncias resulta da falta de confiança nesses mecanismos de investigação. "De fato, nesse momento, eles não funcionam: de cerca de dez casos que já ouvi por exemplo, apenas um virou processo administrativo”, relata. "O reitor diz que são poucas as denúncias de violência sexual, mas ele não consegue entender que isso é reflexo dessa desconfiança. É preciso mudar os procedimentos de apuração dos casos.”

Enquanto as regras não mudam, e sobretudo, o medo das mais variadas formas de violência persiste, as alunas correm, quando poderiam caminhar. Andam em grupos, podendo sair sozinhas. Evitam festas com colegas para não serem estupradas. Deixam simplesmente de fazer o que bem entendem porque são mulheres.

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